Política de Saúde Mental é debatida em audiência pública

Os participantes argumentaram que a política vem sofrendo retrocessos, com priorização de financiamentos de hospitais psiquiátricos e comunidades terapêuticas, em detrimento do modelo inclusivo e territorial previsto nos marcos legais. O representante do Ministério da Saúde argumentou que as mudanças atendem a uma necessidade de ampliação de ofertas de vagas
08/07/2021 16h31

Captura e montagem: Fernando Bola/CDHM

Política de Saúde Mental é debatida em audiência pública

A Comissão de Direitos Humanos e Minorias debateu nesta quarta-feira (7) os avanços, retrocessos e desafios relativos à Política Nacional de Atenção à Saúde Mental no Brasil.
A audiência pública, presidida pela 2ª Vice-Presidente da Comissão, deputada Érika Kokay (PT/DF), contou com a participação de representantes do governo, da academia, de organizações da sociedade civil, além dos parlamentares Vivi Reis (PSOL/PA), Alexandre Padilha (PT/SP) e Helder Salomão (PT/ES).
Os participantes apontaram retrocessos na política de desinstitucionalização, impactada pela Emenda 95 de teto de gastos e pelo desfinanciamento da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). Demandaram ainda a revogação da Portaria 3588 de dezembro de 2017 do Ministério da Saúde, que incentiva a cultura da hospitalização, aumentando o valor da diária de internação paga aos hospitais psiquiátricos e ampliando o número de leitos psiquiátricos nessas unidades.
Fernanda Rodrigues da Guia, da Comissão Intersetorial de Saúde Mental do Conselho Nacional de Saúde, apontou marcos legais que devem nortear a política de saúde mental brasileira, como a Lei 10.216, que tem como diretriz a desinstitucionalização, a Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, a lei brasileira de inclusão, o ECA e a lei de drogas, que estabelece competências de cuidado para o Ministério da Saúde.
Fernanda apontou que os recursos que deveriam financiar Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS AD) e unidades de Acolhimento estariam financiando comunidades terapêuticas. Ela destacou que relatório de 2018 do Conselho Federal de Psicologia (CFP), do Ministério Público e o do Mecanismo de Combate à Tortura, apontou inúmeras denúncias envolvendo essas instituições em violações de direitos humanos, e que fariam parte de uma política de drogas falida, inspirada no modelo norte-americano.
Ela ainda reforçou que o Conselho Nacional de Saúde é contra a portaria 3588, pela incompatibilidade com os marcos legais brasileiros de atenção à saúde mental. “Nós vínhamos de um trabalho de muitos anos, de desenvolvimento de planos de ação da RAPS que foi descontinuado. A gente tem impacto disso no Plano Nacional de Saúde, que, aliás, foi reprovado pelo Conselho Nacional por não estar seguindo as diretrizes das conferências de saúde. O Conselho Nacional tem essa prerrogativa de desenhar as diretrizes, é preciso que elas sejam cumpridas no desenho das políticas”, afirmou, antecipando a importância da 5ª Conferência de Saúde Mental, prevista para 2022.

Usuários da Política de Saúde Mental
“O Brasil ainda possui moradores em hospitais psiquiátricos, alguns cumprindo penas de mais de três décadas de privação de liberdade. A desinstitucionalização é a política mais fundamental. A vida tem pressa e o desfinanciamento da RAPS, da Rede de Atenção Psicossocial, é um crime contra essas pessoas encarceradas injustamente e sendo mantidas presas ilegalmente”, afirmou Laura Fusaro Camey, da Associação dos Usuários dos Serviços de Saúde Mental de Minas Gerais (RENILA), que é usuária de serviços substitutivos em Belo Horizonte.
Para Laura, o investimento em hospitais psiquiátricos e comunidades terapêuticas e suas inclusões na RAPS, por meio da portaria 3588/2017, esvazia a política de saúde mental e fomenta novos moradores nesses hospitais. “É importante dizer que tais instituições trancafiam as pessoas de que dizem cuidar”, que questionou a hipermedicação, a monotonia do cotidiano e a falta de poder de fala dos usuários nesses locais. “Não existe espaço para a fala, muito menos para contestação”.
“Eles não precisam dar provas de efetividade, nem resultados terapêuticos, pois nunca serviram à saúde. O sequestro do tempo, por si só, é um terrível instrumento de tortura. Já imaginou assistir o tempo passar por dias a fio, sem saber quando o pesadelo irá acabar? Ou saber que mesmo que você saia de lá, você chegará numa cidade que não oferece perspectiva alguma de inclusão e te mandará ao manicômio de novo na primeira oportunidade? O que é viver sabendo que sua caminhada chegou ao fim? Pois existe um muro intransponível”.
Fusaro reforçou que a rede substitutiva brasileira é reconhecida internacionalmente, e que foi usada como modelo em um documento publicado pela OMS no último dia 10 de junho, orientando os países a reestruturarem seus modelos de saúde mental para o serviço de base comunitária, com cuidado centrado nas pessoas e no respeito aos direitos humanos.
“A destruição dessa rede, mais que uma brutal e violenta retirada do direito à saúde, é fundamentalmente o sequestro de nossa dignidade, em nome de uma política de morte”.
“A liberdade é o pilar fundamental da cidadania da democracia. Sem ela nada podemos fazer, além de lutar incansavelmente para possuí-la. Por isso, substituir os manicômios é o mínimo. É a dívida que o Estado brasileiro tem com o seu povo. Infelizmente, o mínimo não está sendo cumprido”, finalizou.

