Texto Base da Consultoria Legislativa
MARCO CIVIL DA INTERNET
Claudio Nazareno
Consultor Legislativo da Área XIV - Comunicação Social, Informática, Telecomunicações, Sistema Postal, Ciência e Tecnologia
Jan/2014
Versão em pdf: Marco Civil da Internet
1. Introdução
Este documento discute a proposta de regulamentação da internet contida no PL 2126/11, conhecida na imprensa como Marco Civil da Internet. A iniciativa também foi batizada com o epíteto de Constituição da Internet e, tal como expresso na ementa, “Estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil”. Além de ser uma declaração de princípios para usuários garantindo a privacidade, os direitos humanos e o exercício da cidadania em meios digitais, a proposta busca também regulamentar diversos aspectos relacionados à exploração comercial e governamental da grande rede. Nesses outros temas, porém, a matéria tem mostrado ser extremamente controversa.
Na primeira parte deste documento será apresentado um sumário das principais propostas de regulamentação da internet discutidas na Câmara dos Deputados e da tramitação do PL 2126/11. A seguir, os principais pontos do projeto original enviado pelo Poder Executivo são abordados. Os temas polêmicos da proposta original e do Substitutivo disponibilizado em dezembro de 2013 são analisados na sequência. Na continuação, é feita uma breve contextualização de como são tratados no exterior esses pontos que são motivos de debates, e, por fim, são oferecidas algumas considerações finais.
2. Breve histórico das iniciativas de regulamentação da internet na Câmara dos Deputados
O tema da regulamentação da internet é certamente controverso. No Brasil, talvez a primeira proposta de regulação que chegou a ser aprovada na Câmara tenha sido o PL 84/99, de autoria do Deputado Luiz Piauhylino, que ficou conhecido como o PL dos Crimes Digitais. No ano seguinte, o Senador Luiz Estevão propôs o PLS 151/2000 (na Câmara, PL 5.403/2001), tendo sido aprovado no Senado Federal, que determinava a guarda dos registros de conexão dos usuários à internet.
O projeto dos Crimes Digitais, que considerava como crimes a invasão e alteração de conteúdos de sítios, o roubo de senhas e a criação e disseminação de vírus, foi aprovado na Câmara em 2003 e modificado pelo Senado em 2008, voltando para a casa de origem para apreciação das modificações introduzidas. Durante a segunda tramitação do projeto na Câmara, surge o episódio da invasão de privacidade da atriz Carolina Dieckmann, com divulgação de material de sua propriedade e, em 2011, é proposto o PL 2.793, de autoria do Deputado Paulo Teixeira. A grande repercussão na mídia que o caso obteve fez com que ambos os projetos fossem aprovados em 2012. Porém, a Lei dos Crimes Digitais (12.735/12) foi drasticamente simplificada e novos tipos penais foram incluídos na Lei Carolina Dieckmann (12.737/12).
Em oposição aos debates focados na criminalização do uso indevido da internet, foi oferecido o PL 2.126/11, de autoria do Poder Executivo. Gestado no Ministério da Justiça e fruto de diversas consultas públicas, o projeto se contrapõe às iniciativas anteriores de regulação da internet, pois, ao invés de privilegiar o tratamento de crimes e proibições, garante liberdades e direitos aos usuários de internet. Daí o nome pelo qual ficou conhecido, o Marco Civil da Internet.
3. O projeto e sua tramitação na Casa
A proposição principal encaminhada pelo Poder Executivo atraiu a apensação de 36 outros projetos, dentre eles o PL 5.403/01 mencionado anteriormente. Os principais pontos do projeto, tal como proposto originalmente, são:
1) Neutralidade de redes
Neutralidade implica as operadoras de telecomunicações (as fornecedoras do acesso de banda larga) não interferirem nos pacotes trafegados pela internet. O projeto original garantia a neutralidade relativa, isto é, remetia o assunto à regulamentação, o que permitiria o controle de tráfego pelas operadoras sob certas condições a serem definidas posteriormente.
