Texto Base da Consultoria Legislativa

DIRETORIA LEGISLATIVA
CONSULTORIA LEGISLATIVA
ASSUNTO: ESTATUTO DA IGUALDADE RACIAL

CONSULTOR: Márcio Nuno Rabat
DATA: 30 novembro de 2010

Aprendemos desde crianças que a população brasileira formou-se, inicialmente, a partir da convergência entre os colonizadores europeus, as populações autóctones da América do Sul e as populações transferidas compulsoriamente da África como mão-de-obra escrava. Foi um encontro marcado por enorme disparidade de poder físico e simbólico. A expansão colonialista europeia e a escravização de povos indígenas e africanos produziram estigmas intensos nos grupos escravizados. O apogeu da estigmatização talvez tenha ocorrido depois de abolida a escravidão, com a emergência de teorias racistas, de base supostamente científica, na passagem do século XIX para o XX.

A “questão racial”, por tudo isso, nunca deixou de estar presente na reflexão sobre o Brasil, da mais sofisticada à mais rasteira. O amplo leque de posições envolvidas nessa reflexão se estende do racismo extremado, que simplesmente considera o país inviável, por conta de uma suposta composição populacional de baixa qualidade, ao otimismo pouco realista de considerar os estigmas da opressão racial praticamente irrelevantes ou superados. 

A legislação brasileira, por seu turno, tampouco deixou de tratar repetidamente de questões direta ou indiretamente ligadas à diversa origem geográfica e étnica dos grupos humanos que foram compondo a população do país. Não poderia, aliás, ser de outra maneira, pois as questões estruturalmente vinculadas com o processo de formação de uma sociedade se fazem necessariamente presentes, de uma forma ou de outra, na produção legislativa. O tratamento legal dado ao tema, no entanto, variou significativamente ao longo do tempo. A Lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010 (Estatuto da Igualdade Racial), que entrou em vigor em 20 de outubro último, indica mais uma mudança na forma como o legislador aborda a questão, em particular no que toca à população negra.
Ao longo de séculos, as iniciativas legislativas incidentes sobre questões raciais tenderam a reproduzir as concepções que viam na forte presença de população de origem não europeia uma desvantagem para o Brasil. O reflexo legislativo dessas concepções se dava pela recusa do direito de voto aos escravos libertos, pela vedação do acesso a cargos na administração pública a quem tivesse a “marca da cor”, pela promoção estatal da imigração europeia para substituir mão-de-obra de origem africana e por muitos outros caminhos.

Somente no século XX começa a tornar-se dominante a noção de que a convergência de grupos humanos com distintas contribuições culturais, técnicas e outras constitui um fator positivo no processo de formação do Brasil. Não por acaso, trata-se do período histórico em que começa a decair o predomínio europeu sobre o mundo. É então que ganha intensidade a ideia de que a discriminação racial deve ser legalmente combatida, primeiro, timidamente, como contravenção e, bem recentemente, com a clara tipificação do racismo como crime.

 O Estatuto da Igualdade Racial surge como manifestação legal de mais uma modificação na maneira de encarar as relações raciais no Brasil. Embora o conceito de raça, em si, venha caindo em descrédito, isso não tem impedido que se perceba que os estigmas raciais continuam a contribuir para que os descendentes dos povos antigamente escravizados permaneçam em situação de desvantagem no país. Afinal, no Brasil e no mundo, a origem geográfica e étnica das famílias remete de imediato para uma hierarquia de poder e riqueza historicamente sedimentada. A questão é como superar as desigualdades materiais acumuladas e seus efeitos simbólicos rumo a uma democracia racial efetiva.

A novidade reside na crescente desconfiança quanto à possibilidade de que tal superação se venha a dar, em curto ou médio prazo, pela mera criminalização do racismo e da discriminação racial. Adira-se ou não à ideia de que o Brasil demonstra particular potencialidade para se tornar uma nação racialmente igualitária, pode-se defender, e tem sido crescentemente defendido, que são necessárias intervenções estatais positivas, no sentido de promover a igualdade substantiva, para que ela seja alcançada em prazo não excessivo.

O Projeto de Estatuto da Igualdade Racial exprimia, desde o início, a disputa pela concretização legal dessa visão a respeito do combate à desigualdade racial e ao racismo. Trata-se, aliás, de uma posição que se reforçou e ganhou apoio social nos cerca de dez anos em que a matéria foi objeto de análise mais intensa no Congresso Nacional. 

