Observatório Parlamentar da RPU verifica evolução dos direitos indígenas no Brasil

Participantes manifestaram preocupação com iniciativas legislativas que podem contribuir com a violação dos direitos dos povos indígenas, como a tese do Marco Temporal e o não cumprimento da Convenção 169 da OIT, que trata da consulta livre, prévia e informada
23/08/2021 16h30

A Comissão de Direitos Humanos e Minorias verificou na última sexta-feira (20), no âmbito do Observatório Parlamentar da RPU, a evolução das recomendações feitas ao Brasil para melhorar a situação dos direitos humanos dos povos indígenas.

A audiência pública, presidida pela 3ª vice-presidente da CDHM, deputada Vivi Reis (PSOL/PA), foi a 12ª realizada pelo Observatório e verificou 25 recomendações feitas ao Brasil no último ciclo da Revisão Periódica Universal, iniciado em 2017. A Fundação Nacional do Índio (FUNAI), apesar de convidada para o encontro, não enviou representante.

“Lamentamos a ausência do órgão que tem como atribuição coordenar a política indigenista no país e é responsável direto pela maior parte das recomendações que serão aqui debatidas”, disse Reis ao início da audiência.

Jan Jarab, Representante Regional do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, lembrou que mais de 10% das 242 recomendações feitas ao Brasil mencionam expressamente os direitos humanos dos povos indígenas, mostrando a relevância da garantia dos direitos indígenas no cenário internacional.

Jarab prestou solidariedade à Associação de mulheres indígenas Munduruku e a outras associações que vêm sofrendo com ameaças e reforçou pedido ao Estado brasileiro para que investigue os ataques e proteja as comunidades indígenas.

“As recomendações aceitas pelo Brasil pedem para que se garantam que os povos indígenas estejam protegidos de todas as formas de violência e discriminação”, complementou.

Jan Jarab afirmou que as Nações Unidas veem com preocupação as práticas ilegais em territórios indígenas, como o garimpo, que contaminam o solo e a água e representam risco para o modo de vida dos povos indígenas. Jarab falou ainda sobre iniciativas legislativas que terão impacto nos direitos indígenas, como o Projeto de Decreto Legislativo 177, que retira do Estado a obrigação da consulta prévia estabelecida pela convenção 169 da OIT.

“Levando em consideração o princípio de não retrocesso para os compromissos em direitos humanos, insto os parlamentares para impedirem que o Estado não retroaja nesses compromissos”, disse Jan Jarab.

“A existência de um Observatório Parlamentar para implementação das recomendações do terceiro ciclo da RPU no Brasil representa uma oportunidade para enfatizar a necessidade de ações imediatas e específicas, em particular, no âmbito legislativo, para garantir o respeitos dos direitos individuais e coletivos dos povos indígenas no Brasil, em conformidade com a declaração das Nações Unidas sobre os direitos dos povos indígenas”, apontou Francisco Cali Tzay, Relator Especial das Nações Unidas para Direitos dos Povos Indígenas.

O relatório preliminar aponta que até o momento, das 25 recomendações feitas ao Brasil em 2017 sobre os direitos dos povos indígenas, 17 não foram cumpridas e oito estariam em retrocesso.

Paralisação das demarcações

Jan Jarab reforçou que “são inúmeras as recomendações da Revisão Periódica Universal para que o Estado dê continuidade ao processo de demarcação das terras indígenas. Isso precisa ser feito com celeridade, considerando seus direitos históricos, suas culturas e meios de subsistência. Os povos indígenas são um elemento vital para a diversidade e para o avanço de nossas sociedades”.

Eliana Torelly, Coordenadora da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal, apontou que os processos de demarcação de terra indígena estão paralisados. “O que se tem conseguido avançar nesse tema tem sido por conta de decisões judiciais. O MPF tem recebido informação de que vários processos já aptos à publicação do relatório de identificação e delimitação, portaria declaratória ou mesmo do decreto, estão sendo restituídos à Diretoria de Proteção Territorial da FUNAI para adequação à tese do Marco Temporal”.

Esequiel Roque, Secretário Adjunto Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, argumentou que o processo de demarcação dos territórios estaria paralisado devido à decisão do Ministro Fachin, que teria orientado a suspensão de todos os processos judiciais de reintegração e de anulação de demarcações de terras indígenas no Brasil enquanto durar o estado de calamidade pública.

Para Cleber César Buzatto, Secretário adjunto do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), porém, a “decisão do ministro Fachin é pró-ativa no sentido de defender os direitos dos povos indígenas contra ações judiciais que questionam a regularidade dos procedimentos administrativos de demarcação de terras indígenas e não tem nada a ver com a questão de proibir que o governo dê seguimento aos procedimentos de demarcação”.

Em 2020, Fachin deu duas liminares sobre a matéria. Suspendeu os efeitos do Parecer 001/2017 da Advocacia-Geral da União (AGU), que determinava a aplicação da tese do marco temporal.
Além disso, decidiu pela suspensão das “ações possessórias, anulatórias de processos administrativos de demarcação, bem como os recursos vinculados a essas ações”, mas sem prejuízo dos direitos territoriais dos povos indígenas.
O tema será julgado pelo Plenário do STF nos próximos dias, quando será decidido o caso dos Xokleng.

Representantes do Governo

Para Esequiel Roque do Espírito Santo, do MMFDH, o governo vem trabalhando para a garantia dos povos indígenas. Esequiel afirmou que o MMFDH vem realizando cursos, acordos de cooperação, para a formação de professores e cumprimento da Lei nº 11.645, sobre o estudo da história e cultura indígena e afro-brasileira nas escolas.

