Texto Base da Consultoria Legislativa

 

 

Trabalho Escravo Contemporâneo – 130 anos após a Lei Áurea

 

TIPO DE TRABALHO: ESTUDOS E CONSULTAS - OUTROS

SOLICITANTE: CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO E INFORMAÇÃO

ASSUNTO: Elaboração de trabalho para a atividade “Fique por Dentro”. Tema: Trabalho Escravo

Autora:     Josiane Morais Dias
Consultora Legislativa da Área V

Versão em PDF : Trabalho Escravo Contemporâneo 

 

Apresentação

   Em 13 de maio de 1888, a Lei Áurea (Lei nº 3.353) abolia oficialmente a escravidão no Brasil, sem, contudo, assegurar aos ex-cativos as condições de inserção e proteção social necessárias para sua plena cidadania. Marginalizados, os negros recém-libertos ficariam à mercê da superexploração de sua mão de obra. A escravidão perdia seu status legal, mas o legado de mais de 300 anos de um sistema socioeconômico baseado no trabalho escravo deixaria suas marcas nas relações sociais e de trabalho no país (Miraglia, 2011).

   Ainda hoje, 130 anos após a assinatura da Lei Áurea, muitos trabalhadores são submetidos ao trabalho forçado ou a condições degradantes. Embora diversas da escravidão existente nos períodos colonial e imperial brasileiro, as atuais formas predatórias de exploração de mão de obra caracterizam a chamada escravidão contemporânea ou trabalho escravo contemporâneo.

  Apesar de haver certa celeuma acerca da utilização da nomenclatura "trabalho escravo" para referir-se às formas atuais de escravidão, bem como acerca dos elementos para sua caracterização, com base no sistema internacional de proteção dos direitos humanos, pode-se afirmar que o trabalho escravo se configura atualmente não apenas pela restrição da liberdade, mas também pela violação da dignidade da pessoa humana. Para a Organização da Nações Unidas (ONU), constituem formas contemporâneas de escravidão o trabalho forçado, a servidão doméstica, as formas servis de casamento e a escravidão sexual (ONU no Brasil, 2016).

 

Compromisso internacional de erradicação do trabalho escravo

   O Brasil é signatário de diversos instrumentos internacionais por meio dos quais se compromete a combater e erradicar o trabalho escravo. O mais antigo é a Convenção sobre a escravatura, de 1926, assinada no âmbito da Sociedade das Nações, antecessora da Organização das Nações Unidas (ONU). Em seu artigo primeiro a Convenção define escravidão como o estado ou condição de um indivíduo sobre o qual se exercem, total ou parcialmente, os atributos do direito de propriedade. Em 1956, a Convenção Suplementar sobre Abolição da Escravatura, do Tráfico de Escravos e das Instituições e Práticas Análogas à Escravatura, veio ampliar o conceito de escravidão, passando a incluir a servidão por dívidas, a servidão ligada à gleba e a exploração da mulher, enquanto propriedade (Rosso, 2018).

  No âmbito da Organização Internacional do Trabalho (OIT), agência da ONU especializada em questões de trabalho, os documentos mais importantes para o combate ao trabalho escravo são as Convenções nºs  29 e 105, de 1930 e 1957, respectivamente, por meio das quais os países membros se comprometeram a erradicar o trabalho forçado ou obrigatório, definido como todo trabalho ou serviço exigido de um indivíduo sob ameaça de qualquer penalidade e para o qual ele não se ofereceu de espontânea vontade[1]. Em 2014, a OIT aprovou o Protocolo Adicional e a Recomendação Acessória à Convenção nº 29, ampliando o conceito de trabalho forçado para incluir o tráfico de pessoas e a exploração sexual, além de propor novas formas de enfrentamento e de proteção às vítimas (ainda pendente de ratificação pelo Brasil).

   Também merece destaque a Convenção nº 182, de 1999, da OIT, sobre a Proibição das Piores Formas de Trabalho Infantil e a Ação Imediata para a sua Eliminação, que proíbe especificamente o trabalho escravo infantil e práticas análogas à escravidão, tais como a venda e tráfico de crianças, a servidão por dívidas e a condição de servo, e o trabalho forçado ou obrigatório, inclusive o recrutamento forçado ou obrigatório de crianças para serem utilizadas em conflitos armados, a exploração sexual, e o trabalho exercido em condições suscetíveis de prejudicar a saúde, a segurança ou a moral das crianças.

