Observatório Parlamentar da RPU examina recomendações voltadas ao combate à violência contra a mulher
O Observatório Parlamentar da RPU, sediado na Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM), examinou na última sexta-feira (9) a evolução das recomendações feitas ao Brasil no âmbito da Revisão Periódica Universal (RPU) para combater a violência contra a mulher no Brasil. Sediado na Comissão de Direitos Humanos e Minorias, o Observatório é uma parceria da Câmara com o Alto Comissariado para os Direitos Humanos da Nações Unidas e verifica a evolução dos direitos humanos no Brasil.
A audiência pública, presidida pela 2ª Vice-presidente da CDHM, deputada Érika Kokay (PT/DF), foi a nona realizada no âmbito do Observatório e se concentrou em 20 das 242 recomendações feitas ao Brasil no último ciclo da RPU, iniciado em 2017, com o objetivo de melhorar a situação dos direitos humanos no país.
Recomendações não cumpridas
O relatório preliminar de verificação das recomendações aponta que em apenas cinco houve avanços, e que as outras 15 ainda não foram cumpridas. Entre as recomendações sinalizadas como ainda não cumpridas estão a 109, da Espanha, de reforço da confiança no sistema judicial, medidas para prevenir a violência e promover serviços e redes para as mulheres nas zonas rurais, e a 193, da Áustria, de desenvolver abrigos para mulheres vítimas de abuso e assegurar que a estrutura legal seja amplamente implementada. O relatório aponta que ainda há alta concentração de serviços e redes para mulheres nos municípios das capitais, em detrimento dos municípios menores e que a confiança no sistema judicial e na efetividade da Lei Maria da Penha diminuiu nos últimos anos.
Também não foram identificados avanços nas recomendações 178, da Federação Russa, e 183, da Bélgica, que tratam de esforços para ampliação do programa “Mulher, Viver sem Violência”, com foco nas mulheres e meninas que residem em áreas rurais e de ascendência afro-brasileira, e 194, da Austrália, de aumentar o foco na implementação de políticas de combate à violência familiar, em especial a violência contra mulheres e crianças.
O relatório sinaliza que houve redução nos recursos propostos para financiamento das políticas de enfrentamento à violência contra a mulher por parte do Poder Executivo, que não foi criado nenhum tipo de recorte ou atenção particular às mulheres e meninas de ascendência afro-brasileira e que os recursos relativos à Casa da Mulher Brasileira não estão sendo pagos.
O relatório preliminar destaca também que o novo Plano Plurianual 2020-2023 excluiu o Programa 2016: Políticas para as Mulheres: Promoção da Igualdade e Enfrentamento à Violência, e criou o Programa 5034: Proteção à Vida, Fortalecimento da Família, Promoção e Defesa dos Direitos Humanos para Todos. O novo Programa 5034 engloba a execução de políticas do Ministério destinadas não só às mulheres, o que dificulta a transparência. Além disso, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos não usou os recursos aprovados pelo Congresso Nacional no combate à violência contra a mulher no período da pandemia.
De acordo com o documento, muito ainda precisa ser feito para superar o cenário de intensa violência vivenciado por mulheres no Brasil. Dados do Atlas da Violência mostram que, em 2018, 4.519 mulheres foram assassinadas no Brasil, uma pequena diminuição com relação a 2017, representando uma taxa de 4,3 homicídios para cada 100 mil mulheres.
Segundo o relatório, a taxa total de homicídios de mulheres apresentou uma queda de 9,3% entre 2017 e 2018, mas demonstrou que a situação melhorou apenas para as mulheres não negras. A análise dos dados do IPEA mostra que entre 2008 e 2018 houve uma queda de 11,7% nos homicídios de mulheres não negras. Entretanto, entre as mulheres negras, o número aumentou 12,4%. Em 2018, 68% das mulheres assassinadas no Brasil eram negras.