2) Guarda dos registros de conexão
Os dados de conexão à internet (endereço IP utilizado, horário de conexão, etc.) permitem a identificação do usuário, o que possibilita o monitoramento, mas também facilita a investigação de ilícitos (por exemplo, disponibilizar conteúdos ilegais). O projeto previa que os provedores de conexão[1] devessem guardar os registros durante um ano e repassá-los às autoridades competentes em caso de requisição judicial.
3) Guarda do registro das aplicações de internet
Este registro refere-se ao histórico de navegação do usuário. Pela proposta original os provedores de conexão não poderiam armazenar estes dados, facultando aos provedores de conteúdo[2] o fazerem. No entanto, caso instados por autoridade judicial, os provedores de conteúdo deveriam guardar os dados para investigação.
4) Responsabilidade por material infringente
O projeto normatiza a prática da ‘notificação e retirada do ar’ (do inglês notice and take down) para materiais infringentes, tais como músicas e conteúdos audiovisuais protegidos por direito autoral, ou conteúdos difamatórios ou caluniosos, entre outros. Pelo dispositivo, o provedor de conteúdos seria responsabilizado se, após notificação judicial, o material apontando como infringente não fosse retirado do ar.
Na Câmara, o projeto também foi colocado em consulta pública através do portal e-democracia e, em setembro de 2011, foi instituída Comissão Especial para apreciação da matéria. Apesar do amplo debate e dos diversos seminários e Audiências Públicas regionais realizadas, o parecer do relator, Deputado Alessandro Molon, não foi votado. Um ano depois, em 2013, o Poder Executivo solicitou urgência para a matéria e, em Plenário, recebeu 34 emendas. A proposta foi tema, ainda, de Comissão Geral em novembro de 2013, com a participação de diversos agentes da sociedade e parlamentares. Na ocasião ficaram evidenciadas as diferentes posições em relação ao projeto original e ao Substitutivo em discussão naquele momento. Na seção seguinte detalharemos esses principais pontos tais como tratados no último Substitutivo publicado pelo informativo Teletime e Idgnow em 11/12/2013.[3]
4. As polêmicas
Ao longo do processo de construção do parecer, foram vários os pontos que suscitaram acalorados debates. Os principais grupos envolvidos com a regulamentação da internet podem ser divididos entre: usuários (incluindo os movimentos sociais), provedores de conexão (as empresas de telecomunicações que provêm a banda larga), provedores de conteúdo nacionais e internacionais (as empresas responsáveis pelos sítios de internet), detentores de direitos autorais (gravadoras, estúdios e afins) e governo (incluindo autoridades judiciais e policiais). As discussões podem ser resumidas nos seguintes pontos (uma análise complementar dos conflitos pode ser encontrada em https://www2.camara.leg.br/documentos-e-pesquisa/publicacoes/estnottec/tema4/CP13039.pdf:
1) Neutralidade de redes
Nesse quesito, os Substitutivos apresentados pelo relator ao longo da tramitação da matéria foram alterando o conceito de neutralidade. As versões anteriores só permitiam a interferência no tráfego para resolver problemas técnicos e priorizar tráfego de serviços de emergência. Essa neutralidade quase absoluta, que poderia dar maior transparência para o usuário, poderia transformar-se em aumento de custos, pois, para se manter a mesma velocidade para todos os serviços (por exemplo, email e vídeos), seria necessária maior infraestrutura. Para as operadoras de telecomunicações, esse conceito de neutralidade dificultaria a otimização da rede e a geração de novos negócios (por exemplo, priorização de determinados parceiros). Assim, a neutralidade absoluta seria benéfica para provedores de conteúdo de menor poder econômico (que não teriam que pagar possíveis adicionais aos provedores de conexão para garantir seu bom tráfego), serviços concorrentes àqueles oferecidos pelos provedores de conexão (por exemplo, Skype ou Netflix) e usuários intensivos (heavy users, também chamados assinantes premium), que geram muito tráfego.