Falta de dados e transparência
Para Lucio Costa, membro do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), o Brasil vive um cenário de retrocessos, não somente pelo mau funcionamento das políticas, mas pelo incentivo à violência, onde o argumento do cuidado vem sendo utilizado falsamente contra determinados grupos.
Costa ainda destacou a falta de transparência em relação aos dados por parte do Ministério da Saúde, e citou a descontinuidade do relatório “Saúde Mental em Dados”, publicado pela última vez em 2015.
“O Ministério da Saúde não produz um documento institucional com prestação de contas e com transparência para que a sociedade possa fazer o controle do rumo das políticas públicas do Brasil”, disse.
Costa reforçou que foram o relatório e a inspeção nacional realizados pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, em parceria com outras instituições, que apontaram a situação dos hospitais psiquiátricos no Brasil e que o Ministério da Saúde desconhece a situação desses hospitais no Brasil. “E, contraditoriamente, decide à revelia do diálogo aumentar o financiamento para essas instituições, inclusive para aquelas que já foram sugeridas para serem descredenciadas no SUS, porque não têm a mínima condição de funcionamento”.
Costa antecipou que em agosto será lançado estudo do Desinstitute, organização da sociedade civil que atua pela garantia de direitos humanos e pelo cuidado em liberdade no campo da saúde mental no Brasil e na América Latina, sobre os 20 anos da Política de Saúde Mental, que identifica cenário de desconstrução da política pública.

Ministério da Saúde
“Todos partimos da premissa de tentar proporcionar às pessoas com transtornos mentais o melhor cuidado possível”, afirmou Rafael Bernardon Ribeiro, Coordenador Geral da Saúde Mental do Ministério da Saúde.
“Os hospitais contribuem de forma importante na assistência, na alta complexidade, quem nega a existência da doença mental grave e nega a necessidade do atendimento hospitalar é porque nunca teve contato ou tem algum problema de desonestidade intelectual. Eu quero crer que as pessoas desconhecem o que é a doença mental grave, a doença mental refratária, a crise e como as famílias têm dificuldades de lidar com esse problema”, argumentou Bernardon.
O Coordenador Geral da Saúde Mental destacou que o Brasil fez um movimento de reformular sua política pública de assistência em saúde mental, a partir da década de 1970, que resultou em uma legislação moderna, que é a Lei 10.216/2001, que prevê o cuidado integral das necessidades das pessoas. “É nesse sentido que trabalhamos no Ministério da Saúde: proporcionar às pessoas uma rede plural que atenda toda a complexidade da saúde mental, desde o cuidado mais simples, até os casos mais complexos”.
Bernardo apontou que um dos problemas vivenciados seria o baixo número de vagas, incluindo as disponíveis em hospitais gerais. Segundo ele, as mudanças foram para melhor e procuram evitar o cenário de desassistência que levariam a três situações: hiperencarceramento de pessoas que, pela falta de atendimento, acabariam cometendo algum delito, aumento de pessoas em situação de rua e dos índices de mortalidade por transtornos mentais, como o suicídio.
“Fechamento de hospital psiquiátrico não significa desassistência, no Brasil significa garantia de direitos humanos. E isso não é para a militância antimanicomial, é para a Lei 10.216, para a Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, para a lei brasileira de inclusão da pessoa com deficiência. A segregação, a discriminação de uma pessoa em função do seu transtorno mental ou da sua deficiência psicossocial é proibida por lei”, afirmou Lúcio Costa, do MNPCT, fazendo contraponto ao comentário do Coordenador de Saúde Mental do Ministério da Saúde. Costa também reforçou que não existem dados que comprovem o cenário citado pelo representante do Ministério.

