Evolução dos direitos à água e ao saneamento básico é debatida em audiência do Observatório Parlamentar da RPU

Participantes defenderam participação central do Estado e argumentaram que o novo marco regulatório e sua tendência à concessão à iniciativa privada não dará conta da complexidade e dos desafios da situação brasileira
14/06/2021 13h52

Captura e montagem: Fernando Bola/CDHM

Evolução dos direitos à água e ao saneamento básico é debatida em audiência do Observatório Parlamentar da RPU

O Observatório Parlamentar da RPU, sediado na Comissão de Direitos Humanos e Minorias, realizou, na última sexta-feira (11), audiência pública com o objetivo de verificar a evolução dos direitos à água e ao saneamento básico no Brasil, no âmbito das recomendações da Revisão Periódica Universal.

A audiência se concentrou em três recomendações: enfrentar os desafios de água e saneamento nas favelas (África do Sul), efetuar mais esforços para melhorar o acesso à água e ao saneamento básico, especialmente no Norte e no Nordeste do país (Espanha) e intensificar os esforços para garantir o acesso à água potável e ao saneamento básico, instalando novas redes de água e tratamento (Turquia).

Para Pedro Maranhão, Secretário Nacional de Saneamento do Ministério do Desenvolvimento Regional, a baixa capacidade de investimento do Estado alimentou um déficit histórico que contribuiu para o cenário atual, com 100 milhões de pessoas sem esgoto, 35 milhões de pessoas sem acesso a água tratada e com 3100 lixões a céu aberto. “Obra enterrada não dá voto”, citou, lembrando o desinteresse político histórico em obras de saneamento.

Maranhão destacou que a falta de regulamentação e de segurança jurídica do setor também não contribuiu para atrair capital e, assim, desenvolver a área. Para ele, o Marco Regulatório de Saneamento, aprovado em 2020, oferece a possibilidade de atrair investimentos e desenvolver o setor e alcançar a universalização do acesso. O secretário apontou que o marco possui exigências que consideram a complexidade do cenário, prevendo investimento nas favelas, monitoramento e incluindo a tarifa social para pessoas mais vulneráveis.

“O Marco Regulatório de saneamento é o maior programa ambiental do mundo”, acrescentou, lembrando que o Brasil possui 115 mil quilômetros de Rio com água comprometida com esgotos.

Vanessa Chalegre, da Associação Nacional de Defensoras e Defensores Públicos, destacou que nos atendimentos realizados pela Defensoria, a dificuldade de acesso vai além da presença física de rede de abastecimento, incluindo intermitência do serviço e a dificuldade financeira das famílias em arcar com os custos da tarifa. “Mesmo quando existe infraestrutura no local, isso não garante o acesso adequado à água e ao saneamento às famílias de baixa renda. A universalização não significa apenas a presença da rede de abastecimento”, disse.

“Enfrentar os desafios da garantia do acesso à água e ao saneamento nas favelas e outros assentamentos informais passa por olhar para outros marcadores além da presença da rede”, afirmou Chalegre, que defendeu que a política de saneamento aconteça de forma integrada com a de regularização fundiária.

 

Alto Comissariado das Nações Unidas

Alain Grimard, Oficial Sênior Internacional do ONU Habitat, lembrou que a nova agenda urbana da organização, compartilhada pelo Brasil, aponta que cidades e assentamento humanos exercem uma função social visando progressivamente alcançar uma concretização integral do direito à moradia, mas também o acesso universal à água e ao saneamento seguros e economicamente acessíveis.

Grimard argumentou que é necessário repensar a estratégia e mudar a percepção sobre saneamento como perda de recursos, conscientizar os formuladores de políticas, fortalecer quadros institucionais, integrar o planejamento na legislação urbana e aumentar a responsabilidade institucional, separando o setor regulatório dos operadores.

Pedro Arrojo-Agudo, Relator Especial sobre os direitos humanos à água potável e ao saneamento do Alto Comissariado da Organização das Nações Unidas, reforçou a importância da água para a vida e a saúde das pessoas globalmente. “Se queremos realmente avançar para que as pessoas tenham acesso a água potável, temos que fazer esforços para recuperar a saúde e o bom estado dos rios e aquíferos. Necessitamos fazer as pazes com os nossos rios”, afirmou.

 

Acesso à água no semiárido

Alexandre Sabiá, da Articulação do Semiárido (ASA), abordou as dificuldades enfrentadas no semiárido do Nordeste brasileiro, destacando a ausência histórica de investimento por parte do Estado para o atendimento e abastecimento da população rural difusa.

Sabiá reforçou a importância do programa de cisternas para o abastecimento da população rural e lamentou a desconstrução dessa política pelo Governo brasileiro, por meio da não destinação de recursos e da estrutura de gestão. Ele apontou que o programa foi reconhecido pelas Nações Unidas como uma política para o futuro no combate à desertificação.

“A gente tem uma população de aproximadamente 350 mil famílias no seminário brasileiro que não têm acesso à água potável de qualidade para o consumo”, destacou.

Alexandre apontou a ausência de dados específicos sobre a população rural e lembrou que aproximadamente 60% dessa população estão nas regiões Norte e Nordeste. “Nós estamos falando de um grupo populacional bastante significativo, que cumpre uma função social no Estado brasileiro, na sociedade brasileira, que é da produção de alimentos, de cuidado com os nossos solos, a nossa biodiversidade, as nossas florestas e as nossas fontes de água. E essa população não pode ficar à margem de um processo de reflexão sobre água e sobre saneamento”, afirmou.