A atual redação suaviza o conceito de neutralidade, pois indica que a “degradação do tráfego” poderá ser feita para dar suporte a serviços de emergência e para atender “requisitos técnicos indispensáveis à prestação adequada dos serviços”. A versão em análise evoluiu também ao prever que o gerenciamento da neutralidade deverá ser realizado com “proporcionalidade, transparência e isonomia”, deverá “informar previamente ... as práticas de gerenciamento” e “abster-se de praticar condutas anticoncorrenciais”. Dessa maneira, a versão não permitiria que provedores de acesso degradem serviços concorrenciais como estratégia comercial (por exemplo, empresas de telefonia restringirem o tráfego de outras que oferecem telefonia pela internet). A relativização do conceito da neutralidade poderia possibilitar a oferta de pacotes diferenciados, por exemplo, planos de acesso ilimitado a redes sociais ou a determinados conteúdos audiovisuais ou, ainda, para telas pequenas (que geram menor volume de dados).
2) Guarda dos registros de conexão
A receptividade por parte dos usuários para esta disposição é mista. A guarda dos registros é considerada benéfica por aqueles preocupados com o combate aos crimes na internet, mas negativa pelos que advogam pelas liberdades individuais e pelo não monitoramento dos usuários. A medida é considerada como necessária pelos detentores de direitos autorais e pelo governo, pois facilita o combate aos crimes digitais e a punição de quem compartilha ilegalmente conteúdo protegido. Há aqueles que defendam a guarda por tempo maior.
3) Guarda do registro das aplicações de internet (da navegação do usuário)
Novamente a receptividade entre os usuários é mista. As empresas de conexão querem deter o poder de guardar e analisar o tráfego para gerenciar a rede, customizar serviços e obter informações comerciais acerca do usuário. Para os provedores de conteúdo, a obrigação da guarda pode ser benéfica, pois permitiria a negociação de banda com relação ao tráfego gerado, mas, por outro lado, poderia favorecer a concentração do poder econômico, já que algumas empresas ponto com são muito maiores que as empresas de telefonia. Já o acesso a estes dados por parte das operadoras de conexão pode ser considerado como negativo por outros agentes, pois permite o monitoramento por parte dessas empresas. Ao mesmo tempo, porém, é visto pelas operadoras como vetor de novas oportunidades de negócios.
Para o governo e detentores de direitos o importante é que essas informações sejam guardadas pelos provedores, de modo a facilitar o trabalho das autoridades judiciárias e investigativas. A versão atual (e a proposta original), que proíbe os provedores de conexão de guardar dados acerca da navegação do usuário, dificulta a mitigação de crimes cibernéticos, pois não haveria nenhuma entidade que teria acesso a todos os dados de navegação do usuário (apenas provedores de conteúdo teriam esses dados de maneira isolada). Certamente essa é uma solução de grande receptividade entre aqueles que advogam pelas liberdades individuais, embora embuta a premissa de que o monitoramento pelos provedores de conteúdo seja aceitável.
4) Responsabilidade por material infringente
Uma vez que, pela proposta original e pelos Substitutivos, o provedor de conexão não pode monitorar o tráfego dos usuários, é natural que o projeto isente estes agentes de responsabilidade civil por danos decorrentes por postagem de conteúdos de terceiros. O Substitutivo determina ao provedor de aplicação a obrigação da retirada do conteúdo infringente (notice and take down) em caso de decisões judiciais. Note-se que, pela versão em análise, o provedor de conexão não tem obrigação de bloqueio de acesso a material mesmo tendo sido considerado infringente. Apesar de a proposta poder ser aplicável para provedores de aplicação estabelecidos no país, a sistemática não terá efetividade para retirar ou bloquear o acesso a conteúdos infringentes postados em empresas estrangeiras sem atuação no país.
