Texto Base da Consultoria Legislativa
25 ANOS DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
Débora Bithiah de Azevedo
Consultora Legislativa da Área XVIII - Ciências Políticas, Sociologia Política, História, Relações Internacionais
Julho/2015
O Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA mudou a forma de se enxergar a infância e a juventude no país, reconhecendo-os como sujeitos de direito. Há vinte e cinco anos, os princípios da proteção integral, da prioridade absoluta e do melhor interesse, que sustentam o texto do ECA, passaram a embasar as normas e instituições voltadas para o atendimento hoje de 56 milhões de crianças e adolescentes brasileiros.
A Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, que dispõe sobre o ECA, foi aprovada pouco tempo após a promulgação da Constituição Federal de 1988 e veio regulamentar o seu artigo 227 que estabelece, in verbis:
“É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”
Consolidando o disposto no texto constitucional, o ECA reconhece direitos de crianças e adolescentes e define procedimentos em diversas áreas, tendo em vista a sua proteção e a promoção do seu desenvolvimento. A proteção preconizada não é de responsabilidade apenas do Estado, mas também da família e da sociedade. A doutrina de proteção integral afirma que “toda criança e adolescente são merecedores de direitos próprios e especiais que, em razão de sua condição específica de pessoas em desenvolvimento, estão a necessitar de uma proteção especializada, diferenciada e integral” (VERONESE, 2013, p. 49).
A mudança de concepção proporcionada pelo ECA se opõe ao conceito de situação irregular que embasava a legislação, as políticas e as instituições para a infância ao longo do século XX. O Código de Menores, promulgado em 1927, foi a primeira lei voltada para a criança e o adolescente, chamado de “menor” pelo texto legal. Antes, o Código Criminal, de 1830, e o Código Penal, de 1890, trataram apenas da situação do jovem infrator (CAJUEIRO, 2015, p. 144). A concepção do Código de Menores era calcada na doutrina do menor em situação irregular, sendo aplicado aos menores de 18 anos de idade que estavam em condição de abandono ou de delinquência. A lei dispunha, ainda, sobre o trabalho infantil, o pátrio poder, a tutela, a delinquência e a liberdade vigiada, e preconizava a centralização do poder nas mãos do juiz, não havendo dosimetria da pena conforme o ato infracional cometido pelo “menor” (CAJUEIRO, 2015, p. 145).
Em 1979, novo Código de Menores revogou o anterior, embora também se pautasse pela doutrina da situação irregular. Esse Código trouxe atualizações conceituais e criou novas garantias. Quanto ao menor infrator, as penalidades passaram a ser aplicadas paulatinamente, conforme a gravidade do ato praticado (CAJUEIRO, 2015, p. 146).
A reflexão sobre a condição da criança e do adolescente no Brasil teve como referência as decisões internacionais sobre a matéria. Um marco importante foi a aprovação, pelas Nações Unidas, da Declaração dos Direitos da Criança, em 1959, que deu origem à doutrina da proteção integral (VILAS-BOAS, 2011). Seu preâmbulo afirmava, textualmente, o seguinte:
“Considerando que a criança, em decorrência de sua imaturidade física e mental, precisa de proteção e cuidados especiais, inclusive proteção legal apropriada, antes e depois do nascimento.”[1]
Outro documento internacional importante, a Convenção sobre os Direitos da Criança, foi aprovado pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1989. Seu texto incorpora os princípios de direitos humanos já adotados na normativa internacional sobre a matéria, reafirma a doutrina da proteção integral e reconhece “direitos básicos universalmente aceitos e que são essenciais para o desenvolvimento completo e harmonioso de uma criança”. (VERONESE, 2013, p. 47). A Convenção considera criança toda pessoa com menos de 18 anos, sem distinguir fases de desenvolvimento nessa faixa etária. O texto firma o compromisso dos Estados em adotar uma legislação conforme suas disposições e em não violar seus preceitos. A Convenção foi promulgada no Brasil em 1990[2] e já foi assinada por mais de 190 países.
