Os velhos homens humanos

são os velhos homens humanos
chegando, passando, atravessando
(Caetano Veloso)


Seu Cícero catava papel em Brasília no tempo do guaraná de rosca. De seu, tinha mulher e filho, além da carrocinha cheia de lixo seco, mas sem cavalo – ou melhor, o cavalo era ele. Com vinte e cinco anos, resolveu conhecer o mundo: Catalão e Rondônia. Só levou a família e as ferramentas – “chegando lá, eu faço um carrinho”, foi o que ele pensou. Em Catalão, fez o carrinho, fez um barraco, viveu de bicos. Desistiu de Rondônia quando soube que bico, lá, havia de sobra, mas só no posto de pistoleiro-assassino. Não lhe fez mal a desistência: seu Cícero não fala tudo, mas na humildade da sua prosa deixa escapar outros lugares por onde andou, carregando a família e as ferramentas – uma visita aos pais em Pernambuco, o filho que ficou não sei onde, um agregado que se despediu numa estrada de terra há vinte e cinco anos e nunca mais deu notícia.


E como daria? Seu Cícero não tinha caixa postal. De Catalão a Pernambuco, sem fazer caso da própria coragem, âncora de si mesmo com seu par de ferramentas, conheceu o mundo catando papel, e voltou a Brasília para catar papel. Não que fosse um trabalho dos mais valorizados. Os catadores se escondiam, com medo de gente, atrás da Telebrasília. O governo não conseguia recolher o lixo amontoado ao redor dos postes fora do Plano Piloto, mas nem por isso dava moleza. Volta e meia a polícia tirava tudo dos catadores, deixando de brinde só umas bordoadas, e eles recomeçavam do zero. (Suspeito que, para seu Cícero, esse não era um grande problema.) O povo da cidade, fina-flor da high society que joga lixo pela janela do carro, até que tolerava a profissão, desde que o profissional passasse bem depressa e não deixasse rastro.


Hoje os catadores estão mais organizados. Seu Cícero pertence a uma cooperativa e é dono de um lote. Apesar de analfabeto, tem computador e um filho estudado, que foi até a quinta série. Quando lhe perguntam se tem um sonho, responde sem convicção que bem gostaria de trocar a casa de tábua por outra, de alvenaria. Hmmm, sei: casa de alvenaria. Seu Cícero não é do tipo que olhe para trás, que sofra nostalgias. Mas seu discurso vai deixando vestígios. A pilha de discos do Amado Batista já está dessa altura, indica o catador de aventuras com a mão erguida. Nem precisava dizer, seu Cícero. Impossível deixar de reconhecê-lo. Os românticos são tão raros.

Lorenza Costa