O Atlas da Violência mostra que entre 2013 e 2018, ao mesmo tempo em que a taxa de homicídio de mulheres fora de casa diminuiu 11,5%, as mortes dentro de casa aumentaram 8,3%, representando um indicativo do crescimento de feminicídios. O percentual de mulheres agredidas por ex-companheiros subiu de 13% para 37% entre 2011 e 2019.
Pesquisa Nacional sobre Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do Fórum Brasileiro de Segurança Pública aponta que, em São Paulo, o aumento dos feminicídios chegou a 46% na comparação de março de 2020 com março de 2019. No Acre, o crescimento foi de 67% no período, e no Rio Grande do Norte o número triplicou em março de 2020.
No caso da violência sexual, em 2015 ocorria no Brasil “um estupro a cada 11 minutos”. Em 2019, os dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública mostram que ocorreram “ao menos um estupro a cada oito minutos”. Foram registrados em 2019 em delegacias 66.123 boletins de ocorrência de estupro e estupro de vulnerável. Entretanto, pelas estimativas existentes, esse número pode ser até dez vezes maior, já que os crimes sexuais estão entre aqueles com as menores taxas de notificação à polícia.
Avanços identificados
Foram observados avanços na recomendação 182, de Bahamas, de fortalecer esforços para reduzir a desigualdade de gênero, prevenir mortes resultantes de violência doméstica e encorajar o aumento de denúncias em casos de estupro, com a sanção da Lei 13.718/2018 e o lançamento do Formulário Nacional de Avaliação de Risco e Proteção à Vida (FRIDA). O Conselho Nacional do Ministério Público, o Conselho Nacional de Justiça e o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos assinaram acordo de cooperação para implementar o formulário.
A Lei 13.718 tipifica os crimes de importunação sexual e de divulgação de cena de estupro, torna pública incondicionada a natureza da ação penal dos crimes contra a liberdade sexual e dos crimes sexuais contra vulnerável, estabelece causas de aumento de pena para esses crimes e define como causas de aumento de pena o estupro coletivo e o estupro corretivo.
Sobre as recomendações 191, da Eslováquia, de fortalecer mecanismos que promovam o julgamento dos perpetradores de crimes sexuais e baseados em gênero, e 192, do Togo, de tomar medidas para reduzir a incidência de casos de violência contra a mulher e levar os perpetradores à justiça, foi observado aumento em 2017 e 2018 no número de processos em andamento no Poder Judiciário de casos de feminicídio, violência contra mulher e adoção de medidas protetivas. Além disso, o CNJ tem adotado resoluções, estabelecido metas e orientado os tribunais em todo o país a atualizarem a análise de casos de violência contra a mulher.
O CNJ também aprovou em outubro de 2020 recomendação aos tribunais de Justiça para que promovam capacitação em direitos fundamentais com perspectiva de gênero a todos os magistrados e magistradas que atuam em juizados ou varas com competência para aplicar a Lei Maria da Penha, o que dialoga com a recomendação 189, da Tailândia, de fortalecer programas de capacitação para juízes e trabalhadores da área jurídica sobre direitos das mulheres e violência contra a mulher.
Com a criação do Formulário Nacional de Risco e Proteção à Vida (FRIDA), é prevista a capacitação para membros da Polícia Civil e Militar na aplicação da Lei Maria da Penha e Lei do Feminicídio, o que se relaciona com a recomendação 190, feita pelo Canadá, para fortalecer a capacidade policial em casos de violência contra a mulher por meio da expansão do treinamento e do desenvolvimento de protocolos para oferecer uma resposta efetiva a esses casos.
Representantes do Governo
Sobre a recomendação 183, da Bélgica, para ampliar o programa “Mulher, Viver sem Violência”, Cristiane Britto, Secretária Nacional de Políticas para as Mulheres, do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, afirmou que o programa foi aperfeiçoado e rebatizado como “Mulher segura e protegida”, e agora inclui quatro tipos de Casas da Mulher Brasileira, com custos diferenciados. Cristiane apontou que foram empenhados recursos para 23 novas unidades, que devem ser entregues até 2023.
