TV mais responsável

13/12/2005 17h10

Leila Reis

Se nada de extraordinário acontecer, amanhã estréia na RedeTV! um programa absolutamente fora dos padrões da TV brasileira. As ONGs que processaram a emissora por causa das pegadinhas do Tarde Quente, comandado por João Kleber, ganharam na Justiça o direito de colocar no ar um mês de programação (das 16 às 17 horas) vendendo o peixe das causas que abraçam. O programa de auditório (fora do ar há algum tempo) foi acusado de humilhar gays e deficientes com as brincadeiras, incentivando assim o preconceito contra as minorias.

Além de ser condenada a exibir os programas, a RedeTV! também foi obrigada a pagar a conta da produção: R$ 200 mil. Para os padrões de televisão esse valor é irrisório (um só capítulo de novela na Globo custa perto de R$ 200 mil) e, se não fosse o interesse das produtoras independentes em contribuir, talvez não fosse possível ocupar o horário conseguido por meio da ação judicial.

Assim, entra no ar um programa cuja fórmula anunciada é um debate e a exibição de programas sobre direitos humanos. Os temas tratam do combate à discriminação sexual, racial, a fome, a defesa dos direitos da criança e do adolescente, da reforma agrária, direito à comunicação, etc. A Intervozes, uma das organizações envolvidas, recebeu mais de 100 fitas candidatando-se a entrar no vídeo. A seleção dará vez àquelas com um padrão técnico minimamente compatível com o da TV.

Não cabe discutir a priori o resultado do que vai ao ar. Mas, independentemente de qualquer coisa, esse fato é inédito na TV brasileira e remete a algumas constatações.

A primeira é que somente o incrível desenvolvimento tecnológico permite a pequenos produtores a possibilidade de preencher uma grade de programação sem despender os milhões de dólares investidos pelas emissoras em passado recente.

Outra constatação é que existe uma demanda reprimida de criadores em busca de um canal de expressão. Assuntos de interesse do terceiro setor podem não encontrar receptividade na rede aberta, mas isso não impede que vídeos e filmes sejam produzidos para alimentar o circuito de atividades das entidades.

São esses documentaristas, cineastas, videomakers &mdashseja; lá como se chamam— que se mexeram para batalhar uma oportunidade de aparecer na TV. Eles não podem ser acusados de artistas em busca do estrelato. Como criadores, buscam legitimamente atingir um público do tamanho que só a TV consegue arrebanhar.

A mais importante das constatações é que, pela primeira vez na vida da televisão brasileira (que nasceu em 1950), a Justiça olha para o conteúdo da programação a pedido de representantes de cidadãos ofendidos e lhes dá razão, punindo efetivamente uma emissora (a Rede TV! ficou 25 horas fora do ar por não colocar os programas educativos no horário do Tarde Quente).

Essa atitude do poder constituído mexeu muito com os defensores da concorrência de mercado. O pessoal — numeroso, diga-se de passagem, que aponta o telespectador como o responsável pela baixa qualidade da TV porque, em tese, é o dono do controle remoto — acusou a volta da censura e alardeou o perigo que corria a liberdade de expressão.

Na verdade, o que ocorreu — e parece que a opinião pública assim entendeu — é que o Ministério Público acatou reclamação de representantes de brasileiros (deficientes, negros e homossexuais) que se sentiram prejudicados pela televisão e a Justiça deu ganho de causa aos ofendidos. No que nos tange, esse ato é exemplar, porque responsabiliza finalmente as emissoras pelo que colocam dentro da casa dos brasileiros.