“Não dá pra gente falar de acesso ao direito humano à água, ao saneamento, sem incluir a população do semiárido. Infelizmente, nem todos os parlamentares conhecem a tecnologia da cisterna de placa. Quem conhece essa tecnologia, abraça a causa. A cisterna de placa salva vidas, garante o mínimo de dignidade para um ser humano, que é ter o direito à água potável”, comentou o presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias, deputado Carlos Veras (PT/PE), que é do sertão pernambucano, sobre o programa.

“A cisterna de placa nos possibilitou o direito de tomar banho uma vez por dia. Tirar a lata d'água da cabeça das minhas irmãs. Nós andávamos três quilômetros com um galão de água ou com uma lata na cabeça para poder ter água para o consumo humano, para se alimentar, para cozinhar, para beber”, narrou Veras sobre a experiência vivenciada por sua família.

O parlamentar destacou que o programa de 1 milhão de cisternas melhorou consideravelmente essa realidade, mas que ela ainda existe no Brasil e lamentou o fato de o programa ter deixado de ser uma prioridade. “Esse parlamento precisa conhecer essa tecnologia para fazer com que o Governo Federal coloque na lista de prioridades a construção das  cisternas”, disse, acrescentando que a tecnologia também pode ser utilizada na produção da agricultura familiar.

“Eu não sei se a iniciativa privada vai querer fazer saneamento na zona rural, nos distritos, porque não dá lucro. A gente só vai ter saneamento básico na zona rural, nos pequenos municípios, se o poder público tiver isso como prioridade”, complementou Veras, que manifestou preocupação com o Marco Legal por entender que as concessões vão privilegiar o acesso à água e ao saneamento para regiões com potencial de lucro, em detrimento das periferias e zonas rurais.

 

Patrimônio da humanidade

“A água é sobretudo um direito humano, um bem público, um patrimônio de toda a humanidade. A água não deveria ser transformada em mercadoria, nem em commodity, muito menos ser controlada por empresas privadas”, afirmou Dalila Calisto, representante do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB).

Dalila manifestou preocupação com o novo Marco Legal por entender que o modelo de exploração pode aprofundar a negação ao direito à água e ao saneamento no Brasil. “As famílias brasileiras vão passar a conviver com a sobrecarga de tarifas”, disse, defendendo que o controle privado privilegia o lucro e vai ter impacto negativo para a população.

Para Francisco Lopes, da Associação Nacional dos Serviços Municipais de Saneamento (ASSEMAE), a meta da universalização do acesso à água e ao saneamento até 2033, com o princípio norteador do contrato de concessão, é um erro, por desconsiderar as experiências existentes de êxito dos serviços públicos municipais e estaduais. 

“O Estado tem que ter um papel importante, não que a iniciativa privada não possa participar, mas o Estado tem que ter o papel primordial. Quando você olha os países do mundo que chegaram à universalização, mesmo aqueles mais liberais, há um papel preponderante de investimento estatal para se chegar à universalização”, apontou Lopes.

“Nós vamos conseguir alcançar a universalização quando tivermos moradias dignas, acesso ao emprego, um país mais desenvolvido. Não dá pra ter a ilusão de achar que em um país desigual como o nosso, só o saneamento vai chegar na frente”, completou, defendendo fundos públicos de investimento. Lopes lembrou que apesar da privatização em Manaus há 16 anos, o acesso ainda não foi universalizado, e a iniciativa privada tem privilegiado regiões que oferecem lucro.

 

Assentamentos precários

Para Marcus Vinicius, presidente da Associação Brasileira das Empresas de Saneamento Estaduais (AESBE), é preciso pensar de forma ampla e atuar na urbanização e regularização das cidades.

Marcus Vinicius defendeu um pacto nacional público e privado para resolver o problema. “Precisamos trazer o setor privado, não é excluindo que vamos conseguir resolver o problema do país. Nesse momento precisamos somar”, argumentou, citando que em muitos casos a solução extrapola os limites dos municípios e dos estados.

 

Presença forte do Estado

Para Edson Aparecido, presidente da Federação Nacional dos Urbanitários (FNU), o novo marco é um retrocesso e vai aumentar a exclusão das populações mais vulneráveis no acesso à água e ao saneamento. 

“Nós vamos garantir água e esgoto para a população pobre, rural, periférica, a partir de uma presença forte do Estado, que coloque a questão do saneamento básico como uma política estratégica relacionada à saúde do povo brasileiro, ao desenvolvimento”.

Edson defendeu ainda a necessidade de medidas emergenciais, como a suspensão do corte de fornecimento de água por inadimplência, suspensão da cobrança de tarifa de água de pessoas em situação de vulnerabilidade enquanto durar a pandemia, garantia de água e equipamento de higiene para a população em situação de rua e em situação de cárcere. Fez ainda um apelo para que a Câmara dos Deputados seja favorável à proposta do Senado que inclui na Constituição o acesso à água em quantidade adequada.

“A crise da pandemia escancarou as mazelas do nosso país, escancarou a necessidade da presença forte do poder público. O que nós precisamos é que o Estado brasileiro recupere não só sua capacidade de investimento, mas sua vontade de investimento”, argumentou Rafael Kopschitz, do Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (ONDAS).