“A Casa da Mulher Brasileira é um equipamento que muda a vida de muitas mulheres. O atendimento é humanizado e único, e internacionalmente é um modelo”, afirmou, destacando que em 2020 foram realizados 284 mil atendimentos nessas unidades.
Cristiane destacou a existência de plano de contingência com 20 iniciativas para o período de pandemia e apontou a campanha “Alô vizinho” para chamar a atenção da sociedade sobre o tema.
A Secretária afirmou que foi realizada articulação junto ao Colégio Nacional dos comandantes gerais das polícias militares e do corpo de bombeiros para criar uma câmara técnica de violência doméstica, que deve entregar até agosto diretrizes de atendimento à mulher em situação de violência. Além disso, informou que a Secretaria está em diálogo com o Conselho Nacional dos chefes de Polícia Civil e com o Ministério da Justiça para viabilizar a adoção de protocolo nacional de investigação e perícia nos crimes de feminicídio e investimento para implementação de núcleos em delegacias comuns para atendimento especializado às mulheres.
A Secretária afirmou que o governo trabalha em um Plano Nacional de Enfrentamento ao feminicídio focado na produção de dados, na prevenção e no combate à violência e destacou que houve um incremento no Ligue 180, que beneficiaria mulheres das áreas rurais. “Esse plano está em fase final, já para publicação, e contempla 55 iniciativas que têm como foco a prevenção, o combate, à articulação em rede, a geração de dados e a garantia de direitos”.
“O Governo não tem medido esforços para tornar o Brasil um país que respeita as mulheres. Todos os nossos projetos hoje têm esse viés de enfrentar, de reduzir o número de feminicídios. Estamos dialogando com o sistema de justiça, com os municípios, com os estados. A gente entende que só com a união dos esforços, vamos conseguir mudar esse cenário”, disse Britto.
Milton Nunes Toledo, Chefe da Assessoria Especial de Assuntos Internacionais, do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, divergiu da avaliação preliminar e destacou que devido à pandemia o prazo para implementação efetiva das recomendações foi prorrogado para julho de 2022. “Não é uma prorrogação para o Brasil, mas de toda a agenda do Conselho de Direitos Humanos da ONU'', disse, reforçando que as recomendações que ainda não foram cumpridas estão em fase de implementação.
Desafio global
“No mundo todo a gente constata que os esforços feitos até agora, para proteger e promover o direito de mulheres e meninas, ainda estão bem longe de serem suficientes. No ritmo atual, em um cenário agravado pela pandemia da Covid-19, estima-se que apesar dos esforços que vêm sendo feitos, em 2030, nenhuma menina ou mulher viverá em um país que tenha atingido todas as metas de igualdade gênero”, afirmou Gabriela Bastos, representante da ONU Mulheres Brasil. Ela reforçou que o país possui uma das legislações mais avançadas sobre enfrentamento à violência contra a mulher, incluindo a Lei Maria da Penha e a Lei do Feminicídio.
Gabriela argumentou que as ações devem se espelhar na força motriz da Agenda 2030, de não deixar ninguém para trás e incluir a interseccionalidade e a abordagem em direitos humanos.
“É necessário entender como o sexismo, o racismo, o capacitismo, a classe, a etnia, o território, a religião, o estado de imigrante ou refugiada, como esses conceitos se cruzam e se somam para criar situações de desvantagem e desigualdade para essas mulheres e meninas, que acabam tornando essas mulheres as mais vulneráveis à violência e menos capazes de acessar redes e espaços de proteção”.
Gabriela ponderou que é preciso refletir sobre quais direitos das mulheres são afetados pela violência fundada em gênero, que acontecem nos espaços privados, como o assédio, a violência sexual, a violência doméstica, mas que também está presente nos espacos públicos, na política, no trabalho, em suas comunidades, nos esportes, nas escolas, em ambientes acadêmicos, na internet.
“A ONU Mulheres no Brasil acredita que é preciso avançar nas estratégias de prevenir e combater a violência contra mulheres e meninas, e isso passa por avançar nas nossas compreensões do que é a violência baseada em gênero”.