   Diversos outros instrumentos internacionais trazem a previsão de proibição da escravidão, servidão e tráfico de pessoas, a exemplo do art. 4º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, o art. 8º do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, de 1966, e o art. 6º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, de 1969, além do protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição ao Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças, de 2003.

   Para além das previsões específicas contra o trabalho forçado, há ainda as disposições que condenam a tortura e tratamentos cruéis e degradantes, como o art. 7º do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e a Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos Cruéis, Desumanos e Degradantes, de 1984.

   Desde 1999, as ações da OIT são orientadas pelo conceito de trabalho decente, definido como o trabalho adequadamente remunerado, exercido em condições de liberdade, equidade e segurança, capaz de garantir uma vida digna. O conceito foi incorporado à Agenda de Desenvolvimento Sustentável (Agenda 2030), que prevê um plano de ação para a ONU e seus países membros voltados para a promoção do desenvolvimento sustentável. Em sua meta 8.7, a agenda cuida da erradicação do trabalho forçado, da escravidão moderna e do tráfico de pessoas (Abramo, 2015).

   No âmbito regional, em junho de 2015, os ministros do Mercosul aprovaram Declaração Contra o Tráfico de Pessoas e o Trabalho Escravo, pela qual os países membros se comprometeram a implementar políticas regionais para prevenção, combate e reinserção das vítimas desses crimes no mercado de trabalho.

 

O combate ao trabalho escravo na legislação nacional

    Nos termos do art. 1o da Constituição Federal de 1988 (CF/88), a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa constituem fundamentos do Estado brasileiro (art. 1º, incisos III e IV). Mais adiante, em seu artigo 5º, caput, garante-se a igualdade de todos perante a lei, e a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. O inciso III do mesmo art. 5º veda a tortura e o tratamento desumano ou degradante, ao passo que o inciso XV protege a liberdade de locomoção e o inciso XLVI proíbe a imposição de pena de trabalhos forçados ou cruéis. O artigo 7º, por seu turno, traz um elenco de direitos trabalhistas fundamentais, indisponíveis, em regra. Todo esse arcabouço normativo converge para a inadmissibilidade da permanência do trabalho escravo no Brasil e dá suporte para sua criminalização.

   O art. 149 do Código Penal, alterado pela Lei nº 10.803, de 2003, prevê o crime de redução a condição análoga à de escravo, que se configura quando há (a) submissão a trabalhos forçados; (b) jornada exaustiva; (c) sujeição a condições degradantes de trabalho; d) ou restrição por qualquer meio, da locomoção do trabalhador em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto (servidão por dívida).

   Em 2016, a Lei nº 13.344 inseriu, no Código Penal, o art. 194-A que trata do crime de Tráfico de Pessoas, definido como a conduta de agenciar, aliciar, recrutar, transportar, transferir, comprar, alojar ou acolher pessoa, mediante grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso, com a finalidade de (a) remover-lhe órgãos, tecidos ou partes do corpo; (b) submetê-la a trabalho em condições análogas à de escravo; (c) submetê-la a qualquer tipo de servidão;(d) adoção ilegal; (e) ou exploração sexual.

   Outros crimes relacionados ao trabalho escravo estão previstos no art. 203 do Código Penal, que descreve a conduta de frustrar, mediante fraude ou violência, direito assegurado pela legislação do trabalho, inclusive obrigando ou coagindo alguém a usar mercadorias de determinado estabelecimento, para impossibilitar o desligamento do serviço em virtude de dívida, ou por meio da retenção de seus documentos pessoais ou contratuais; e no art. 207 do mesmo diploma, que prevê o crime de aliciar trabalhadores, com o fim de levá-los de uma para outra localidade do território nacional (o chamado "gato", figura importante no ciclo da escravidão no meio rural).

   A legislação brasileira de combate ao trabalho escravo é considerada referência pelos organismos internacionais de proteção dos direitos humanos e do trabalho, uma vez que conjuga as ofensas à liberdade e à dignidade do trabalhador com as garantias previstas na Declaração Internacional dos Direitos Humanos, nas Convenções da OIT, e em diversos compromissos assumidos pelo Brasil na esfera internacional.

 

Caracterização do trabalho escravo contemporâneo

   A escravidão contemporânea no Brasil atinge trabalhadores urbanos e rurais e cada vez mais vitima estrangeiros que deixam seus países em busca de melhores condições de vida e trabalho.

