Observatório Parlamentar verifica situação de cárceres e de combate à tortura no Brasil
A Comissão de Direitos Humanos e Minorias, no âmbito do Observatório Parlamentar da RPU, examinou nesta quarta-feira o cumprimento pelo Brasil das recomendações feitas com o objetivo de melhorar as condições dos cárceres e prevenir e combater a tortura no país.
Juan Pablo Vegas, do Subcomitê de Prevenção da Tortura das Nações Unidas, lamentou decreto emitido em 2019 que fragilizou a atuação do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura. Vegas demandou o envolvimento da Câmara dos Deputados para procurar formas de garantir o funcionamento do Mecanismo.
“A tortura é um problema sistêmico e estrutural do Brasil há muitos anos. E as ações tomadas até o presente momento em diferentes setores do Estado não são suficientes para fazer esse tipo de enfrentamento do problema central”, afirmou Vegas.
MMFDH e DEPEN
Eduardo Melo, Secretário Nacional de Proteção Global do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFDH), fez apresentação sobre a situação de combate à tortura e à violência institucional. Ele destacou que foram criados 22 comitês nos estados, com 14 em funcionamento, dois criados pela sociedade civil, e Roraima, Tocantins e São Paulo, que ainda não criaram. E que além disso, quatro estados já possuem mecanismos estaduais instalados.
Sobre o Pacto Federativo de Prevenção e Combate à Tortura, Eduardo informou que 10 estados aderiram à iniciativa. Informou também que sete dos 11 peritos estão nomeados do MNPCT.
“Nós lançamos curso em EAD de proteção de direitos humanos, prevenção e proibição da tortura. É um curso gratuito, online, voltado para os agentes de segurança pública. Já possuímos 8046 certificados. A ideia é ir operando e ampliando essa capacitação”, complementou Melo.
Cristiano Tavares Torquato, Coordenador-Geral de Cidadania e Alternativas Penais do Departamento, questionou os dados sobre superlotação carcerária no Brasil. Segundo ele, após a ADPF 347, o déficit de vagas vem caindo.
Torquato citou que ao todo são 811 mil pessoas presas no Brasil e afirmou que o DEPEN (Departamento Penitenciário Nacional) atua também em política de alternativas penais, para contribuir com a racionalização do sistema prisional, promovendo a responsabilização de pessoas que cometeram crimes de menor e médio potencial ofensivo.
Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura
Para José de Ribamar, perito do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, o decreto de 2019 interrompeu um ciclo virtuoso de atuação do mecanismo, enfraquecendo inclusive a criação dos comitês nos estados.
Segundo ele, já existem reflexos em função do desmonte do Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura: militarização e terceirização do sistema prisional e socioeducativo, incomunicabilidade, sanções coletivas, isolamento, além do agravamento da pandemia da COVID-19.
Ele lembrou ainda de decisão do STF, no âmbito da ADPF 347, que reconheceu que o sistema penitenciário brasileiro padece do “estado de coisas inconstitucional”. E citou Paulo Freire: “É fundamental diminuir a distância entre o que se diz e o que se faz, de tal forma que, num dado momento, a tua fala seja a tua prática”.
“Eu acho que nenhum país do tamanho do nosso trata as pessoas sob sua custódia como o Brasil”, lamentou Everaldo Bezerra Patriota, do Conselho Nacional de Direitos Humanos, lembrando que o Brasil é o terceiro país em população carcerária do mundo.
“As pessoas que cometeram uma infração devem responder por isso, mas nenhuma sentença condena a racionamento de água, a ficar 15, 16 [pessoas] em um espaço para quatro. É um estado de coisas que nos coloca muito mal no mundo, é como se a gente não fosse uma das dez maiores economias do mundo. É como se nós não vivêssemos o pacto de 88, a gente escolheu um Congresso constituinte, e o constituinte disse que a gente era uma República fundada na dignidade da pessoa humana. Isso não é uma opção de governo. É um princípio, um mandamento constitucional”.
“E pra esse estado de coisas mudar é preciso um pacto federativo nessa questão. É preciso enfrentar todo mundo e dizer que a partir de hoje, se as recomendações do Mecanismo não forem cumpridas, a gente não faz convênio, não repassa recurso, a lei não é para brincadeira”, defendeu.
Mateus Moro, Defensor Público do Estado de São Paulo, Coordenador do Núcleo Especializado de Situação Carcerária, lamentou o veto do governador de São Paulo à lei que criava o Comitê e o Mecanismo estaduais.
Audiências de Custódia
“Em São Paulo não existe audiência de custódia faz um ano e meio, nem presencial, nem remota. Somente na comarca de Guarulhos, de forma virtual. É importante dizer que o Conselho Nacional de Justiça e o Supremo Tribunal Federal endossaram essa barbaridade que é não ter audiência de custódia”, comentou Mateus Moro.
“O Ministério da Justiça não tem como prioridade o desencarceramento, muito pelo contrário, na verdade, o projeto de lei chamado Pacote Anticrime vai trazer um boom carcerário”, complementou.