Prevenção e assistência
Para Rita Lima, Vice-Presidenta da Associação Nacional das Defensoras e dos Defensores de Direitos Humanos (ANADEP), é necessário focar as políticas na prevenção e na assistência às vítimas de violência.
“É muito importante responsabilizar o agressor, e a criminalização de condutas que estavam num ponto cego da política é um passo relevante para o enfrentamento à violência contra a mulher, mas a prevenção e a assistência têm sido relegadas ao segundo plano ainda”.
“Se queremos, de fato, garantir que as mulheres do Brasil tenham livre desenvolvimento, que sejam donas do seu destino, é preciso ajustar o enfoque da política pública para o acolhimento da mulher em situação de violência”, declarou, reforçando que a lógica punitivista brasileira resulta em mais prisões que atingem os mesmos corpos negros e pobres. “É importante responsabilizar o agressor, mas isso está longe de ser suficiente”.
Desigualdade regionais
Mazé Morais, da Marcha das Margaridas, apontou que as mulheres rurais ficaram ainda mais expostas à violência neste momento de pandemia, devido à dificuldade de gerar renda. “A vulnerabilidade econômica quase sempre contribui para a vulnerabilidade dos nossos corpos, deixando-os mais expostos à violência física e também a outras formas de violência. A violência contra as mulheres do campo é um instrumento para manutenção e reprodução das relações desiguais entre os homens e mulheres, a violência patriarcal”.
“A questão do isolamento geográfico, a distância, a falta de acesso aos meios de comunicação, as informações precárias, a questão de falta de infraestrutura, de serviços públicos, a falta de equipamento público para lidar com a violência, tudo isso contribui para a invisibilidade da violência contra as mulheres trabalhadoras rurais”, disse Mazé, sobre as intensas dificuldades enfrentadas em razão das desigualdades regionais.
Para Juneia Batista, da Central Única dos Trabalhadores (CUT), as ações elencadas pelos representantes do governo não alcançaram a realidade vivida pelas mulheres no Brasil, e isso pode ser observado no grande aumento de notícias relacionadas a feminicídios e violência sexual. Ela destacou que a pandemia antecipou a chegada de um modelo híbrido de trabalho, com a presença de trabalho remoto que veio para ficar, e que essa nova relação abarca violações e precisa ser debatida. Defendeu também a ratificação pelo Brasil da Convenção 190 da OIT, sobre a eliminação da violência e assédio no mundo do trabalho.
Populações mais vulneráveis
Sobre a recomendação 196, do México, de assegurar a implementação efetiva de medidas de prevenção, punição e erradicação de todas as formas de violência e discriminação contra mulheres e pessoas LGBTI, a deputada Erika Kokay destacou a ausência de ações voltadas especificamente para o combate à violência vivenciada pela população LGBTQIA+. A parlamentar lembrou que relatório do Grupo Gay da Bahia, em 2018, registrou cerca de 420 casos de assassinatos contra LGBTs, e que em 2019, 124 pessoas trans foram assassinadas, sendo que em apenas 8% dos casos foi identificado o perpetrador do crime.
“O orçamento é um raio X das intenções, dos objetivos de qualquer governo. E também do próprio parlamento, quando o parlamento modifica ou trabalha numa proposta orçamentária. Dados do Portal da Transparência mostram que os investimentos para ações específicas no combate à LGBTfobia saíram de pouco mais de três milhões em 2008 e foram para 519 milhões em 2016, e em 2017 praticamente não existe”.
“Para que possamos ter políticas públicas, nós temos que introduzir essas políticas públicas no orçamento”, reforçou Kokay.
A parlamentar também pontuou que é necessário discutir a violência de segunda ordem em espaços públicos, como o assédio sexual e moral no ambiente do trabalho, que extrapolam a vítima e passam a atingir as testemunhas, que seriam também silenciadas nessas situações.
Fábia Pessoa/CDHM