 O Projeto de Lei nº 3.198, de 2000, foi submetido, junto com o PL nº 3.435, do mesmo ano, e com os PLs de nº 6.214 e 6.912, ambos de 2002, à análise de Comissão Especial instalada na Câmara dos Deputados em setembro de 2001. A Comissão realizou um extenso trabalho de aperfeiçoamento das proposições originais, inclusive com a participação de especialistas de fora da Câmara, de que resultou a aprovação, em seu âmbito, de Substitutivo ao PL nº 3.198, de 2000, em dezembro de 2002.

Em 29 de maio de 2003, o Projeto de Lei nº 213 foi apresentado ao Senado Federal com o mesmo conteúdo do Substitutivo elaborado e aprovado na Comissão Especial da Câmara dos Deputados. Com isso, proposições idênticas passaram a estar sob apreciação nas duas Casas do Congresso Nacional, o que reforçou ainda mais a discussão de um tema que vinha ganhando espaço na sociedade.

O Projeto de Lei nº 213, de 2003, aprovado no Senado Federal com significativas modificações em relação ao texto originalmente apresentado, tornou-se, na Câmara dos Deputados, o PL nº 6.264, de 2005. A Comissão Especial que o avaliou na Câmara mais uma vez modificou substancialmente o texto, até que, finalmente, uma nova versão foi remetida à apreciação final do Senado. A nova versão foi aprovada no Senado Federal, com modificações pontuais, embora em aspectos relevantes, e encaminhada à sanção presidencial, que veio a ocorrer em 20 de julho de 2010. O próprio Projeto dispunha que a Lei dele resultante entraria em vigor noventa dias após a publicação, o que aconteceu em 20 de outubro de 2010.

O período de apreciação da matéria contida nos projetos de lei que afinal se transformaram no Estatuto da Igualdade Racial coincidiu com intensas discussões na sociedade brasileira sobre a nova forma de se tratar a questão racial no Brasil. Ao longo de todo esse período, ademais, iniciativas foram tomadas, em vários âmbitos, destinadas a produzir, por ações positivas, condições de igualdade para brasileiros de distintas origens étnicas. Salta à vista, por exemplo, o esforço de inúmeras universidades para garantir uma composição mais igualitária de seu corpo de alunos.

Ao mesmo tempo, o governo federal se foi capacitando para melhor intervir nesse âmbito, com a criação de agências especializadas, como a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República – Seppir, e com o treinamento de órgãos previamente existentes para agir em questões de especial interesse da população negra. Um bom exemplo é a atuação do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - Incra na titulação das terras de remanescentes das comunidades dos quilombos.

A consagração desses esforços em legislação aprovada pelo Congresso Nacional eleva a questão para um novo patamar. As leis em sentido estrito, justamente por serem elaboradas em casas legislativas especialmente compostas para refletir a diversidade de posições existentes no país, exprimem, quando aprovadas, o amadurecimento da matéria no seio da sociedade. Pela mesma razão, elas indicam, como maior clareza, o peso relativo das forças sociais que se debruçam sobre os temas tratados pelo Poder Legislativo.

A Lei nº 12.888, de 2010 (Estatuto da Igualdade Racial), não é diferente, nesse aspecto, de qualquer outro diploma legal complexo. Cada tema ali tratado expressa o grau de amadurecimento de sua discussão e uma determinada correlação de forças no Congresso Nacional. Se, de um lado, houve convergência para o tratamento mais detalhado de algumas questões, em outros casos, questões importantes foram apenas embrionariamente abordadas, ficando o detalhamento para futuras deliberações congressuais. É indiscutível, no entanto, que o leque de matérias tratadas foi bastante amplo e que, portanto, o ponto de partida para desdobramentos posteriores não é nada estreito.

Três dimensões devem ser realçadas no vasto enquadramento que o Estatuto da Igualdade Racial cria para a atuação do Estado e da sociedade em seu campo de incidência. Ele fixa, no Título I (arts. 1º a 4º), os princípios gerais que devem guiar a promoção da igualdade racial entre nós, com a definição de objetivos, meios e conceitos balizadores da atuação estatal e social nesse âmbito, conceitos que podem vir a ganhar maior  densidade no próprio processo de sua concretização; ele traça, no Título II (arts. 6º a 46), desdobrado em seis capítulos (do direito à saúde; do direito à educação, à cultura, ao esporte e ao lazer; do direito à liberdade de consciência e de crença a ao livre exercício dos cultos religiosos; do acesso a terra a à moradia adequada; do trabalho; dos meios de comunicação), caminhos e referências concretas para a promoção da igualdade em áreas específicas; e, no Título III (arts. 47 a 57), ele dá sustentação legal ao processo de estruturação do Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial (Sinapir).

Márcio Nuno Rabat

Consultor Legislativa

 

Material atualizado até a data da publicação (30/11/2010).