"Mesmo com a instalação de escâneres corporais, é importante a gente dizer que as revistas vexatórias com desnudamento continuam, não só em São Paulo, mas em muitos lugares do Brasil”, afirmou o defensor, sobre prática de tortura que permanece sendo realizada.
Superlotação
“Uma das consequências [da superlotação] que nós enfrentamos aqui em Porto Alegre é que nós temos presos, homens e mulheres, custodiados dentro de viaturas policiais estacionadas em frente às delegacias. E isso acontece porque aquela cela que era pra ser temporária já está superlotada. A consequência direta é que por 15, 20 dias as pessoas permanecem em situação de absoluta tortura”, narrou Alessandra Quines Cruz, Defensora Pública do Rio Grande do Sul, da Associação Nacional das Defensoras e dos Defensores Públicos (ANADEP).
“Nós temos um sistema judiciário amplamente branco, de classe média, julgando uma população amplamente negra e pobre”, afirmou Alessandra, apontando que o sistema judiciário é o grande responsável pelo super encarceramento vivenciado no Brasil.
Desencarceramento
“O que a gente queria mesmo é que o sistema prisional brasileiro fosse abolido”, declarou Maria Teresa dos Santos, coordenadora da Agenda Nacional pelo Desencarceramento.
Maria Teresa lamentou ainda a manutenção da interrupção de visitas às penitenciárias e defendeu a retomada urgente das visitas. “A gente não pode deixar que os presos continuem expostos a todo tipo de tortura, como eles estão”.
“O Estado diz que gasta entre 2 e 3 mil por preso, gasta com que? A comida é imprópria para consumo, o preso não tem água disponível o dia inteiro, para ter acesso a material de higiene a família tem que levar. A gente não entende para onde vai esse dinheiro”, questionou.
“Alguma coisa precisa ser feita, as mães não aguentam mais receberem os corpos dos seus filhos, não aguentam mais relatos de tortura dentro das unidades prisionais”, disse, falando que quem retomou as visitas vem encontrando presos completamente debilitados, devido à ausência da complementação alimentar ofertada pelos familiares.
“O sistema prisional brasileiro está falido do jeito que está, pela incompetência dos tribunais de justiça, do Ministério Público – que são ótimos, excelentes em punir os pobres, os pretos, os periféricos, mas quando é pra fiscalizar e punir as pessoas que recebem salário do Estado para cuidar, para zelar daquelas pessoas, para que elas possam repensar seu erro e voltar para a sociedade, não o fazem”, apontou Maria Teresa.
Importância dos dados
Thandara Santos, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, questionou a transparência em relação aos dados do DEPEN nos últimos tempos. “Eles passaram a ser publicados em formato de painéis de dados fechados, sem metodologia clara e com apresentação e contagem que mudam a cada levantamento”, disse, apontando que a falta de dados dificulta o controle social.
Analisando as condições de encarceramento no Brasil, Thandara destacou que existe um déficit de 242 mil vagas no Brasil. “A gente vê dados sobre o quanto de dinheiro foi colocado na construção de unidades e vagas, mas a gente percebe por esse gasto que ele é insuficiente e vai ser sempre insuficiente, porque o ritmo de encarceramento é muito maior do que o cofre tem condições”.
A representante do Fórum ainda destacou que mais de 30% são presos provisórios, apenas 13% das pessoas encarceradas trabalham e 12% estudam. Thandara ressaltou ainda que a população encarcerada não tem o direito à assistência médica garantido e que mulheres e grupos vulneráveis não estão acessando direitos específicos garantidos por lei.
Relatório preliminar
Relatório preliminar produzido sobre as recomendações feitas ao Brasil para melhorar as condições dos cárceres e prevenir e combater a tortura identificou que 18 das recomendações feitas não foram cumpridas, entre elas a realizada pelo México, para assegurar que a legislação relativa à situação das prisões e da justiça penal esteja em conformidade com as normas internacionais de direitos humanos.
O documento reconheceu avanços em 13 recomendações, como na feita pelos Estados Unidos, para aprimorar os processos judiciais para minimizar a duração da detenção preventiva e acelerar os julgamentos, e considerar alternativas à detenção para enfrentar a superlotação. A Lei n° 13.964/2019 estabeleceu a necessidade de revisão da necessidade de prisão preventiva a cada 90 dias e impôs mais ônus argumentativos para sua decretação.
As audiências de custódia, sinalizadas como um importante avanço, estão suspensas desde o início da pandemia e ainda não foram retomadas, e a realização de forma remota tem sido bastante questionada por organizações da sociedade civil.
O relatório preliminar apontou ainda retrocessos em quatro recomendações, como a realizada pela Argélia, para dar continuidade aos esforços de combate à tortura e aos maus-tratos. Segundo o documento, o último relatório do próprio Mecanismo Nacional de Combate à Tortura informa que o governo causou embaraços à sua atuação no período, com a exoneração de todos os peritos e o plano de tornar suas funções uma atividade não remunerada. Além disso, o Plano Nacional de Política Criminal e Penitenciária (2020-2023) não prevê diretrizes e/ou ações contra a tortura e minimiza sua ocorrência no Brasil, posicionando-se contra audiências de custódia.
Fábia Pessoa/CDHM