O Substitutivo incluiu referência expressa aos direitos autoral e conexo. Pela versão proposta, essas questões continuarão a ser regidas por legislação específica, o que atende à demanda dos detentores de direitos. Para aqueles usuários que defendem as liberdades individuais e o fim do monitoramento de maneira plena, a solução mais aceitável seria o não monitoramento da rede e a não identificação dos pacotes trafegados, como forma de possibilitar liberdade total nas comunicações. Entretanto, há aqueles grupos de usuários e detentores de direitos que acreditam na necessidade do monitoramento e que as infringências ao direito autoral devem ser fiscalizadas, monitoradas e punidas. Para outros agentes, a legislação autoral é por demais complexa para ser excepcionada para o caso da internet, advogando que um melhor tratamento seria dado por meio de lei específica. Do ponto de vista da ação judicial, uma vez que o acesso a conteúdos infringentes poderá continuar a ser dado para os casos comentados acima, a proposta dificulta a retirada e o cumprimento de decisões judiciais.
5) Armazenamento de dados no país e atendimento à legislação brasileira
Trata-se de um tema introduzido recentemente no debate. Pela nova proposta, quando houver participação e guarda de informação de usuários brasileiros por provedores de aplicação estabelecidos no país, estes deverão obedecer à legislação brasileira e poderão ser obrigados a armazenar os dados no país.
A proposta prevê que o Governo Federal poderá emitir Decreto obrigando as empresas de conexão e de conteúdo a armazenarem as informações de usuários brasileiros no país. Sob a ótica dos usuários, o armazenamento dos dados em território nacional poderá resultar em perda de qualidade nos serviços devido à infraestrutura deficiente. Por outro lado, possibilitará acionar mais facilmente provedores de conteúdo e o Poder Judiciário para solicitar a retirada de materiais considerados ofensivos. As empresas de telecomunicações, em especial as concessionárias de telefonia, seriam as grandes beneficiárias da medida, pois possuem maior capacidade de investimento e afinidade empresarial com a obrigação. As empresas de conteúdo teriam mais a se opor, pois a obrigação poderia implicar aumento de custos, uma vez que a oferta e a competitividade dos data centers do país são limitadas. No entanto, para os provedores nacionais, o dispositivo poderia revelar-se vantajoso, pois a medida poderia inibir a atuação de provedoras globais no país.
Para o governo, essa medida tornou-se importante após o Caso Snowden de vazamento de informações. Todavia, a guarda em território nacional, embora facilite a aplicação da legislação brasileira a empresas atuantes no país, é de eficácia duvidosa em termos de segurança das informações. Os dados sempre poderão ser duplicados e armazenados também no exterior. Assim, aquelas ‘cópias’ poderiam ser auscultadas pelos serviços de inteligência estrangeiros. Dessa forma, a subsidiária brasileira estaria cumprindo a legislação local e a sua matriz, no exterior, poderia continuar a colaborar com serviços de inteligência e atendendo à legislação do seu país de origem, com total desconhecimento por parte da sua subsidiária.[4] Sob a perspectiva dos detentores de direito autoral, por facilitar a aplicação da legislação brasileira, a guarda no país também seria benéfica para o setor.
De maneira simplificada as posições preponderantes de cada grupo de interesse podem ser resumidas no quadro apresentado na página a seguir.