Assim, o texto do ECA resgata o disposto no art. 227 da Constituição Federal e na Convenção sobre os Direitos da Criança para estabelecer, em 267 artigos, os direitos e garantias atinentes aos que têm menos de 18 anos. O Estatuto estabelece o princípio da prioridade absoluta tendo em vista a condição de pessoas em desenvolvimento de crianças e adolescentes. Tal prioridade fica evidente na redação do art. 4º do Estatuto, reproduzido abaixo:
“Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.”
O ECA proporcionou o funcionamento em rede de diversos tipos de órgãos de proteção da infância e juventude espalhados por todo o país. Sua implementação “se consolidou por meio da criação de um sistema de garantia de direitos que compreende conselhos, promotorias, varas da infância, defensorias, delegacias, SOS e núcleos de assistência e atendimento” (FALEIROS, 2005, p. 174). Constituem parte fundamental desse sistema os Conselhos Tutelares, criados com o Estatuto, para zelar pelos direitos de crianças e adolescentes, devendo existir pelo menos um em cada município. Hoje, conforme levantamento feito entre abril e outubro de 2012, existem 5.906 Conselhos em todo o país[3].
Ao longo dos anos, o ECA recebeu algumas modificações que atualizaram seu texto, como a Lei Nacional de Adoção (Lei nº 12.010/2009) ou incorporaram novos temas que vinham sendo demandados pela sociedade, fortalecendo os mecanismos de proteção da infância. Exemplo de incorporação de um tema novo é a Lei da Alienação Parental (Lei nº 12.318/2010) que busca coibir a interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente promovida ou induzida por um dos genitores ou outra pessoa que tenha sua guarda. É o caso também da Lei Menino Bernardo (Lei nº 13.010/2014) que estabelece o direito da criança e do adolescente de ser educado e cuidado sem o uso de castigo físico ou de tratamento cruel ou degradante. Destaca-se, ainda, a Lei nº 11.829/2008 que alterou os artigos 240 e 241 do ECA para aprimorar o combate à produção, venda e distribuição de pornografia infantil, bem como criminalizar a aquisição e a posse de tal material e outras condutas relacionadas à pedofilia na internet.
O Estatuto da Criança e do Adolescente tem sido bastante debatido ao longo dos anos no Congresso Nacional por meio da discussão de proposições que tentam modificá-lo das mais variadas formas. Tramitam hoje na Câmara dos Deputados 248 proposições legislativas que objetivam modificar o ECA. Essas iniciativas foram apresentadas entre 1994 e 2015 por deputados de diferentes partidos e regiões e versam sobre temas diversos, a exemplo dos seguintes assuntos:
- Adolescentes autores de atos infracionais: medidas socioeducativas, aumento do período de internação, formação técnico-profissional, outros;
- Conselho tutelar: criação, funcionamento, eleição de conselheiros, recursos materiais, outros;
- Processo de adoção;
- Medidas relativas a crianças e adolescentes desaparecidos;
- Internet e jogos eletrônicos;
- Crime de corrupção de menor: aumento da pena;
- Violência e maus tratos: obrigatoriedade de notificação por profissionais de saúde e educação; exploração sexual de crianças e adolescentes;
- Classificação indicativa de programas de TV, propaganda de produtos infantis, presença em shows e espetáculos;
- Doações aos Fundos dos Direitos da Criança e do Adolescente.