Roque ainda elencou ações como distribuição de cestas básicas, kits de higiene e vacinação de grande parte da população indígena contra covid.

Geórgia Belisario Mota, Coordenadora de Relatórios Internacionais de Direitos Humanos da Assessoria Especial de Assuntos Internacionais do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, apontou a transversalidade das recomendações e afirmou que a RPU deve ser compreendida como um exercício mais amplo e não reduzido a informações situacionais.

Representantes dos povos indígenas

“Eu penso que a ausência hoje do órgão indigenista oficial corrobora com as ausências que estão presentes neste relatório, ausências de políticas públicas ao enfrentamento a Covid, ausência de uma política eficiente de demarcação de terras, ausência de um projeto político ambiental”, apontou Maurício Terena, Representante da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), indicando que outro ponto abordado pelo relatório e que vem trazendo preocupação é a criminalização de lideranças indígenas.

“Para que nós possamos continuar existindo como povos indígenas a política de demarcação de terras precisa ser implementada”, reforçou.

“Retirar a OIT [Convenção 169] de nós é retirar a voz dos povos indígenas, é retirar o nosso direito de consulta prévia. É necessário que se inicie uma articulação dentro do Congresso Nacional para que se freie essa retirada. Retirar essa convenção é retirar a participação popular dos povos indígenas nas decisões que mais nos interessam”, afirmou Maurício.

Cleber César Buzatto, do CIMI, afirmou que, segundo o observado pela instituição, as recomendações não estão sendo cumpridas pelo Estado. “O CIMI tem produzido anualmente o relatório de violência contra os povos indígenas do Brasil, é muito evidente o não reconhecimento do direito fundamental dos povos indígenas às suas terras. São 829 casos de omissão e morosidade na regularização de terras indígenas do país em 2019. Um outro dado relativo à questão da proteção territorial é que foram identificados 256 casos de invasões possessórias, exploração ilegal de recursos naturais e danos diversos ao patrimônio. Na nossa avaliação, o governo brasileiro não tem cumprido nenhuma destas recomendações”.

“Essa portaria [IN 9 da FUNAI] está facilitando o que a gente pode caracterizar como uma nova fase de esbulho possessório contra terras indígenas, inclusive terras indígenas em processos de demarcação em fases avançadas, e isso evidentemente nos preocupa”, afirmou Cléber.

Ministério Público Federal

Eliana Torelly destacou que o órgão vem atuando em diversos casos envolvendo o combate ao preconceito, à discriminação, ao racismo e à violência contra os povos indígenas, inclusive em ação civil que busca a declaração da omissão do Estado brasileiro na condução da política indigenista e a violação de direitos fundamentais do povo Waimiri Atroari, em razão do fomento ao discurso de ódio e da defesa de um projeto integracionista.

“Nós estamos vivendo um momento de extrema preocupação por conta do recrudescimento de um discurso de ódio que tem motivado invasões de terras indígenas e nos trazido grande preocupação”, refletiu Torelly.

Torelly também afirmou que o MPF vê com preocupação iniciativas legislativas que podem contribuir com a violação dos direitos dos povos indígenas, como o PDL 177, que trata da convenção 169 da OIT, o PL 490, que altera o processo de demarcação, e o PL 191, que regulamenta o garimpo em terras indígenas.

Defensoria Pública da União

Francisco de Assis Nascimento Nóbrega, Defensor Público Federal, apontou equívocos cometidos pelo Estado quanto ao cumprimento das recomendações da RPU e que vão contra os compromissos assumidos internacionalmente. Segundo ele, o serviço da Polícia Federal que deveria atuar em situações de conflitos agrários envolvendo terras indígenas, estaria com capacidade insuficiente de pessoas para atuar nas situações. E lembrou da situação de violência vivenciada pela terra Munduruku.

“A FUNAI precisa retomar com urgência o protagonismo histórico na defesa dos direitos dos povos indígenas, valendo-se de ações para garantir esses direitos, retomando as demarcações e iniciando as ainda não iniciadas e brigando pela desintrusão dos invasores das TIs ilegalmente ocupadas. É preciso não só afastar as discussões acerca da retirada do Brasil da Convenção 169, mas sepultar de vez a tese do Marco Temporal e retomar a trilha do cumprimento das recomendações acolhidas pelo Brasil”, finalizou.

Parlamentares

Para o deputado Helder Salomão (PT/ES), a ausência da FUNAI na audiência é reflexo da postura atual do órgão na atuação em defesa dos direitos indígenas. “A ausência da FUNAI aqui hoje é uma demonstração de como o governo vem conduzindo a causa indígena no nosso país. A FUNAI representa mais os invasores, os grileiros, os que desmatam e os que ameaçam os territórios indígenas, ao invés de representar os interesses dos povos originários”, afirmou o parlamentar, defendendo a substituição de Marcelo Xavier na Fundação.

“O Brasil tem vivenciado tentativas muito profundas de retrocesso. Há uma lógica da pessoa que está no latifúndio, falar em nome dos povos indígenas. É um absurdo”, apontou a deputada Érika Kokay.

“Todos os Poderes e todos os brasileiros e brasileiras devem cumprir o que está na Constituição, e ela é clara sobre os direitos dos povos originários, de preservação cultural. Isso é soberania, é patrimônio imaterial. Defender territórios indígenas é soberania”, reforçou Kokay.

A audiência contou ainda com a participação de Dário Vitório Kopenawa Yanomami, Vice- Presidente da Hutukara Associação Yanomami, Edinho Macuxi, Coordenador do Conselho Indígena de Roraima (CIR), e Juliana de Paula Batista, representante do Instituto Socioambiental (ISA).

 

Fábia Pessoa/CDHM