Quadro 1 – Posições/Interesses dos principais grupos envolvidos com o tema da regulamentação da internet.
|
Usuários e |
Empresas de conexão (Oi, Net, etc) |
Provedores de conteúdo (Globo, UOL, etc) |
Provedoras de conteúdo (Google, Facebook, etc) |
Detentores (Gravadoras, radiodifusores e autores) |
Governo / |
Neutralidade absoluta |
Sim/Não |
Não |
Sim |
Sim |
Indif. |
Não |
Registros de conexão |
Sim/Não |
Sim |
Indif. |
Indif. |
Sim |
Sim |
Registros de aplicações pelas empresas de conexão |
Sim/Não |
Sim |
Não |
Não |
Sim |
Indif. |
Registros de aplicações pelas empresas de conteúdo |
Sim/Não |
Sim |
Sim |
Sim |
Sim |
Sim/Indif. |
Armazenamento no país |
Sim/Não |
Sim |
Sim/Não |
Não |
Sim |
Sim |
Notice and take down |
Sim/Não |
Não |
Sim |
Sim |
Sim/Não |
Indif. |
5. Um paralelo internacional
Neste debate, muitas vezes tem se colocado que ‘o mundo está de olho no Brasil’ e que a atual proposta ‘não encontra paralelo em outros países’. Na verdade, nos EUA, desde 2007 essa questão já é objeto de contenda. Naquele ano, o órgão regulador americano, a FCC, determinou que a Comcast (operadora de cabo e de banda larga) não deveria interferir no tráfego dos assinantes.[5] A disputa ainda se arrastra nos tribunais. Pelas regras atuais da FCC, as operadoras devem obedecer a três regras básicas: 1) ser transparentes nas suas práticas de gerenciamento; 2) não bloquear conteúdo legal e 3) não discriminar de forma não razoável o tráfego, inclusive de competidores.[6]
Na União Europeia, não há regras específicas sobre neutralidade de rede, embora tenha sido lançada consulta pública sobre o tema em 2010. Em setembro de 2013, a Comissão Europeia apresentou sua proposta de revisão das Diretivas Europeias, visando à criação de mercado único de comunicação eletrônica. Na proposta, contida no art. 23 sob o sugestivo nome de “Liberdade para prover e dispor de acesso à internet aberta e gerenciamento razoável de tráfego”, a neutralidade de rede permite o contrato por franquias e a venda de pacotes com qualidades de serviço diferenciadas. A proposta determina que o gerenciamento é permitido sob certos casos e que, dentro dos limites contratados, deve ser transparente, não discriminatório e proporcional.[7]
Apesar de a questão da coleta e privacidade demandar um estudo completo somente sobre o tema, o que foge ao propósito deste trabalho, será apresentada uma pequena contextualização internacional sobre o assunto. Na Europa e EUA, a questão da coleta de dados e da privacidade foram seriamente afetadas pelos atentados terroristas do 11 de Setembro de 2001. Ainda em 2001, os EUA baixaram o Patriotic Act, que permite a espionagem e a coleta de informações de qualquer cidadão americano por parte do governo. De maneira adicional, o Calea Act, de 1994, que obriga as empresas americanas de telecomunicações a cooperarem com o governo, foi alterado em 2005 para incluir a cooperação das empresas de internet. Essas leis permitem aos programas das agências de segurança americanas PRISM e Echelon, bem conhecidos da imprensa e novamente trazidos à tona pelo Caso Snowden, coletar informações sobre qualquer cidadão que se utilize de equipamentos, redes, programas ou sítios de internet mantidos por empresas americanas.
Apesar de alguns países europeus terem recrudescido suas leis antiterror, os cidadãos da Comunidade Europeia são amparados pela Lei Europeia de Proteção de Dados.[8] A lei, em processo de revisão durante 2013 e 2014, também por conta da problemática Snowden, garante, entre outros princípios, transparência no uso das informações coletadas e acesso às informações que empresas detêm de seus usuários.[9] Caso emblemático nesse tema foi o do austríaco Max Schrems, que, após invocar a Lei europeia, recebeu do Facebook um dossiê com mais de 1.200 páginas acerca dos dados que a rede social tinha armazenado sobre sua pessoa.