   No meio rural, os trabalhadores reduzidos à condição análoga à escravidão são geralmente aliciados pelos "gatos", na época das safras. Recrutados em localidades marcadas pela miséria, em situação de extrema vulnerabilidade, os trabalhadores são seduzidos com a promessa de emprego e remuneração farta para trabalhar em fazendas distantes de sua residência, onde acabam sendo submetidos a trabalhos forçados, jornadas exaustivas, em condições degradantes de trabalho, sem receber pagamento, não raro com a liberdade cerceada, mediante ameaças, e sob vigilância armada.

   O ciclo da escravidão rural envolve vários agentes. Além do gato, há donos de pensões e transportadores, com os quais o trabalhador inicia uma cadeia de dívidas com alimentação, moradia e transporte, as quais dificilmente poderão ser quitadas, restando o trabalhador impossibilitado de se desligar do serviço, submetido assim à escravidão por dívida (Plassat, 2008).

   De se ressaltar que não é qualquer condição degradante que configura o trabalho escravo, mas aquelas aviltantes à dignidade da pessoa humana (Plassat, 2008), como têm sido considerados pela fiscalização os alojamentos precários, sem higiene, a falta de alimentação adequada, falta de água potável, e demais tratamentos que põem em risco a saúde, a segurança e a vida dos trabalhadores.

   Dentre as atividades em que há maior incidência de trabalho escravo no meio rural registram-se as empresas agropecuárias, carvoarias, mineradoras, madeireiras e usinas de álcool e açúcar, exploradas principalmente nos Estados do Pará, Maranhão, Piauí, Tocantins, Goiás, Mato Grosso e Bahia (Trevisam, 2015).

  Embora o trabalho escravo rural seja o mais emblemático dessa prática perversa, os casos de escravidão urbana têm se tornado mais frequentes ou visíveis. Na área urbana, a exploração de mão de obra escrava se manifesta principalmente nas atividades de construção civil e têxtil, na região sudeste, São Paulo, em especial (Trevisam, 2015). Recentemente, redes de lanchonete cariocas também foram incluídas na “lista suja” de empregadores publicada pelo Ministério do Trabalho (Martins, 2018). Nessas atividades destacam-se as jornadas exaustivas.

  Aqui, as vítimas são geralmente migrantes do nordeste do país ou imigrantes de países vizinhos que partem para os grandes centros urbanos em busca de melhores condições de vida e trabalho. Vulneráveis, acabam expostos ao trabalho em condições degradantes, jornadas excessivas, salários ínfimos, moradia insalubre, maus tratos, assédio moral e sexual, ameaças, servidão por dívidas, tal qual os trabalhadores rurais.

   Quanto aos imigrantes, há ainda o agravante de se encontrarem em situação de ilegalidade, o que os torna ainda mais vulneráveis à ação dos exploradores. A Lei nº 13.445, de 2017, instituiu a Lei de Migração com louvável viés mais protetor que sua antecessora, a Lei nº 6.815, 1980 (Estatuto do Estrangeiro), passando a autorizar a residência ao imigrante que tenha sido vítima de tráfico de pessoas, de trabalho escravo ou de violação de direito agravada por sua condição migratória.

   Também ganha cada vez mais atenção a questão do tráfico de pessoas, especialmente de mulheres. As mulheres vítimas desse crime são geralmente recrutadas no Brasil e traficadas para prostituição na Europa (Silva, 2011).

 

Combate ao trabalho escravo: entre avanços e retrocessos

   O combate ao trabalho escravo ganha força a partir de 1995, logo após o Brasil ter sido denunciado junto à Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA), no Caso José Pereira[2].

   Naquele ano, foi criado o Grupo Executivo de Repressão ao Trabalho Forçado (Gertraf), integrado por diversos Ministérios, com a finalidade de coordenar e implementar as providências necessárias à repressão ao trabalho forçado. Também foi instituído o Grupo Especial de Fiscalização Móvel no Ministério do Trabalho (GEFM), formado por auditores fiscais do trabalho, com o apoio de membros do Ministério Público do Trabalho (MPT) e do Ministério Público Federal (MPF), da Defensoria Pública da União (DPU) e das Polícias Federal e Rodoviária, responsável pela investigação e autuação dos infratores. O grupo permanece no centro das atividades de combate ao trabalho escravo no Brasil, tendo resgatado mais de 52 mil trabalhadores desde sua criação (Jornal Nacional, 2018).

   Como solução amistosa do Caso José Pereira, em 2003, o Brasil reconheceu formalmente a existência de trabalho escravo em seu território, assumindo compromissos para combatê-lo. Desde então, diversas ações foram desenvolvidas pelo país objetivando a institucionalização do combate ao trabalho escravo enquanto política prioritária de Estado.

