Observatório Parlamentar debate responsabilização em casos de rompimentos de barragens
A Comissão de Direitos Humanos e Minorias, no âmbito do Observatório Parlamentar da RPU, examinou nesta quarta-feira (20) o cumprimento pelo Brasil de recomendação realizada pelo Equador (54) para dar continuidade aos esforços para punir os responsáveis pelo rompimento das barreiras de contenção em Jacareí (SP) e Mariana (MG) e garantir que as vítimas dessa tragédia tenham respeitados o seu direito de acesso à justiça e as compensações e reparações pelos danos.
A Revisão Periódica Universal (RPU) é um mecanismo no qual os 193 países membros da ONU se avaliam mutuamente e fazem recomendações com o objetivo de melhorar a situação dos direitos humanos. A audiência pública foi a 19ª realizada no âmbito do Observatório Parlamentar da RPU, uma parceria entre a Câmara dos Deputados e o Alto Comissariado para os Direitos Humanos das Nações Unidas.
“O Brasil é parte do pacto internacional de direitos civis e políticos que dispõe sobre o acesso à justiça, à informação. É parte da Convenção 169 da OIT, que dispõe sobre a consulta livre, prévia e informada. Tragédias como essas causam impacto ainda maior nas vidas de povos indígenas e povos tradicionais. Esses compromissos devem ser implementados pelo Estado brasileiro em sua totalidade, a partir de um esforço entre os Três Poderes, nas três esferas, com participação ativa da sociedade civil”, apontou Jan Jarab, Representante do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH) na América do Sul.
Jarab relembrou ainda que depois da recomendação feita em 2017 pela RPU, o Brasil vivenciou a tragédia de Brumadinho, e destacou que as empresas precisam adotar medidas para prevenir novas tragédias e garantir a reparação de danos aos atingidos.
A secretária-adjunta Lília Mascarenhas Sant'Agostino, da Secretaria de Geologia, Mineração e Transformação Mineral do Ministério de Minas e Energia, explicou que no Brasil a extração de recursos minerais é realizada por empresas privadas por meio de concessão dada pelo Ministério. “Para darmos uma concessão precisamos da licença ambiental”, disse, complementando que toda a fiscalização é feita pela Agência Nacional de Mineração.
“Nós tivemos, após Mariana, um esforço de aprimoramento da regulação para concessão e monitoramento dessas estruturas, mas esse esforço não foi suficiente para impedir um outro evento de ruptura”, disse, afirmando que isso desencadeou uma série de ações de segurança na área.
Daniel Lima, coordenador-geral de Geologia, Mineração e Transformação Mineral do Ministério de Minas e Energia, elencou ações adotadas a partir de então para evitar rompimentos, como a apresentação de relatórios de vistorias pelas empresas e maior capacidade de fiscalização por parte da Agência Nacional de Mineração.
Responsabilização fragilizada
“A ação penal proposta contra diretores e membros da governança foi decotada. A gente verificou algumas dificuldades de responsabilização: a limitação da responsabilidade penal à pessoa jurídica e o afastamento da imputação aos membros da governança, por falta de uma cultura de prevenção de risco de violação de direitos humanos por parte das companhias”, comentou Thales Cavalcanti Coelho, Coordenador do GT Direitos Humanos e Empresas da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (MPF).
“O que a gente identificou como principais dificuldades de acesso à justiça e reparação integral nesse processo são, em primeiro lugar, a ausência de definição legal de quem são os atingidos e quais são os seus direitos e a ausência de garantia de participação qualificada desses atingidos” complementou Thales, que afirmou ser fundamental a aprovação da política nacional aos atingidos por barragem.
Direito à informação
“O direito essencial de todas as pessoas é o direito à informação, uma pessoa bem informada consegue compreender qual a melhor decisão para a vida dela. O instrumento da assessoria técnica independente é possibilitar essa compreensão e também trazer uma tranquilidade sobre as incertezas dos impactos, a saúde humana, ambiental e a retomada de redes e suportes econômicos pelo resto da vida”, explicou Carolina Morishita Mota Ferreira, do Núcleo Estratégico da Defensoria Pública de Proteção aos Vulneráveis em Situações de Crise (DPMG).
“Não existe na lei aprovada em Minas Gerais e nem em nenhuma outra a obrigação de um suporte econômico para que as pessoas atingidas possam existir enquanto são descobertos as intensidades, impactos e duração dos empecilhos à produção econômica”, disse Carolina, defendendo a permanência de um auxílio que garanta a sobrevivência digna dos atingidos.
Violação sistemática de direitos
“Nós não conseguimos avançar ainda para sanar na raiz esses problemas. Sem participação popular não há solução, não há segurança para barragem. Sem participação popular, sem considerar os atingidos, não há soluções para esses crimes que vem acontecendo. A gente trata como crimes, tem responsáveis, tem pessoas que sabiam que poderiam acontecer, tem tecnologia que prevê, há possibilidades de evitar o que ocorreu”, disse Iury Charles Paulino Bezerra, Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), afirmando que o Estado brasileiro é conivente com a prática, que sistematicamente viola direitos.
Para a professora da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) Tatiana Ribeiro de Souza, que é do Comitê Nacional em Defesa dos Territórios Frente à Mineração, a recomendação 54 não foi cumprida pelo Brasil. “Nada foi cumprido, não há responsáveis punidos”, afirmou.