6. Considerações finais
Há importante discordância entre grupos de usuários, empresas de telecomunicações, empresas provedoras de conteúdo, nacionais e internacionais, detentoras de direitos autorais e autoridades a respeito da regulamentação do uso da internet. Certamente a internet deixou de ser um ambiente livre e ideal, onde usuários navegam e participam sem a interferência e o monitoramento por parte de empresas e governos. Também a internet deixou de ser um ambiente inofensivo. Com a proliferação de serviços inovadores, várias práticas passaram a evidenciar conflitos de interesses na disputa pelo acesso e o controle das informações que circulam pela grande rede.
A discussão sobre a neutralidade da rede evidencia certamente o cerne da disputa sobre o Marco Legal. Há vários pontos de vista que podem fazer pender a balança para ambos os lados. Neutralidade pode ser vista como uma disputa entre aqueles que acreditam na liberdade do mercado e aqueles que advogam que o mercado precisa ser regulado. Não abraçar a neutralidade poderia favorecer a concentração econômica e aumentar a barreira de entrada para novos serviços. Por outro lado, em ambiente de livre competição, o mercado desenvolve pacotes para cada tipo de consumidor e de bolso.
Ainda sob o aspecto financeiro e de gerenciamento da infraestrutura, o monitoramento permite o uso mais eficiente da rede: e-mails podem levar uns milissegundos a mais para chegar ao destinatário, mas um serviço de vídeo com latência é uma experiência ruim para o usuário. Por outro lado, a neutralidade absoluta implica que aqueles usuários que demandam pouco tráfego (aqueles que usam a internet somente para checar redes sociais e notícias e mandar e-mails) subsidiem os heavy users, que geram muito tráfego e subscrevem serviços premium (como canais de filmes pela internet).
Igualmente, neutralidade absoluta e uma quantidade infinita de dados por mês é de pouca utilidade para aqueles que acessam a internet a partir de uma telinha de duas polegadas de um telefone celular. Sob o ponto de vista do preço para os usuários, se todos os pacotes são iguais, a neutralidade absoluta implica em que não poderão existir planos com tarifas mais baratas: todos os assinantes de uma certa velocidade terão que pagar o mesmo valor, independentemente de sua necessidade, do seu meio de acesso e de seus recursos financeiros.
Certamente a neutralidade absoluta possui forte eco entre aqueles que acreditam que as comunicações devem ser livres e abertas, e, portanto, favorecem a democracia e o direito à liberdade. Nessa visão, qualquer monitoramento e gerenciamento limita o livre fluxo de informações e aumenta o poder das corporações, além de diminuir a competição e a inovação.
Para as operadoras, a permissão para ‘auscultar’ os pacotes é a garantia de isonomia com os provedores de conteúdo e conduz ao que, na verdade, deveria ser o debate de fundo: ‘quem tem o direito de bisbilhotar as comunicações pessoais?’. Essa pergunta traz a discussão da neutralidade para próximo do da guarda dos dados.
A polêmica sobre o armazenamento dos registros dos internautas é outro ponto onde interesses comerciais, governamentais e de usuários divergem. O monitoramento hoje já é feito por parte de provedores de conexão e de conteúdo e governos. As empresas de conexão querem poder continuar a explorar esse vasto ‘mercado’ de oportunidades.
Em suma, o debate sobre o Marco Civil da Internet é certamente multifacetado. Um ponto em que esta discussão fez evoluir significativamente foi o da introdução de dispositivos que flexibilizam a neutralidade, mas garantem a transparência, a isonomia e a não discriminação puramente concorrencial dos serviços. Essas questões são fundamentais para os usuários. Transparência para que o usuário saiba quais condições seu plano de conexão contempla. O quê está incluído naquele preço e o quê não está. Quais são as informações pessoais que estão sendo compartilhadas quando determinado sítio é acessado; quem tem direito a lê-las; quem tem direito a comercializá-las; a quem são repassadas. Quem é o responsável pelos serviços e pela guarda das informações. Como podem ser impostos limites às empresas que garantam a privacidade dos cidadãos e o acesso isonômico aos serviços é um grande desafio. Em um ambiente extremamente comercializado, onde todas as informações são monetizadas e possuem um certo risco embutido para o usuário, certamente o internauta não pode mais ficar a mercê de contratos de adesão que não lhe garantam privacidade, proteção e liberdade.