   Em 2003, foi criado o 1º Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo, propondo medidas a serem cumpridas pelos diversos órgãos dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, Ministério Público e entidades da sociedade civil brasileira, atualizado, em 2008, pelo 2º Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo.

   No mesmo ano, o Gertraf foi substituído pela Comissão Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae), vinculada à Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH), que passou a ser integrada também por representantes de entidades de classe e organizações não governamentais.

   A Lei nº 10.803, de 2003, alterou o art. 149 do Código Penal, que prevê o crime de redução a condição análoga à de escravo, passando a descrever condutas típicas caracterizadoras do trabalho em condições degradantes, e alçando o país a uma das legislações mais avançadas do mundo no que respeita ao combate ao trabalho escravo.

   Outro importante instrumento para o combate ao trabalho escravo foi o Cadastro de Empregadores que tenham mantido trabalhadores em condições análogas à de escravo. Instituída inicialmente pelas Portarias 1.234/2003 e 540/2004 do MTb, a "lista suja", como ficou conhecido o cadastro, passou a arrolar os infratores condenados em decisão administrativa final, por manter trabalhadores submetidos a condições análogas à de escravo. A exclusão do nome do infrator do Cadastro, condicionada ao pagamento das multas fiscais resultantes e da quitação de eventuais débitos trabalhistas e previdenciários, depende de período de prova de dois anos e de não reincidência.

   A inclusão na lista suja prejudica a obtenção de empréstimos junto a instituições públicas federais, além de impactar na análise de risco pelas instituições privadas de crédito. Ademais, a divulgação perante a sociedade, além de expor negativamente o infrator, pode prejudicá-lo no âmbito da cadeia de produção na qual esteja inserido, uma vez que as grandes empresas não querem ter seus nomes vinculados ao trabalho escravo.

   A última “lista suja”, publicada em 06/04/2018 pelo Ministério do Trabalho, totaliza 165 empregadores, responsáveis por manter 2.264 trabalhadores em situação análoga à escravidão (Locatelli, 2018).

   Em 2005, foi lançado o Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo, reunindo empresas brasileiras e multinacionais que se comprometeram a excluir de suas cadeias de produção exploradores de mão de obra escrava.

   Mais recentemente, em 2014, o combate ao trabalho escravo no Brasil ganhou reforço com assento constitucional. Após anos de tramitação, a chamada “PEC do trabalho escravo” deu origem à emenda constitucional nº 81, que passou a prever a expropriação de propriedades rurais e urbanas onde for constatada a exploração de trabalho escravo. Embora pendente de lei regulamentadora, a disposição constitucional tem o condão de dissuadir os proprietários que fazem uso da exploração de mão de obra escrava.

   Em 2016, a Lei no 13.344 inseriu o art. 149-A no Código Penal, passando a prever o crime de tráfico de pessoas.

   A implementação dessas medidas fez com que o Brasil se tornasse referência mundial no combate ao trabalho escravo, conforme declarado pela ONU em 2016. Contudo, na mesma oportunidade, a ONU alertou para a possibilidade de retrocessos das políticas de combate ao trabalho escravo no país. São três as preocupações mencionadas nesse sentido (ONU no Brasil, 2016).

   Em primeiro lugar, a permanente discussão sobre a abrangência do conceito de trabalho escravo e as propostas de restrição de sua definição jurídica para abarcar apenas as situações em que há cerceamento de liberdade. Nesse sentido o Projeto de Lei nº 3.842, de 2012, e o Projeto de Lei do Senado nº 432, de 2013.

   O segundo possível fator de retrocesso são os constantes ataques à “lista suja”, pela mobilização das vias judiciais e, mais recentemente, por alteração da Portaria reguladora do cadastro de empregadores flagrados em exploração de trabalho escravo. A famigerada Portaria MTb nº 1.129, de 13 de outubro de 2017, dentre outras previsões questionáveis, reduziu o conceito de trabalho escravo, restringiu os poderes de atuação dos auditores fiscais e subordinou à aprovação ministerial a divulgação da lista suja. Após ter sido suspensa pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em medida cautelar, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 489, a Portaria foi substituída pela Portaria MTb Nº 1.129 de 13/10/2017, que restabeleceu em boa parte as condições anteriores.

   O terceiro desafio para as políticas públicas de erradicação do trabalho escravo é o enfraquecimento dos Grupos Móveis de Fiscalização, seja pela redução do número de auditores fiscais do trabalho, devido à não realização de concursos públicos para a carreira, seja pelo corte de verbas para o desenvolvimento de suas ações (Martins R. , 2017).

