Debatedoras apontam falta de recursos para atendimento especializado a mulheres vítimas de violência
A quantidade de delegacias de atendimento à mulher e o atendimento especializado às mulheres vítimas de violência ainda deixam muito a desejar no Brasil. E o principal motivo é a falta de recursos, que impede mais capacitação e a realização de novos concursos para contratação de efetivo policial suficiente para atender às mulheres. Essas foram algumas das conclusões dos participantes de audiência pública realizada nesta sexta-feira (13/08) pela Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher (CMulher) e Secretaria da Mulher.
O Brasil possui 5.568 municípios, e em 91,7% deles não existe nenhuma unidade das chamadas Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAMs). E as cidades que possuem DEAMs são, na maioria, capitais e regiões metropolitanas. Os dados são do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que apontam também uma diminuição no número dessas delegacias: em 2014 eram 441 e em 2019 apenas 417 ainda estavam em funcionamento.
Precariedade no atendimento - A delegada de São Paulo e diretora da Associação dos Delegados de Polícia do Brasil (Adepoli), Raquel Gallinati, afirmou que além da abertura de mais delegacias especializadas, existe uma defasagem de agentes e de capacitação: "No Estado de São Paulo, por exemplo, há uma quantidade significativa de unidades que prestam esse tipo de atendimento. Porém, os agentes ficam sobrecarregados, precisam fazer rodízio, acumulam funções e isso acarreta uma precariedade na prestação de serviços às vítimas e no registro da ocorrência”.
Para Raquel, as mulheres são a população mais prejudicada, porque a falta de investimento do governo na polícia judiciária ocasiona a precarização do atendimento feito pela Polícia Civil, que é a porta de entrada para o sistema de justiça criminal. “E, nesse caso, a vítima é diferenciada, porque a mulher lida com o algoz que é, supostamente e psicologicamente, aquele que ela ama. Tem a violência física e psicológica. Ocorrências como essas são muito diferentes dos atendimentos comuns e exigem uma estrutura específica", explicou Raquel, que apresentou um diagnóstico sobre as principais dificuldades enfrentadas. Ela considera que seria preciso ter, além de policiais habilitados e capacitados, psicólogos e assistentes sociais contratados pelo Estado.
Acolhimento - Os participantes apresentaram dados conflitantes a respeito do número de delegacias da mulher no Brasil. O delegado Evandro Luiz dos Santos, representando a Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp) do Ministério da Justiça, apresentou dados do Projeto de Prevenção à Violência contra a Mulher (Pró-Mulher) e informou que nos 326 municípios brasileiros com mais de 100 habitantes há delegacias especializadas.
Segundo Nadine Anflor, presidente do Conselho Nacional dos Chefes de Polícia, são 499 ao todo. Ela levou o exemplo de um projeto de seu Estado, o Rio Grande do Sul, que poderia ser replicado em todo o País: as Salas das Margaridas, locais de acolhimento às mulheres nas delegacias de polícia, com profissionais capacitados e funcionamento 24 horas por dia.
“Em menos de dois anos, já estamos com 40 salas especializadas no Rio Grande do Sul. E nenhuma delas é criada e inaugurada sem que todos os servidores policiais passem por uma capacitação. Porque as mulheres são vítimas geralmente à noite e aos finais de semana, quando nossas delegacias especializadas, por falta de efetivo e de estrutura, infelizmente nem sempre estão abertas”, disse Nadine.
A Lei Maria da Penha prevê atendimento especializado não só em delegacias, mas também em unidades de saúde e núcleos de Defensoria Pública, além do acolhimento das vítimas em diversas esferas do sistema público. Diante disso, a criação das DEAMs em cidades e municípios do País passa pelo debate da educação da população sobre o problema da violência de gênero e pela união de esforços entre os Poderes Legislativo, Judiciário, Executivo e entidades da sociedade civil que tratam do combate a este tipo de violência.
“Precisamos conversar sobre igualdade de gênero em todos os espaços, para que a violência contra a mulher não seja naturalizada. Esta é uma demanda de mudança cultural e o debate de hoje é muito produtivo, porque traz diferentes vozes e perspectivas. Apenas a polícia não será capaz de resolver o problema, precisamos unir esforços para trazer um novo olhar para acolher a questão da violência. É um trabalho de todos”, declarou Juliana Martins, coordenadora Institucional do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
De acordo com dados apresentados por Juliana, em 2020 foi feito um chamado de violência doméstica por minuto ao número 190 – um crescimento de 16,3% em relação ao ano anterior. Nos últimos 12 meses, oito mulheres foram vítimas de violência doméstica por minuto.
