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A Lei de Migração (Lei nº 13.445, de 24 de maio de 2017) disciplina os direitos e deveres do estrangeiro que pretende residir temporária ou definitivamente no Brasil, a quem se refere como “imigrante”. A norma jurídica também comporta preceitos relativos aos turistas e viajantes a negócios (visitantes), aos brasileiros que se estabeleceram no exterior, à entrada e saída do território nacional e às infrações administrativas e suas penalidades.


A nova Lei ab-roga a vetusta Lei nº 6.815, de 1980, um dos últimos diplomas legais promulgados durante a ditadura militar, que tinha por fonte de inspiração a doutrina de segurança nacional. Embora muitos dos dispositivos da Lei nº 6.815/80 não fossem aplicados, por absoluta incompatibilidade com o ordenamento constitucional vigente, a revogação desta norma jurídica era aguardada há bastante tempo pela sociedade, em particular pelos que atuam na defesa dos Direitos Humanos dos imigrantes.


Antes de qualquer consideração, é importante ressaltar que o presente texto não ambiciona esgotar qualquer dos assuntos disciplinados na Lei de Migração, que são complexos e merecem ser analisados em obras específicas de cunho acadêmico. Além disso, é preciso registrar que o artigo foi redigido antes da apreciação dos vetos pelo Congresso Nacional.


O texto divide-se em duas partes. Na primeira, é apresentada uma síntese da Lei, com referências a alguns vetos apostos pelo Presidente da República. A segunda parte reúne considerações sobre o escopo da norma jurídica e os princípios sobre os quais se assenta.


I – SÍNTESE DA LEI E DE ALGUNS VETOS


A Lei nº 13.445, de 2017, enfeixa 125 (cento e vinte e cinco) artigos e um anexo. Os artigos foram divididos em 10 (dez) capítulos. Com exceção dos capítulos IX e X, todos os demais foram subdivididos em Seções.


O Capítulo I consagra as “disposições preliminares”, cujos dispositivos estabelecem o alcance de termos e expressões utilizadas ao longo do texto normativo, os princípios da política migratória brasileira e os direitos e garantias do migrante. Nesse contexto, os artigos 3º e 4º desempenham papel fundamental para compreensão dos princípios regentes da política migratória brasileira e dos bens jurídicos que a Lei pretende resguardar.


Entre os princípios da política migratória brasileira destacam-se o repúdio e a prevenção à xenofobia, ao racismo e a quaisquer formas de discriminação, a não criminalização da imigração, a acolhida humanitária, a garantia do direito à reunião familiar e a proteção ao brasileiro no exterior (art. 3º).


As garantias do migrante estão relacionadas no art. 4º da norma. Dentre essas, são dignas de destaque a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade e os seguintes direitos: liberdade de circulação no território nacional; reunião familiar; acesso a serviços públicos de saúde, assistência e previdência social (nos termos da lei); educação pública; e abertura de conta bancária.


Nesse passo, impende ressaltar que o § 4º do artigo 4º foi vetado. Esse dispositivo estendia ao estrangeiro visitante, isto é, aos portadores de visto de turismo, de negócios, de trânsito e de atividades artísticas ou desportivas, alguns dos direitos estatuídos no artigo, como o acesso aos serviços públicos de saúde e de assistência social e à previdência social. Com base na manifestação do Ministério da Fazenda, nas razões do veto, o Presidente da República informa que o comando legal representaria pressões fiscais adicionais à União e aos demais entes federativos, com prejuízo à adequação das despesas públicas ao limite de gastos constitucionalmente previsto.


O Capítulo II (Da Situação Documental do Imigrante) reúne os artigos que tratam dos documentos de viagem (passaporte, laissez-passer, salvo conduto, carteira de identidade de marítimo e congêneres), dos diversos tipos de visto e do registro e identificação civil do imigrante e dos detentores dos vistos diplomático, oficial e de cortesia. O art. 12 prevê cinco tipos de visto: de visita, temporário, diplomático, oficial e de cortesia.


Disciplinado no art. 13, o visto de visita poderá ser concedido aos solicitantes que pretendem vir ao Brasil, sem a intenção de estabelecer residência, para fins de turismo, de negócios, de trânsito ou em outras hipóteses previstas em regulamento. Cumpre observar que esse é o único dispositivo da Lei que trata dos turistas.


Todo detentor de visto temporário ou de autorização de residência é obrigado a identificar-se civilmente, por meio de dados biográficos e biométricos (art. 19). No caso dos solicitantes de refúgio, asilo, de reconhecimento de apatridia e de acolhimento humanitário, a identificação civil poderá ser efetuada com a apresentação dos documentos que essas pessoas dispuserem (art. 20).


