Políticas públicas para enfrentar o preconceito e a intolerância religiosa
"Existe um imaginário negativo sobre nós, pensam que a gente fica matando galinha e tocando tambor todo o dia. Padres e pastores podem entrar em hospitais, mãe de santo não pode. A população desconhece o que acontece nos terreiros”, conta Nilce Naira Nascimento, a Mãe Nice, coordenadora da Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde (Renafro).
Mãe Nice trouxe para audiência pública a experiência do terreiro dela. Lá, acontece uma experiência de sucesso para geração de renda e emprego. São feitas oficinas de fios de contas e bijuterias, culinária afro-brasileira e toques de atabaque. Além do Projeto Mulheres de Axé, contra a violência doméstica e familiar e ações de combate à intolerância religiosa. Somente no Rio de Janeiro, casos de intolerância cresceram em 56% até abril deste ano, com 112 denúncias e 900 atendimentos na Renafro. Do total de casos, 20% são de depredação de casas de umbanda ou candomblé. “Estão quebrando, destruindo os terreiros no Rio de Janeiro. Por favor, vamos respeitar o saber e as crenças de cada um”, afirma Nice.
Mapeamento
Rafael Moreira, presidente da Federação de Umbanda e Candomblé de Brasília e Entorno, destaca que existem na região cerca de 700 terreiros. Em maio deste ano foi apresentado um mapeamento desses locais, feito pela Universidade de Brasília (UnB) com a Fundação Cultural Palmares.
“Na primeira parte da pesquisa foram catalogados 230 sítios. A maioria deles estão em regiões afastadas do Plano Piloto, como Ceilândia, que tem 43 registros, e Planaltina, com 25. Somos muitos e enfrentamos intolerância religiosa dentro do próprio Estado. Muitos processos de legalização de terreiros, por exemplo, ficam engavetados por causa disso. Outras religiões têm tratamento diferente pelo mesmo Estado”, expõe Rafael.
Criada em 2012, a Rede Brasil Afroempreendedor (Reafro), tem 2 mil associados. São pequenos e microempreendedores que atuam em várias cadeias produtivas e esse número deve aumentar. “No próximo dia 15 vamos lançar uma plataforma nacional e já temos 3 mil cadastrados para fazer parte da Rede. Temos que lembrar que existem no país 24 milhões de microempreendedores, cerca de 24% do PIB brasileiro, e desse total 54% são autodeclarados negros ou pardos. Precisamos de políticas públicas, como o acesso ao crédito, para que os microempreendedores possam evoluir”, informa João Carlos Nogueira, da Reafro.
O Fórum Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional dos Povos Tradicionais e Matriz Africana (FONSANPOTMA), é um movimento autônomo e foi criado em 2011. Entre os objetivos da organização, está a elaboração, promoção e a construção de políticas públicas que atendam a soberania alimentar e nutricional, de acordo com a tradição e a cultura dos povos de matriz africana.
Edson Augusto Nogueira, representante do Fórum, explica que o trabalho tem como base a Convenção nº 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT). “ Já desenvolvemos várias ações, como a instalação da Frente Parlamentar e a Teia em Defesa dos Povos Tradicionais de Matriz Africana, para organizar o apoio no âmbito dos legislativos federal, estaduais e municipais, a criação da Cooperativa Estadual de Desenvolvimento Rural e Trabalho dos Povos Tradicionais de Matriz Africana no Rio Grande do Sul, e o Fundo Solidário Ubuntu, que é um mecanismo de crédito para esse segmento da sociedade brasileira, além da moeda social Grão Digital”, enumera Edson.
Coletivo 105
A organização Coletivo 105 trabalha com economia criativa e visibilidade. Wagner Lucena, do Coletivo, apresentou dois projetos para capacitação e empregabilidade através de uma ferramenta contemporânea, como o áudio visual. No projeto “Coisa de índio”, 27 jovens de tribos no Amapá e no Maranhão fizeram aulas de fotografia, como fazer filmes, documentários e roteiro.
“Esses jovens são agentes de transformação através do áudio visual, o que fortalece a preservação da memória dos povos. Também ajudamos na construção de uma cartela de clientes. Agora, são autores e protagonistas. Os equipamentos usados nos cursos ficam nas aldeias. É empregabilidade e visibilidade”, ressalta Wagner. Outro projeto do Coletivo, “Povo de santo, a voz das cabeças” vai atender 30 jovens dos terreiros e que fazem parte da Rede Jovens de Axé. A iniciativa quer combater a vulnerabilidade da juventude das religiões afro-brasileiras.
“Estamos falando de cultura, saúde e geração de renda, entre outros pontos. Os tambores tocados são prova de resistência e transformação. Toda prática religiosa deve ser respeitada. Essa audiência serviu para mapear as experiências e identificar o trabalho das casas e terreiros e, a partir disso, pleitear que ações para esses povos possam também entrar no orçamento da União. As potencialidades são imensas. Não existe terreiro ou casa de religião afro-brasileira que não exerça uma função social, desde o acolhimento em momentos de dor até a geração de trabalho e fonte de renda”, observa a deputada Erika Kokay (PT/DF), que pediu a realização da audiência pública. Ela também sugeriu a criação de um observatório para acompanhar iniciativas de políticas públicas relacionadas aos povos tradicionais de matriz africana.
História
Os terreiros de religiões dos povos tradicionais de matriz africana foram proibidos em diferentes momentos da história brasileira. Além do frequente preconceito. No passado, os terreiros se instalavam em áreas rurais. Porém, com a urbanização o cenário mudou. Hoje, de acordo com a Fundação Cultural palmares, 87,8% dos sítios estão nas cidades. A maioria deles é de umbanda, de matriz afro-brasileira, com 57,8%. Logo depois, vem o candomblé, de matriz africana com 33,5%. Apenas 8,9% são de umbanda e candomblé conjuntamente.
Pedro Calvi
CDHM