Ameaça de despejo de trabalhadores rurais de Campo do Meio é tema de reunião com autoridades; remoção durante pandemia e limites da ordem de reintegração são questionados
Foto: Pedro Calvi
Mudas da lavoura do Quilombo Campo Grande, em Campo do Meio (MG), expostas durante diligência da CDHM, em 2018
No último dia 30, a presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados (CDHM) pediu ao governador de Minas Gerais, Romeu Zema, ao presidente da Assembleia Legislativa de Minas Gerais, Agostinho Patrus (PV/MG), ao comandante-geral da Polícia Militar do estado, Rodrigo Rodrigue e a Antônio Tonet, procurador-geral de Justiça de Minas Gerais, que evitassem a possível execução da ordem de reintegração de posse contra trabalhadores rurais sem-terra do acampamento Quilombo Campo Grande, na Fazenda Ariadnópolis. A reintegração, segundo ofício da Polícia Militar, está prevista para o dia 12 de agosto. O acampamento fica no município de Campo do Meio, no sul do estado.
No mesmo dia, também foram enviados ofícios para o presidente do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais e ao desembargador André Siqueira, presidente da 9a Câmara Cível do Tribunal de Justiça mineiro. Ele é relator de um agravo de instrumento movido pela Defensoria Pública Estadual sobre o caso, que deve ser julgado dia 25 de agosto.
Nesta quinta-feira (6/8), o presidente da CDHM, Helder Salomão (PT), participou de uma reunião da Mesa de Diálogo da Secretaria de Desenvolvimento Social de Minas Gerais, para tratar do conflito. “Temos recebido inúmeras denúncias, de várias regiões do país, sobre despejos e ações de reintegração de posse em plena pandemia. Também já recebemos uma recomendação da ONU sobre essa questão e estamos discutindo com a presidência da Câmara a votação, em caráter de emergência, de projetos de lei que pedem a suspensão de todos os despejos”, destaca Salomão. Ele acrescenta que “em um período de pandemia, não é razoável adotar medidas como se tudo estivesse normal. Já oficiei judiciário, polícia militar e legislativo mineiros sobre essa questão. E lembro que os números da pandemia estão crescendo em Minas Gerais. Então, fazemos um apelo para que essa ação seja suspensa, não pelos processos em tramitação na justiça, mas pelo caráter humanitário”. O parlamentar criticou a ausência da Polícia Militar, que deve executar o despejo, e também dos trabalhadores rurais, que só foram chamados a participar no decorrer da reunião. “Assim, não dá pra chamar de Mesa de Negociação”, observou.
Ana Cláudia Storch, da Defensoria Pública de Minas Gerais, expõe uma série de dúvidas sobre a decisão da justiça. “Já colocamos essas preocupações sobre o processo em primeira e segunda instâncias. Os limites da área não estão claros, originalmente eram 26 hectares, agora são 52. Dentro do próprio processo tem esse pedido de ampliação colocado pela própria justiça, que confirmou 52 hectares. Não sabemos também quem fez a delimitação. Além disso, há outros processos judiciais na área, que incluem até terras da União. O número de famílias também não está definido, um momento são 15, em outro 6 e não se aponta para onde serão levadas. Ou seja, pessoas que nem sabem que podem ser despejadas de uma hora para outra”.
Manobras e insegurança
Silvio Netto, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), informa que em 2009 já houve uma ação de reintegração de posse com os limites iguais ao desta vez. “Ao longo desses 20 anos de conflitos, houve uma série de manobras judiciárias para confundir todos. Tivemos diversas lutas jurídicas e aprendemos como acontecem essas manobras, elas se repetem. Usam conceitos diferentes, em que a área pode chegar a 5 mil hectares. Já tivemos também dois decretos destinando a área para uso para pesquisas e também como colônia agrícola. Um deles foi cancelado pelo atual governador”. Netto afirma que, “se essa reintegração do dia 12 for feita com o rigor da legalidade, vão ver que ela já foi entregue a quem pediu, de forma voluntária, por seis famílias. Agora, o suposto proprietário, acompanhado de um oficial de justiça, resolveu ampliar área. É ilegal, vão destruir de forma covarde lavoura, escola. No entorno desse lugar que vai ser despejado vivem quase 500 famílias. Deveríamos formar uma comissão para acompanhar o que vai acontecer lá dia 12”.