O Capítulo III (Da Condição Jurídica do Migrante e do Visitante) agrupa as normas referentes ao residente fronteiriço, à proteção do apátrida, ao asilado, à autorização de residência e à reunião familiar. Com fundamento no art. 30, desde que o solicitante não tenha sido condenado criminalmente no Brasil ou no exterior por sentença transitada em julgado, a residência poderá ser autorizada nas seguintes situações: pesquisa, ensino ou extensão acadêmica; tratamento de saúde; acolhida humanitária; estudo; trabalho; férias-trabalho; prática de atividade religiosa ou serviço voluntário; realização de investimento ou de atividade com relevância econômica, social, científica, tecnológica ou cultural; e reunião familiar.


A autorização de residência poderá ser concedida, ainda, à pessoa: beneficiária de tratado ou acordo internacional em matéria de residência e livre circulação; detentora de oferta de trabalho; que tenha possuído a nacionalidade brasileira e não deseje ou não reúna os requisitos para readquiri-la; beneficiária de refúgio, de asilo ou apátrida; menor nacional de outro país ou apátrida, desacompanhado ou abandonado; vítima de tráfico de pessoas, de trabalho escravo ou de violação de direito agravada por sua condição migratória; em liberdade provisória ou em cumprimento de pena no Brasil (inciso II do art. 30).


A alínea “d” do inciso II do art. 30 concedia ao estrangeiro aprovado em concurso público o direito de solicitar residência. No entanto, esse dispositivo foi vetado. O Presidente sustenta que o comando afronta a Constituição e o interesse nacional. Importante destacar que a concessão da autorização de residência independe da situação migratória do solicitante (§ 5º do art. 31).


O Capítulo IV dispõe sobre a entrada e a saída do território nacional. As funções de polícia marítima, aeroportuária e de fronteira estarão sob a responsabilidade da Polícia Federal. O art. 40 e seus incisos disciplinam os casos de admissão excepcional no País. Entre esses casos, a norma, tal como aprovada pelo Congresso Nacional, autorizava a entrada (excepcional) no território brasileiro de criança ou adolescente acompanhado de responsável legal residente no País, caso manifestasse a intenção de requerer autorização de residência com base em reunião familiar (inciso IV do art. 40). Esse dispositivo foi vetado sob o argumento de que possibilitaria a entrada de crianças estrangeiras sem visto, bem como facilitaria ou permitiria o sequestro internacional de menores.


O Capítulo V regula as medidas de retirada compulsória, são elas: a repatriação (art. 49); a deportação (art. 50 a 53); e a expulsão (art. 54 a 60). De natureza administrativa, a repatriação consiste na devolução do estrangeiro em situação de impedimento ao país de procedência ou nacionalidade. A deportação será aplicada ao estrangeiro em situação migratória irregular no território nacional e será precedida de notificação pessoal do deportado. Os procedimentos relativos à deportação deverão respeitar o contraditório, a ampla defesa e a garantia de recurso com efeito suspensivo. A expulsão, por sua vez, será aplicada ao estrangeiro condenado, com sentença transitada em julgado, em função da prática dos crimes de genocídio, contra a humanidade, de guerra ou de agressão, nos termos definidos pelo Estatuto de Roma, bem como pelos crimes comuns dolosos passíveis de pena privativa de liberdade, consideradas a gravidade e as possibilidades de ressocialização em território nacional. A expulsão poderá ser conjugada com o impedimento de reingresso no território nacional, por prazo determinado (art. 54, in fine).


O Capítulo VI cuida da opção de nacionalidade e da naturalização. A opção pela nacionalidade brasileira poderá ser requerida, a qualquer tempo, por meio de ação específica, pelo filho de pai ou mãe brasileiro nascido no exterior e que não tenha sido registrado em repartição consular. A naturalização poderá ser requerida por estrangeiro que preencha as condições estabelecidas na Lei. Consoante o art. 64 da Lei de Migração, a naturalização poderá ser ordinária, extraordinária, especial ou provisória. Cumpre destacar que o Presidente da República vetou dois incisos do art. 66, que reduziam, para os cidadãos originários dos países de língua portuguesa e dos Estados Partes ou associados do Mercosul, o prazo de residência no território nacional, que constitui uma das condições para a concessão da naturalização ordinária. Nas razões do veto, justificou-se que os dispositivos ampliariam o exercício da cidadania brasileira, sem reciprocidade em favor dos nacionais, “podendo fragilizar o processo eleitoral nacional e introduzir elementos com efeitos imprevisíveis sobre a democracia do País”.


As disposições relativas ao emigrante brasileiro estão consolidas no Capítulo VII, cujos dispositivos tratam dos princípios e das diretrizes aplicáveis às políticas públicas para os emigrantes, bem como dos respectivos direitos. Nesse contexto, de acordo com o art. 78, o emigrante que decida retornar ao Brasil, com ânimo de residência, poderá introduzir no País, com isenção de direitos de importação e taxas aduaneiras, os bens novos e usados que, em razão de sua quantidade, natureza ou variedade, não permitam presumir importação ou exportação com fins comerciais ou industriais.


O Capítulo VIII disciplina as “medidas de cooperação” em matéria penal, a saber: a extradição; a transferência de execução da pena; e a transferência de pessoa condenada.