Os vinte e cinco anos decorridos da aprovação do ECA foram marcados por transformações em diversas áreas, inclusive nos índices de desenvolvimento referentes à infância e à juventude. A taxa de mortalidade infantil apresentou redução significativa de 77%, passando de 62 óbitos por mil nascidos vivos, em 1990, para 14 óbitos, em 2012.[4] Nesse período, o acesso à escola no ensino fundamental apresentou melhoras substanciais, alcançando algo em torno de 98% das crianças entre 7 a 14 anos. Entretanto, é ainda muito precário o acesso a creches, que atendem somente 20% das crianças de 0 a 3 anos[5], à educação infantil (crianças de 4 e 5 anos) e ao ensino médio (adolescentes de 15 a 17 anos). A Emenda Constitucional nº 59/2009 estendeu a obrigatoriedade do ensino para a faixa etária de 4 a 17 anos. Quanto ao trabalho infantil, o número de crianças e adolescentes de 5 a 17 anos em situação de exploração vem apresentando queda significativa desde 1990, passando de 8.423.448, em 1992, para 3.673.000, em 2011, contabilizando uma redução de 56%, como afirma a Organização Internacional do Trabalho – OIT, com base nos dados da Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílio (PNAD), do IBGE.[6]
Esses indicadores sociais positivos convivem com a necessidade de avanços em diversas áreas onde persistem carências, situações de risco e violações de direitos de crianças e adolescentes. O país apresenta contrastes e desigualdades e, em meio à complexidade das questões que dizem respeito à infância e à juventude, o ECA tem críticos e defensores que mantém sempre ativo o debate sobre o tema.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CAJUEIRO, Josiane Neves (2015). “A evolução do ordenamento jurídico voltado para as questões da criança e do adolescente”. Revista de Doutrina e Jurisprudência. V. 106, nº 1.
Convenção sobre os Direitos da Criança, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 20 de novembro de 1989. Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D99710.htm (acesso em 03/07/2015)
Declaração dos Direitos da Criança adotada pela Assembleia das Nações Unidas em 20 de novembro de 1959. Disponível em https://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Crian%C3%A7a/declaracao-dos-direitos-da-crianca.html (acesso em 03/07/2015)
FALEIROS, Vicente de Paula (2005). “Políticas para a infância e adolescência e desenvolvimento”. Políticas Sociais – acompanhamento e análise. IPEA, 11, agosto 2005.
VERONESE, Josiane Rose Petry (2013). “A proteção integral da criança e do adolescente no direito brasileiro”. Revista do TST, Brasília, vol. 79, nº 1, jan/mar 2013.
VILAS-BÔAS, Renata Malta (2011). “A doutrina da proteção integral e os princípios norteadores do direito da infância e juventude” In Âmbito Jurídico, Rio Grande, XIV, n. 94, nov 2011. Disponível em https://www.ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=10588&revista_caderno=12 (Acesso em 22/06/2015)
VILAS-BOAS, Renata Malta. “A doutrina da proteção integral e os princípios norteadores do direito da infância e da juventude”. https://www.ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=10588&revista_caderno=12. Acesso em 22/06/2015.
[1] Declaração dos Direitos da Criança adotada pela Assembleia das Nações Unidas em 20 de novembro de 1959. Disponível em:
https://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Crian%C3%A7a/declaracao-dos-direitos-da-crianca.html (acesso em 03/07/2015)
[2] Convenção sobre os Direitos da Criança, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 20 de novembro de 1989 e promulgada no Brasil em 21 de novembro de 1990, pelo Decreto nº 99.710. Decreto e texto da Convenção disponível em:
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D99710.htm (acesso em 03/07/2015)
[3] Cadastro Nacional dos Conselhos Tutelares: Histórico, Objetivos, Metodologia e Resultados / Andrei Suárez Dillon Soares (Org.) – Brasília: Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, 2013. https://www.sdh.gov.br/assuntos/criancas-e-adolescentes/programas/fortalecimento-de-conselhos/cadastro-nacional-dos-conselhos-tutelares-1
[4] “Taxa de mortalidade infantil no país cai 77% desde 1990”. https://www.brasil.gov.br/saude/2013/09/taxa-de-mortalidade-infantil-no-pais-cai-77-desde-1990 (acesso em: 07/07/2015)
[5] “Direito à educação. Acesso e qualidade, os desafios.” https://revistaeducacao.uol.com.br/textos/161/artigo234838-1.asp (Acesso em 07/07/2015)
[6] “O desafio de erradicar o trabalho infantil” https://www.oitbrasil.org.br/content/o-desafio-de-erradicar-o-trabalho-infantil (Acesso em 07/07/2015)