Trabalhadores e instituições pedem a nacionalização da Ford; Dieese e sindicatos alertam para “efeito dominó”

“Temos que fazer da Ford um símbolo do que não deve acontecer no Brasil. Vir, explorar trabalhadores, faturar usando dinheiro público e ir embora não dá”, Aroaldo Oliveira da Silva, presidente da IndustriALL Brasil.
03/02/2021 20h25

Foto: Fernando Bola

Trabalhadores e instituições pedem a nacionalização da Ford; Dieese e sindicatos alertam para “efeito dominó”

Três fábricas da Ford, em Camaçari (BA), Horizonte (CE) e Taubaté (SP) foram fechadas no dia 11 de janeiro. Com a iniciativa, a Ford anunciou 5 mil demissões. O Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese)s divulgou estudo que aponta o potencial fechamento de aproximadamente 119 mil postos de trabalho.


Nesta quarta-feira (3), o presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados (CDHM), Helder Salomão (PT/ES) promoveu um debate sobre os impactos do fechamento dessas fábricas no Brasil. O encontro foi solicitado por Aroaldo Oliveira da Silva, presidente da IndustriALL Brasil; Carlos Caramelo, diretor do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC e Leonardo Pinho, presidente da Central de Cooperativas Unissol Brasil. Os três assinam uma Nota Técnica com uma série de considerações sobre o fechamento das unidades da Ford.


A empresa deve manter apenas um centro de provas em Tatuí (SP) e, provisoriamente, um Centro de Desenvolvimento de Produtos em Camaçari (BA), para produção de peças de reposição.


De acordo com o levantamento do DIEESE, o impacto vai além das 5 mil demissões anunciadas, porque os postos diretos, indiretos e os induzidos somam 119 mil, além da perda potencial de massa salarial da ordem de R$ 2,5 bilhões/ano.


“A Ford foi historicamente beneficiada com incentivos fiscais e financiamentos com dinheiro público. Uma fábrica que se aproveitou muito do Estado brasileiro. O carro fabricado na Bahia não pagava imposto por causa dos incentivos. Uma taxa de retorno baseada na isenção fiscal. Já teve faturamento de 62 milhões de dólares e produziu 140 mil veículos. 84% da produção era feita e vendida aqui. Agora, vai ocupar esse mercado com veículos importados”, afirma Fausto Augustos Junior, do Dieese. Ele ressalta que “Yoki, Zara, 3M, Mercedes e outros grupos globais estão fechando fábricas ou saindo do país. O PIB deve ter uma queda ainda maior que a prevista e as taxas de câmbio estão muito acima dos patamares normais. Nosso alerta é que esse caminho deve ser tomado por outras grandes empresas”.


Wellington Damasceno, diretor executivo do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC lembra que “travamos uma grande luta contra o fechamento da Ford em São Bernardo do Campo. No final, a planta foi comprada para armazenamento de produtos, muitos importados, de uma indústria do setor mobiliário. Estamos vivendo a redução da produção industrial, a Ford tem uma cadeia intensa de empresas no entorno e elas estão fechando. Deve haver uma cobrança firme do governo. Se isso não for feito, outras empresas vão seguir o mesmo caminho”.


Mobilização


Para o presidente da CDHM “é um tremendo impacto social e econômico, os governos estaduais e municipais estão lutando para reverter a situação. As instituições sindicais e o Congresso devem se mobilizar para impedir essa abrupta decisão, que viola princípios e diretrizes de direitos humanos. A reunião de hoje é parte de uma grande mobilização”, avalia Helder Salomão.


Representações de trabalhadores e dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) apontam que o Brasil já acumula mais de 30 mil desempregados no setor, inclusive os demitidos pela Ford, em 2019, quando a empresa fechou a fábrica de veículos em São Bernardo do Campo (SP). Além da Mercedes, há possibilidade de a Audi fechar a fábrica no Paraná.


“Traiçoeira e desleal”


Além dos incentivos recebidos pelo Estado, os trabalhadores da Ford também tomaram iniciativas para colaborar com a empresa na preservação dos empregos.


“Demos uma contribuição imensa, acreditando nisso. Cedemos em reajustes salariais, aumento na contribuição de planos médicos e na participação nos resultados. A Ford foi traiçoeira e desleal. Deu uma banana para nós. Vai produzir em outros países para vender aqui. Que produza na Argentina e venda lá, que produza aqui para vender aqui. Queremos a nacionalização da Ford e a retomada do Inovar-Auto”, ressalta Cláudio Batista, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de Taubaté.


O Programa de Incentivo à Inovação Tecnológica e Adensamento da Cadeia Produtiva de Veículos Automotores (Inovar-Auto) foi criado durante o governo de Dilma Rousseff e tinha como objetivo melhorar a competitividade, a tecnologia e a segurança para os carros produzidos e vendidos no Brasil. Terminou em dezembro em 2017.

Sidivaldo Borges, representante dos trabalhadores da Ford de Taubaté reitera que “nos últimos três anos concordamos em congelar os salários e fomos traídos. Não só nós, mas toda a sociedade e os consumidores que acreditaram na marca. A Ford mente descaradamente. Afirma que serão gastos 23 bilhões de reais em indenizações, mas em nossos cálculos o valor vai ser de 0,5% disso”.


“Tapa na cara”


Julio Bonfim, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de Camaçari conta que na fábrica que foi fechada “já tinha até projeto de três novos carros, um deles até com modelo novo pronto, com lançamentos entre outubro de 2021 até 2023. Criou expectativa e tomamos um tapa na cara. A Ford é a única empresa automobilística na Bahia e a maior indústria do estado. Não temos para onde ir”. O metalúrgico pede a retomada do Inovar-Auto e um projeto de lei para nacionalizar a Ford e alerta que “Peugeot e Renault também cogitam sair do país”.