Medida de cooperação por meio da qual um Estado solicita a outro a entrega de pessoa condenada ou processada criminalmente, a extradição é regulada pelos artigos 81 a 99. Entre outras proibições, a norma dispõe que não será concedida a extradição de brasileiro nato, quando o fato que motivar o pedido extradicional não for tipificado como crime no Brasil ou no Estado requerente, quando a punibilidade estiver extinta pela prescrição e quando o fato constituir crime político ou de opinião.


A transferência de execução da pena poderá ser efetivada desde que preenchidos os seguintes requisitos: a) o condenado em território estrangeiro seja nacional ou tenha residência habitual ou vínculo pessoal no Brasil; b) a sentença tenha transitado em julgado; c) a duração da condenação a cumprir ou que restar para cumprir seja de, pelo menos, 1 (um) ano, na data de apresentação do pedido ao Estado da condenação; d) o fato que originou a condenação constituir infração penal perante a lei de ambas as partes; e e) houver tratado ou promessa de reciprocidade (art. 100).


Se houver manifestação expressa do interessado, a transferência de pessoa condenada poderá ser concedida para o cumprimento de pena, imposta pelo Estado brasileiro, no país de origem ou de residência habitual do apenado, ou onde este mantenha vínculo pessoal. Cumpre destacar que o pedido de transferência deverá estar fundamentado em um tratado ou em promessa de reciprocidade.


No Capítulo IX, estão dispostas as infrações e as respectivas penalidades administrativas. As infrações administrativas serão apuradas em procedimento próprio, assegurando-se aos interessados o contraditório e a ampla defesa. Entre outras, o art. 109 da Lei estatui as seguintes infrações administrativas: entrar no território nacional sem autorização; permanecer no território nacional depois de esgotado o prazo legal da documentação migratória; transportar para o Brasil pessoa que esteja sem documentação migratória regular.


O Capítulo X comporta as “Disposições Finais e Transitórias”. Nesse contexto, merecem destaque os artigos que preceituam o respeito aos tratados vigentes, em particular aos acordos firmados no âmbito do Mercosul (art. 111), e a tolerância quanto ao uso do idioma do residente fronteiriço e do imigrante, quando se dirigirem aos órgãos públicos para reclamar ou reivindicar direitos (art. 112). Outro ponto digno de relevo é a inclusão do art. 232-A, no Código Penal, que tipifica o crime de promoção de migração ilegal.


O art. 116, constante do texto aprovado pelo Congresso Nacional, revogava as expulsões decretadas antes de 5 de outubro de 1988. Este dispositivo foi vetado. Nas razões do veto, sustenta-se que os atos de expulsão consubstanciam efetivo exercício de soberania nacional, de competência do Presidente da República, e que a manutenção do dispositivo poderia representar um passivo indenizatório à União, com efeitos nas contas públicas, além de ensejar insegurança jurídica.


Também merece ser evidenciado o veto aposto ao art. 118, que concedia autorização de residência aos imigrantes que ingressaram no Brasil até 6 de julho de 2016. Com base nas manifestações do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República e da Casa Civil, o dispositivo foi vetado sob o fundamento de que “concede anistia indiscriminada a todos os imigrantes, independentemente de sua situação migratória ou de sua condição pessoal, esvaziando a discricionariedade do Estado para o acolhimento dos estrangeiros”.


II – BREVES CONSIDERAÇÕES


No mundo atual, caracterizado pela mobilidade e interdependência econômica, os Estados mais desenvolvidos passaram a adotar políticas destinadas a regular os fluxos migratórios, visando a atrair mão-de-obra com determinado perfil de qualificação com a finalidade de suprir eventuais carências de seus respectivos mercados.


Para George Torquato Firmeza, o debate contemporâneo sobre migrações assenta-se em quatro grandes eixos temáticos: as causas das migrações; os direitos humanos dos trabalhadores migrantes; as migrações irregulares sob a perspectiva da segurança nacional; e a relação entre migração e desenvolvimento.


A leitura das disposições preliminares da Lei nº 13.445, de 2017, revela uma significativa mudança de rumo na política brasileira voltada aos imigrantes. Nesse contexto, tomando-se por base as informações contidas nos parágrafos precedentes, resta claro que a nova Lei abandona a perspectiva da segurança do Estado, preconizada na Lei nº 6.815, de 1980, e adota, como pilares fundamentais da relação entre o Estado brasileiro e os estrangeiros, os  aspectos humanitários e de proteção relacionados ao fenômeno migratório, o que pode ser observado nos diversos incisos que integram os artigos 3º e 4º da norma recém-promulgada.


A opção do legislador por privilegiar os aspectos humanitários não significa que o Estado brasileiro abdicou dos instrumentos e formalidades relacionados ao controle de entrada, permanência e saída dos estrangeiros e à adoção de políticas migratórias com foco no desenvolvimento local. Isso é o que se depreende do inciso VII do art. 3º, e dos artigos 45, 49 e 50, da Lei de Migração.


Consultoria Legislativa, em 23 de junho de 2017.
Elir Cananea Silva
Consultor Legislativo