Teto de Gastos e luta contra retrocessos
Para o psiquiatra Pedro Gabriel Delgado, Doutor em Medicina Preventiva pela Universidade de São Paulo, o início do desmantelamento da política de saúde mental se deu em 2016, com o congelamento de gastos da Emenda Constitucional 95, e se acentuou com a portaria 3588 e a resolução 32 da CIT, que reinsere hospitais psiquiátricos na RAPS.
Pedro Gabriel também demonstrou preocupação com a internação de adolescentes em comunidades terapêuticas. "Não é possível que a política de drogas seja vista como uma política separada da saúde mental”.
“É uma sucessão de medidas de fragilização, de enfraquecimento da política de saúde mental, de sucateamento dos serviços, dos CAPS, de privilégio do financiamento de comunidades terapêuticas e hospitais psiquiátricos”, afirmou.
Sobre a situação de pessoas em situação de rua, o psiquiatra defendeu uma atuação efetiva do Estado. “As condições sociais adversas têm que fazer com que o Estado se responsabilize mais em ofertar serviços de saúde mental, de acolhimento e de atenção. A fragilidade dos laços sociais, da renda, da habitação, se tornam fatores de risco e agravamento das condições de saúde mental”.
“Eu vejo com uma imensa preocupação o sucateamento da rede de saúde mental, está em curso, sim, uma política de degradação dos serviços e, mais do que isso, de degradação do próprio trabalho dos trabalhadores de saúde mental”, disse, reforçando que dados apontam para um sofrimento intenso físico e psíquico vivenciado pelos trabalhadores da saúde, que seriam associados à falta de uma direção sanitária que aponte para a vida e não para a morte.
O psiquiatra destacou que existe atualmente uma migração de recursos e de estratégias do campo da saúde mental para uma política proibicionista de drogas no Ministério da Cidadania, e defendeu um fortalecimento da resistência das organizações contra retrocessos.

Reforma psiquiátrica no Brasil e participação social
Débora Duprat, ex-Procuradora Federal dos Direitos do Cidadão, recordou que foi ainda no período da ditadura que se organizou o movimento da reforma psiquiátrica, juntamente aos movimentos pela democracia, que defendiam a ideia de participação, de cidadania e de liberdade.
“A Lei 10.2016, de saúde mental, é muito forte na ideia de banir a existência de espaços asilares, espaços em que as pessoas ficam distantes do mundo e da vida e também contra a ideia da estigmatização de sujeitos, por isso que a ideia dos hospitais gerais é tão importante, porque acaba com isso de um espaço para determinadas categorias de sujeitos”.
Duprat destacou que essa característica está presente também na Convenção dos Direitos da Pessoa com Deficiência, incorporada ao direito brasileiro com status de norma constitucional, e na Emenda 108/2020, que trata da ordem social e exige que qualquer formulação de política pública tem que ter participação social.
A ex-procuradora destacou que o Brasil vivencia um momento de conflitos com dados e lembrou um episódio ocorrido em 2017, quando um ministro que defendia que havia no país uma epidemia de crack se negou a publicar uma pesquisa da FioCruz que demonstrava que o que havia crescido no Brasil era o aumento do consumo de opioides sintéticos, consumidos por pessoas com mais recursos financeiros.
“Quando desconhecemos dados, nós não temos políticas eficientes. E ficamos naquela ideia de que há sujeitos mais perigosos, que são aqueles que estão na rua, que fazem uso de determinadas drogas. Aqueles que incomodam devem ser contidos, devem ser invisibilizados”, afirmou, sobre a ausência de dados confiáveis que possibilitem o acompanhamento das políticas”.
Duprat concluiu elogiando ação proposta pela Defensoria Pública da União contra a internação de adolescentes em comunidades terapêuticas. “Uma pessoa que está com a sua personalidade em desenvolvimento precisa ter os encontros da vida, estar em liberdade, aprender na diversidade, ela ser colocada numa comunidade terapêutica é uma das coisas mais perversas”.

Cenário de ameaças a direitos conquistados
“Há uma ameaça ao cuidar em liberdade, ou ao cuidado. Cuidar com aprisionamento, com despersonalização, com o sujeitamento, não é cuidado, é controle, é controlar corpos para que seja mantida a sua invisibilização, o seu silenciamento e a sua apartação”, apontou a deputada Érika Kokay.
A parlamentar argumentou que a institucionalização elimina as subjetividades das pessoas, e que as vítimas desses processos buscam o resgate da própria identidade.
“Este país já provocou muitos suplícios, e são sempre os mesmos corpos que são vítimas desse suplício. Não tem mais por que retomar ou fortalecer com outro nome, através das comunidades terapêuticas, essa lógica de migração da saúde mental para a lógica proibicionista, ou seja, para a lógica da segurança, da apartação. Nós sofremos muitas ameaças no que este país já conquistou em vários aspectos, inclusive na concepção de Estado”, encerrou.

Fábia Pessoa/CDHM