Atualmente, a internet não é mais um ambiente livre, imparcial e sem fins lucrativos. Por outro lado, os cidadãos também querem participar de grandes redes sociais que visam ao lucro, têm e-mails em empresas que sabidamente leem o seu conteúdo e usam serviços globalizados que podem ser monitorados por governos no exterior. O desafio é como equacionar tudo isso em uma internet que seja viável, acessível e justa para todos.
[1] Provedores de conexão são as empresas de telecomunicações que provêm a banda larga aos usuários (por exemplo, operadoras de telefonia ou do cabo).
[2] Provedores de conteúdo são empresas ou pessoas que provêm a internet de conteúdo, i.e. quem alimenta as páginas da internet ou posta qualquer tipo de material na rede (textos, audiovisual, etc). Neste grupo encontram-se tanto empresas globais, como Google e Facebook, empresas nacionais, como UOL e Globo, quanto usuários, quando criam páginas pessoais (por exemplo meunome.com.br). Quando usuários utilizam-se de páginas de empresas para postar conteúdos (por exemplo usuários comentando nas redes sociais ou criando blogs em empresas que hospedam esses aplicativos), costuma-se nomear esse material como conteúdo gerado por terceiros.
[3] O texto comparativo com a versão publicada em 11/12/13 pode ser encontrado no sítio:
https://i.teletime.com.br/arqs/Outro/75182.pdf, e https://idgnow.uol.com.br/blog/circuito/2013/12/11/molon-torna-publicas-novas-mudancas-no-texto-do-marco-civil/, ambos acessados em 09/01/2014.
Notícia da divulgação desta versão se encontra disponível no sítio: https://www.teletime.com.br/11/12/2013/novo-relatorio-preserva-modelos-de-negocios-das-teles/tt/363759/news.aspx, acessado em 09/01/2014.
Esta versão não se encontrava publicada no sítio e-democracia até 09/01/2014, última atualização deste trabalho.
[4] Para maiores detalhes acerca do alcance da legislação norte-americana, por exemplo, ver a seção 5 deste documento, onde o Calea Act é comentado.
[5] No caso, a Comcast estava diminuindo a velocidade de usuários que utilizavam aplicativos peer-to-peer, muitas vezes utilizados para o download de conteúdos protegidos, tais como filmes, etc.
[6] Regra Final da FCC 47 CFR Parts 0 and 8, de 23/09/11, “Preservando a Internet Aberta” (“Preserving the Open Internet”). Disponível em https://www.gpo.gov/fdsys/pkg/FR-2011-09-23/pdf/2011-24259.pdf, acessado em 07/11/13.
[7] Proposta de Regulação nova e alteração de Diretivas existentes, de 11/09/13, “Proposal for a Regulation of the European Parliament and of the Council - laying down measures concerning the European single market for electronic communications and to achieve a Connected Continent, and amending Directives 2002/20/EC, 2002/21/EC and 2002/22/EC and Regulations (EC) No 1211/2009 and (EU) No 531/2012”. Disponível em https://www.ipex.eu/IPEXL-WEB/dossier/document.do?code=COM&year=2013&number=627&extension=null, acessado em 07/11/13.
[8] A Diretiva original pode ser consultada em: https://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=CELEX:31995L0046:en:HTML, acessado em 12/11/13
[9] Maiores informações sobre o processo de revisão da diretiva pode ser visto em “Commission proposes a comprehensive reform of the data protection rules”, disponível em https://ec.europa.eu/justice/newsroom/data-protection/news/120125_en.htm, acessado em 12/11/13.
(Texto elaborado em janeiro de 2014).