“Pessoas que vivem em casas provisórias durante seis anos porque ainda não foram reassentadas têm seu direito à moradia, à propriedade, à saúde física e mental e à dignidade respeitados? A população que convive com a poeira domiciliar contaminada por metais pesados e consome alimentos produzidos em áreas cheias de rejeitos oriundos das barragens rompidas tem o seu direito à saúde e à vida respeitados?”, provocou Tatiana.
Relatório preliminar
Relatório preliminar aponta avanço em relação ao cumprimento da recomendação 54. O documento destaca que a elaboração e a implementação da legislação sobre segurança de barragens vem sendo cumprida, com a atualização da Lei nº 12.334/2010, que estabelece a Política Nacional de Segurança de Barragens (PNSB), como resposta principalmente ao desastre da Vale em Brumadinho, por meio da Lei nº 14.066/2020.
A lei definiu medidas de prevenção a acidentes e desastres, estabeleceu novas responsabilidades do empreendedor minerário e proibiu tanto a construção ou o alteamento de barragem de mineração pelo método a montante quanto a implantação de estrutura cujos estudos de cenários de ruptura identifiquem a existência de comunidades na zona de autossalvamento.
Além dessa lei, já em vigor, algumas proposições legislativas sobre temas relacionados à segurança de barragens também foram aprovadas no âmbito da Câmara dos Deputados e aguardam apreciação pelo Senado, como a lei que trata da Política Nacional de Direitos das Populações Atingidas por Barragens (PNAB).
O relatório aponta ainda que foram pagos pela Fundação Renova cerca de R$ 4 bilhões em indenizações e auxílios financeiros emergenciais aos atingidos até o fim de abril de 2021, e que cerca de 323 mil pessoas receberam indenizações por danos materiais, morais e lucros cessantes, além do pagamento de Auxílio Financeiro Emergencial.
Na esfera criminal, o Ministério Público Federal em Minas Gerais (MPF/MG) denunciou 22 pessoas, entre eles, o diretor-presidente da Samarco, Ricardo Vescovi de Aragão, e as empresas Samarco, Vale, BHP Billiton e VogBR pelo desastre ambiental ocorrido em Mariana. Dentre as denúncias, 21 foram por homicídio qualificado com dolo eventual. No entanto, a Justiça Federal excluiu alguns integrantes da alta cúpula da Samarco, e em setembro de 2019 apenas nove dos 22 denunciados seguiam como réus, respondendo apenas pelos crimes de inundação qualificada e de desabamento tipificados no Código Penal, além de 12 crimes previstos na Lei de Crimes Ambientais, com penas reduzidas. Até a entrega do relatório preliminar, ninguém ainda havia sido punido.
No caso do Rompimento da Barragem da Mineradora Rolando Comércio de Areia, em Jacareí, a empresa foi multada em R$5 milhões pela Cetesb e em R$11.760 pela Prefeitura de Jacareí. A infração caracterizou-se com o lançamento irregular de rejeitos do tratamento de areia na lagoa da Mineração Meia Lua 1, empresa que estava com as atividades paralisadas, em processo de renovação de licença, que também foi multada no valor de R$1 milhão por instalar sem licença essa cava, que recebia água residual das operações de drenagens da empresa Rolando.
O relatório destaca ainda que não se sabe se as multas foram de fato pagas, e que não existem informações quanto à eventual indenização dos atingidos e sobre a responsabilização dos culpados.
Entenda os casos
O relatório explica que em 2015 aconteceu o rompimento da barragem de Fundão, da Samarco Mineração (controlada pelas Vale S/A e BHP Billiton Brasil Ltda.), em Mariana (MG). Foram lançados cerca de 45 milhões de metros cúbicos de rejeitos de minério de ferro, que se espalharam por 663 km de afluentes e do próprio rio Doce e chegaram a alcançar o oceano Atlântico, atingindo municípios de Minas Gerais e do Espírito Santo e causando 19 mortes.
Sobre danos humanos, o documento aponta que foram 321 mil impactados, 18 mortos, um desaparecido, 380 enfermos, 644 desabrigados, 716 desalojados e outros afetados, principalmente os que tiveram o abastecimento de água interrompido.
Ocorrido em 2016 no Município de Jacareí (SP), o rompimento da Barragem da Mineradora Rolando Comércio de Areia acabou despejando rejeitos de mineração de areia no rio Paraíba, prejudicando o abastecimento de São José dos Campos, Pindamonhangaba e Aparecida do Norte durante mais de um dia. Na tarde do dia seguinte, o vazamento já havia sido contido.
Com o lançamento, houve uma elevação do nível da lagoa, o que provocou o rompimento da barragem, instalada entre a lagoa e o rio, mas ninguém ficou ferido. Todavia, o índice que mede turbidez da água do rio Paraíba do Sul foi de 20 UNT para 1.080 UNT, sendo que a água é considerada potável até 5 UNT. Os níveis de ferro e alumínio também ficaram acima do normal, mas o índice não chegou a oferecer risco nem aos peixes, nem para o consumo humano.
Histórico de atuação
A CDHM vem atuando nos casos de rompimento das barragens de Mariana e Brumadinho, por meio da realização de cinco audiências públicas e de duas diligências às regiões atingidas, a primeira em 2016, a municípios de Minas Gerais e do Espírito Santo, com o objetivo de apurar violações de direitos humanos decorrentes do rompimento da barragem, e outra em 2019, a municípios do Espírito Santo, para verificar a situação das populações atingidas pelos rejeitos provenientes do rompimento da barragem do Fundão
Fábia Pessoa/ CDHM