Segundo reportagem veiculada pela TV Globo na última segunda, empresas fornecedoras de produtos e serviços já sentem o impacto. Como, por exemplo, os motoristas de carretas que levavam os veículos produzidos para o resto do país. De acordo com a reportagem, dos 2.500 cegonheiros que faziam esse transporte, 98% pararam. Dos 250 rodoviários que transportavam funcionários para Ford, 150 foram demitidos.

Para Erika Kokay (PT/DF) “estamos diante de um fato que deixa um rastro de desconstrução de dignidade muito grande. Já temos a proposta da nacionalização da Ford e outra questão é estabelecer um novo marco para políticas de subsídios”. A parlamentar sugere convidar o ministro da Economia, Paulo Guedes, para explicar na Câmara dos Deputados o que o governo pretende fazer para reverter a situação.


Judicialização

 

Para Yuri Costa, presidente do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), a o caso não deve ser visto “apenas como de direitos trabalhistas, mas um problema de direitos humanos nos âmbitos nacional e internacional. Queremos a compensação ou reversão dessas demissões e, se for necessário, a judicialização do caso”.


“Uma situação inaceitável com diversas dimensões e impactos avassaladores, que vão da redução na arrecadação dos municípios à falta de credibilidade da nossa indústria. Vamos virar uma casa de passagem. Temos que defender os interesses do país, caso contrário seremos cada vez mais desrespeitados”, destaca Daniel Almeida (PCdoB/BA).


Alberto Bastos Balazeiro procurador-geral do Ministério Público do Trabalho explica que foi criado um grupo de trabalho para tratar do caso. “Já fizemos audiência com a empresa, reuniões com os governos estaduais e municipais, que foram pegos de surpresa, e BNDES. Também abrimos três inquéritos civis para acompanhar os processos de demissão, a necessidade dos postos de trabalho e sobre a concessão de 783 milhões de reais para a construção das fábricas. Não descartamos ações judiciais”.


“Uma dispensa coletiva extravasa os muros de uma empresa. Segundo a OIT, mais de 80% dos países do mundo têm regulação protetiva de dispensas coletivas. Não pode uma empresa com presença de mais de cem anos decidir abandonar um país e deixar um lastro de 120 mil postos de trabalho fechados”, pondera Jefferson Maciel Rodrigues, procurador do Trabalho e coordenador do grupo de trabalho sobre a Ford.


“Um drama que vai além do desemprego, um drama que escancara a falta de políticas para nossa indústria. O fechamento da Ford é um desrespeito com o nosso país e com a América Latina”, afirma Vicentinho (PT/SP).


“O Brasil vai virar uma imensa fazenda”


Aroaldo Oliveira da Silva, presidente da IndustriALL Brasil, ressalta que “vivemos um momento de falta de política industrial, já no começo do atual governo federal, quando fechou os Ministérios da Indústria e do Trabalho. Além disso há desmonte da Petrobras e da indústria farmacêutica, que teve incentivos cortados. Até a prioridade do governo, o armamento da população, é feita com importação de armas. O mesmo acontece na indústria de produção de energia solar. As empresas daqui não recebem apoio, mas os impostos para importação de produtos estrangeiros foram zerados”.


Silva destaca também que o país está aquém de várias discussões no mundo “como a chamada indústria 4.0 e não estamos participando de nada.
Investimento em pesquisa e desenvolvimento. Também não há debate sobre internet e 5G. A situação provocada pela Ford é um indicativo para discutir o futuro. Está em jogo se queremos a população vivendo em extrema pobreza ou o equilíbrio social e econômico. Temos que fazer da Ford um símbolo do que não deve acontecer no Brasil. Vir, explorar trabalhadores, faturar usando dinheiro público e ir embora é inaceitável”.


Histórico


De acordo com o Dieese, a Ford vem reduzindo o tamanho da empresa no Brasil gradativamente. Em 1980, tinha 21.800 trabalhadores. Dez anos depois, 17.578 trabalhadores e, em 1999, 9.153. Atualmente, a Ford teria 4.604 mil trabalhadores diretos nas unidades de Camaçari e Taubaté (SP) e 470, na fábrica dos jipes Troller, em Horizonte (CE). 


Porém, a empresa havia celebrado um Acordo Internacional para permanecer até 2025 no Brasil.


Encaminhamentos


A presidência da CDHM vai enviar uma nota técnica, elaborada por sindicatos, sobre os descumprimentos pela Ford das Diretrizes de Empresas Multinacionais e dos Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos, à Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico ou Económico (OCDE) e à ONU Brasil, além de solicitar uma reunião com essas instituições.


Parlamentares apresentarão um projeto de lei pela nacionalização da Ford, que deve ser assinado de forma ampla. Logo após, devem participar de reunião com o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (Progressistas/AL), para pedir urgência do projeto. No mesmo encontro poderá ser discutida a retomada das discussões sobre o Programa Inovar-Auto, além da criação de uma comissão geral sobre a iniciativa da Ford.


Também participaram Carlos Caramelo, diretor do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC; Leonardo Pinho, presidente da Central de Cooperativas Unisol Brasil; Aurino Pedreira, presidente do Sindicato dos Mineiros da Bahia e Christiane Nogueira, procuradora do Trabalho do MPT e Vivian Mendes, conselheira do CNDH.

 

Pedro Calvi / CDHM