A procuradora da Mulher na Câmara, deputada Tereza Nelma (PSDB-AL), considera “imprescindível a ampliação do número de delegacias, bem como dos horários de atendimento, haja vista que os crimes de violência contra a mulher ocorrem em sua maior parte no final de semana e à noite”, apontou. Para ela, o aumento de delegacias no País se mostra necessário face à gravidade do problema da violência de gênero no Brasil: “Apesar da redução ocorrida no número de homicídios em geral e no feminicídio em 2018, não temos o que comemorar. Houve um aumento de 4,2% nos feminicídios no Brasil entre 2008 e 2018, o que representa uma mulher assassinada a cada duas horas”.
Um projeto de lei (PL 42/2015) aprovado recentemente na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara, com relatoria da deputada Margarete Coelho (PP-PI), e que já pode seguir para o Senado, estabelece que é direito fundamental da mulher o atendimento policial especializado previsto na Lei Maria da Penha, ininterruptamente, em todos os dias da semana.
Grace Justa, diretora do Departamento de Políticas de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres da Secretaria Nacional de Políticas para Mulheres, afirmou que o problema, no que diz respeito ao atendimento especializado, é “orçamentário, grave e muitas vezes insuperável”. Ela também destacou que, às vezes, uma delegacia é criada para dar uma resposta política à demanda popular, mas sem condição de funcionamento.
“A questão das delegacias de polícia, principalmente a especializada, é muito delicada, porque de fato ela tem um componente político muito forte. Existir uma delegacia de polícia no papel não significa que ela exista na prática, e as polícias vêm fazendo arranjos há muito tempo, tentando fazer o melhor, mas sem a menor condição de atuar, em razão dos poucos recursos”, enfatizou.
Ao coordenar o debate, Tereza Nelma também comentou sobre projeto que está em tramitação na Câmara e que originalmente obrigava os estados a criarem, em suas microrregiões, delegacias especializadas no atendimento à mulher no prazo de cinco anos, sob pena de não terem acesso aos recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública (PL 501/2019), de autoria da deputada Leandre (PV-PR).
Recentemente, essa proposta foi aprovada na Comissão de Segurança Pública, mas com outro texto, proposto pelo relator deputado Subtenente Gonzada (PDT-MG). A nova versão estabelece que estados e municípios deverão priorizar a elaboração e a implementação de planos de metas para o enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a mulher, com redes de atendimento que serão compostas pelos órgãos públicos de segurança, saúde, justiça, assistência social, educação e direitos humanos e por organizações da sociedade civil. O texto prevê ainda que somente terão acesso aos recursos federais relacionados à segurança pública e direitos humanos entes federativos que apresentarem regularmente planos de metas para o enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a mulher. A proposta ainda precisa passar pelas comissões de Finanças e Tributação; e de Constituição e Justiça e de Cidadania.
Para a deputada Leandre (PV-PR), é preciso amadurecer o debate, que não é simples. Ela afirmou que a mudança precisa acontecer principalmente de forma local: “É necessário que as procuradoras da mulher busquem apoio nos municípios e esta audiência traz diversas alternativas para a implementação de uma rede eficiente. A transformação e o acolhimento precisa acontecer onde as mulheres vivem, onde as políticas públicas são executadas”, afirmou.
Já a presidente da Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher, deputada Elcione Barbalho (MDB-PA), lembrou que entre os destaques da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) apresentadas pela CMulher este ano, está a implementação de dez unidades da Casa da Mulher Brasileira e de Centros de Atendimento às Mulheres. “Estes espaços existem para funcionar paralelamente às delegacias especializadas, prestando atendimento humanizado e multidisciplinar. Muitas vezes são a partir desses atendimentos que as mulheres decidem finalmente denunciar, após encontrarem ferramentas emocionais e estruturais para saírem do ciclo de violência”, destacou Elcione.
A deputada Érika Kokay (PT-DF) disse que é essencial debater a equidade de gênero e elogiou o tema e o nível do debate. Ela lembrou que os equipamentos públicos, entre eles as delegacias especializadas, pressupõem um espaço de fala e de acolhimento e de outro olhar para enfrentar a ótica machista e sexista que por muito tempo naturalizou a violência doméstica, entre outras. A audiência integra a programação do “Agosto Lilás”, e foi proposto pelas deputadas Tereza Nelma, Flávia Morais (PDT-GO), Norma Ayub (DEM-ES), Rejane Dias (PT-PI), Áurea Carolina (Psol-MG), Carmen Zanotto (Cidadania-SC) e Erika Kokay (PT-DF). Para assistir à íntegra, acesse o portal E-Democracia.
por Lanna Borges (Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher), com Ascom - Secretaria da Mulher e Agência Câmara de Notícias