   Soma-se a esses fatores a ideia de impunidade que cerca o crime de redução a condição análoga à de escravo. As penas de reclusão de 2 a 8 anos e multa previstas no art. 149 do Código Penal são bastante reduzidas se comparadas à legislação de países avançados. Na França, a escravidão é punida com pena de reclusão de 20 anos; na Itália, de 8 a 20 anos; nos Estados Unidos, 20 anos, e no Reino Unido, com prisão perpétua. Por outro lado, a morosidade na entrega na prestação jurisdicional também contribui para a continuidade dessa forma nefasta de exploração. Ademais, não se pode olvidar a existência de certa resistência por parte da magistratura em caracterizar o trabalho escravo quando não há cerceamento de liberdade (Haddad, 2016).

   Finalmente, o crime de redução a condição análoga à de escravo parece não se enquadrar na máxima segundo a qual o crime não compensa. Os lucros com a exploração da mão de obra são altíssimos, os gastos com os trabalhadores são ínfimos, posto que não há qualquer preocupação com condições dignas de trabalho, e a impunidade parece acobertar os infratores.

   A persistência do trabalho escravo no Brasil e principalmente as dificuldades do Estado brasileiro de fazer face a esse crime bárbaro, levou a sua condenação, em 2016, pela CIDH, no caso Fazenda Brasil Verde[3]. Na sentença, a CIDH destacou que a pobreza “é o principal fator da escravidão contemporânea no Brasil, por aumentar a vulnerabilidade de significativa parcela da população, tornando-a presa fácil dos aliciadores para o trabalho escravo”.

 

Proposições legislativas em tramitação no Congresso Nacional

   No âmbito do Congresso Nacional, estão em tramitação várias proposições destinadas a combater o trabalho escravo, com destaque para a Proposta de Emenda à Constituição nº 327, de 2009, que visa a conferir competência penal à justiça do trabalho, em especial, dos crimes contra a organização do Trabalho, os decorrentes das relações de trabalho, sindicais ou do exercício do direito de greve, a redução do trabalhador à condição análoga à de escravo, os crimes praticados contra a administração da Justiça do Trabalho e outros delitos que envolvam o trabalho humano.

   Tramita também o PL nº 2022/1996, que altera a Lei nº 8.666 de 1993, para incluir vedações à formalização de contratos com órgãos e entidades da Administração Pública e à participação em licitações por eles promovidas às empresas que, direta ou indiretamente, utilizem trabalho escravo na produção de bens e serviços. No mesmo sentido, o PL nº 5216/2016, que pretende inserir as sanções por trabalho escravo dentre as hipóteses de inscrição no Cadastro Nacional de Empresas Inidôneas e Suspensas.

   O PL nº 3757/1997 pretende incluir, no art. 149 do Código Penal, maior proteção contra o trabalho escravo infantil.

   O PL nº 5016/2005 (PLS nº 208/2003, no Senado) estabelece penalidades para o trabalho escravo, altera dispositivos do Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), e da Lei nº 5.889, de 8 de junho de 1973, que regula o trabalho rural, e dá outras providências. À proposição foram apensados outros 22 projetos de lei, que disciplinam o combate ao trabalho escravo em diversas frentes. Na seara penal, destacam-se os PLs nºs  2667/2003 e 3283/2004, que objetivam tornar hediondos os crimes de redução à condição análoga à de escravo e aliciamento de trabalhadores de um local para outro do território nacional; o PL nº 2668/2003 que agrava as penas para esses crimes; o PL nº 4017/2012, que especifica as hipóteses de configuração do crime do art. 149, além de aumentar as penas nele  previstas; o PL nº 8015/2010, que dispõe sobre perdimento de bens utilizados na prática do crime de redução à condição análoga à de escravo; e o PL nº 4128/2015, que prevê aumento de pena para o crime do art. 206 do Código Penal (recrutamento fraudulento com finalidade migratória).