Romulo Ferraz, presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e procurador de Justiça de Minas Gerais, informa que o MST entrou com um mandato de segurança para evitar a ação. O movimento não reconhece o número de famílias e também contesta a ampliação da área a ser reintegrada, que seria objeto de oura ação.
“Esse tipo de operação não é seguro para ninguém. Há muita insegurança jurídica sobre a área a ser atingida e número de famílias. Também por causa da pandemia, é um risco muito grande tanto para as famílias como para a polícia, oficiais de justiça e outros grupos. A operação pode ficar complexa e perigosa. Podemos tentar um recurso coletivo ao Tribunal de Justiça, toda ordem judicial pode ser questionada. Há uma série de conflitos judicializados no local e ilegalidades associadas”, coloca Robson Souza, promotor de justiça e presidente do Conselho Estadual de Direitos Humanos. “Uma ação do Judiciário não pode ter dúvidas, os limites devem ser claros”, conclui.
Maria Araújo Diniz, da Secretaria de Desenvolvimento Social de Minas Gerais, ressalta que a Mesa de Negociação tem acompanhado o conflito desde 2016. “Não vemos a necessidade de fazer essa reintegração nesse momento de pandemia, já que exporia famílias e agentes do Estado. Esgotamos todas as possibilidades de diálogo e conciliação. Agora, a discussão deve chegar ao Tribunal de Justiça, onde vamos tentar uma audiência”.
Afonso Teixeira, procurador de justiça do Ministério Público mineiro e coordenador das promotorias agrárias do estado, reitera que a Mesa de diálogo trabalhou intensamente para resolver o embate. “Hoje, não há mais diálogo com as partes, então nossa intenção é dialogar de forma institucional, buscar uma saída política. Essa decisão da justiça vai tensionar ainda mais os conflitos que já existem na área. Sugiro adiar o despejo até o julgamento do agravo”.
Mais informações
Dentre os PLs em tramitação no Congresso sobre a pandemia estão o Projeto de Lei 1975/2020, que suspende o “cumprimento de toda e qualquer medida judicial, extrajudicial ou administrativa que resulte em despejos, desocupações ou remoções forçadas, durante o estado de calamidade pública reconhecido em razão do COVID-19”. Outro é o PL 735/2020, de autoria de vários deputados, que prevê “abono destinado a feirantes e agricultores familiares que se encontram em isolamento ou quarentena em razão da pandemia do COVID-19”.
No dia 20 de julho, os presidentes da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM/RJ) e da CDHM, Helder Salomão, receberam ofício de Jan Jarab, Representante Regional para América do Sul do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, pedindo atenção aos projetos de lei que relativos às questões de direitos humanos no contexto da COVID-19.
Já o Conselho Nacional dos Direitos Humanos tem resolução afirmando que “remoções e despejos devem ocorrer apenas em circunstâncias excepcionais, com a devida elaboração de um plano prévio de remoção e reassentamento, para que não resultem em pessoas ou populações sem teto, sem-terra e sem território, que não afetem as atividades escolares de crianças e adolescentes, e que não prejudiquem colheitas vindouras, devendo-se assegurar tempo razoável para o levantamento das benfeitorias”.
Em 2018, a presidência da CDHM e parlamentares fizeram uma diligência ao Quilombo Campo Grande. O acampamento, ao total, tem 40 hectares de hortas, 60 mil árvores nativas e 60 mil árvores frutíferas, e produz aproximadamente oito toneladas de mel por ano. Estão no local há 22 anos e somam mais de 450 famílias.
Pedro Calvi / CDHM