   No âmbito econômico, os PLs nºs 3500/2004 e 408/2015 vedam destinações de recursos de empresas públicas e sociedades de economia mista a pessoas físicas ou jurídicas condenadas por empregar trabalhadores em regime de trabalho análogo à escravidão; o PL nº 3524/2004 proíbe a concessão de benefícios e incentivos fiscais e financeiros públicos a pessoas físicas ou jurídicas que não cumprem o disposto na legislação trabalhista, que submetem trabalhadores a formas degradantes de trabalho ou que os reduzem a condições análoga à de escravo (assemelham-se os PLs nºs 5209/2013, 311/2015 e PL 3076/2015); o PL nº 3107/2012 determina a cassação da inscrição no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ) de empresas que façam uso direto ou indireto de trabalho escravo (No mesmo sentido o PL nº 1870/2015, o PL nº 6476/2016,o PL nº 7014/2017 e o PL nº 7946/2017).

   Também é importante mencionar os projetos de lei que tratam da promoção da inserção e proteção social da população negra e da superação da histórica discriminação e exclusão resultantes de séculos de escravidão no país, como o PL nº 3198/2000, que institui o Estatuto da Igualdade Racial; o PL nº 5291/2001, que dispõe sobre a reparação pelos danos causados pela escravidão, e o PL nº 331/2007, que institui, no âmbito da Administração Pública Federal, a Semana da Consciência Negra.

 

Considerações Finais

   A erradicação do trabalho escravo deve constituir política prioritária do Estado brasileiro, não apenas pelos compromissos internacionais assumidos, mas por se tratar de afronta inadmissível à dignidade da pessoa humana, fundamento último de nosso estado democrático de direito.

   Seu enfrentamento, a ser protagonizado pelo Estado por meio da elaboração legislativa e da formulação de políticas públicas, deve se dar não somente de forma repressiva, com o resgate dos trabalhadores e punição dos responsáveis por esse crime. Por estar profundamente enraizado na miséria e desigualdade social, é imprescindível a atuação preventiva, voltada à superação da vulnerabilidade desses trabalhadores, através da promoção de direitos básicos, como saúde, educação e moradia, para que se rompa o ciclo de exploração. A participação das organizações não governamentais é fundamental nesse processo, seja como propulsora de ações através das denúncias, com a exposição do drama de milhares de trabalhadores brasileiros vitimados pela escravidão contemporânea, seja pela participação na elaboração e implementação de políticas públicas para erradicação dessa prática hedionda.



 [1] A convenção exclui do conceito de “trabalho forçado ou obrigatório” os seguintes: a) qualquer trabalho ou serviço exigido em virtude das leis sobre o serviço militar obrigatório e que só compreenda trabalhos de caráter puramente militar; b) qualquer trabalho ou serviço que faça parte das obrigações cívicas normais dos cidadãos de um país plenamente autônomo; c) qualquer trabalho ou serviço exigido de um indivíduo como consequência de condenação pronunciada por decisão judiciária, contanto que esse trabalho ou serviço seja executado sob a fiscalização e o controle das autoridades públicas e que dito indivíduo não seja posto à disposição de particulares, companhias ou pessoas privadas; d) qualquer trabalho ou serviço exigido nos casos de força maior, isto é, em caso de guerra, de sinistro ou ameaças de sinistro, tais como incêndios, inundações, fome, tremores de terra, epidemias, e epizootias, invasões de animais, de insetos ou de parasitas vegetais daninhos e em geral todas as circunstâncias que ponham em perigo a vida ou as condições normais de existência de toda ou de parte da população; e) pequenos trabalhos de uma comunidade, isto é, trabalhos executados no interesse direto da coletividade pelos membros desta, trabalhos que, como tais, podem ser considerados obrigações cívicas normais dos membros da coletividade, contanto, que a própria população ou seus representantes diretos tenham o direito de se pronunciar sobre a necessidade desse trabalho.

[2] Em 1989, José Pereira foi gravemente ferido, e seu colega morto, ao tentarem escapar da Fazenda “Espirito Santo”, sul do Pará, para onde tinham sido atraídos com falsas promessas, e acabaram submetidos à trabalhos forçados, com restrição de liberdade, e em condições degradantes. Outros 60 trabalhadores viviam sob as mesmas condições. Em 16 de dezembro de 1994, as organizações não governamentais Américas Watch e Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) denunciaram o Brasil junto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, por violações de direitos humano, e falta de garantias e de proteção judicial.

[3] Denúncia apresentada em 12 de novembro de 1998, pela Comissão Pastoral da Terra e pelo Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL), relatando a prática de trabalho forçado e servidão por dívidas na Fazenda Brasil Verde, localizada no Estado do Pará, vitimando 85 trabalhadores. O Brasil foi condenado por violação do direito a não ser submetido a escravidão e ao tráfico de pessoas, por violar as garantias judiciais de devida diligência e de prazo razoável, e de proteção judicial.

Referências bibliográficas

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