Sem Omissão (Dep.Iriny lopes)

07/04/2005 00h00

                                                                   SEM OMISSÃO

(Artigo da Deputada Iriny Lopes, Presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias

da Câmara dos Deputados, publicado no Jornal O GLOBO, em 07 de abril de 2005)

 

Se a pesquisa que mostrou uma proporção de negros nas universidades federais correspondente à existente na sociedade acrescenta dado novo, mais reveladora é a sofreguidão com que certos críticos das políticas afirmativas vêm brandindo tais resultados. A tônica tem sido apresentar essa pesquisa como prova de que as cotas dos negros já estão preenchidas nas universidades.

Para que o debate seja estabelecido em bases democráticas, inclusive assegurando-se espaço na mídia (quase inexistente) à defesa das cotas, cabe questionar primeiramente a metodologia e a utilização da pesquisa. A série mais completa de investigações demográficas do país — as Pesquisas Nacionais de Amostragem por Domicílio — realizadas pelo IBGE, indica que um percentual expressivo de pessoas resistem a se apresentar como negras. Já o ambiente universitário predispõe as pessoas, muito mais do que na sociedade em geral, para que possam se declarar negras, pardas ou pobres. Portanto, os contrários a essa política de ação afirmativa não estariam comparando números de categorias distintas como se fossem iguais?

Questionar os fundamentos de uma pesquisa isolada, cujos resultados diferem de tudo o que foi demonstrado até agora, parece-me uma atitude mais científica do que propalar esses resultados como prova acabada de que as cotas não devam ser implementadas. É possível divisar mais interesses que propriamente ciência a motivar tal ofensiva. E esses interesses dispõem de amplo acesso à mídia, capaz de repetir à exaustão suas teses, como se fossem verdades inquestionáveis.

O sentido das políticas afirmativas é o do resgate histórico. Trata-se de promover a inclusão social de forma diferenciada, como diferenciadas foram as condições de ascensão social ao longo da história. Significa conceder incentivos maiores aos que a eles tiveram muito menos acesso. O Brasil, último país das Américas a abolir a escravidão, deve muito ao povo negro por tudo o que ele construiu no país. É justo, então, melhorar o padrão de acesso à educação universitária dessa parte da população, de modo a permitir que os índices sociais dos negros se aproximem mais rapidamente dos atingidos pelos brancos.

Não há inovações nem motivos para estranhamento em face das políticas afirmativas. O que são as habituais concessões do Estado de isenções fiscais, subsídios e mesmo o perdão de dívidas para setores da economia, senão políticas afirmativas? A diferença aqui é o público-alvo: jovens negros, pardos e pobres. Mas instrumento dessa natureza sempre integrou o elenco de medidas disponíveis ao Estado para reforçar esse ou aquele segmento por entender que os resultados beneficiarão o país como um todo.

Na ofensiva contra as cotas, há algumas táticas em que a crueldade se junta à inverdade. Estigmatizam como desprovido de mérito acadêmico o estudante que ingressar por meio de cota. Ora, o estudante negro, pardo ou egresso de escola pública não está desobrigado de submeter-se aos processos de seleção acadêmicos, embora com um fator diferenciador. Outra tática é insinuar que as cotas deflagrarão uma animosidade inter-racial. Tal afirmação não se sustenta em fatos. Mais parece, portanto, uma instigação que uma realidade.

Melhorar a qualidade do ensino fundamental e médio é a alternativa apresentada pelos críticos, e estamos todos de acordo. Afinal, quem não deseja um ensino público de qualidade para todos? Mas isso será realidade na medida dos recursos que a sociedade estiver disposta a alocar na educação, em meio a demandas tanto por investimentos sociais quanto por redução de tributos. Enquanto essa condição ideal não chega, o dilema aqui continua, e dele não vamos fugir: há uma dívida social histórica, a ser resgatada, com nossos compatriotas negros.

As cotas são um caminho apenas transitório na direção da igualdade racial. Mas um caminho percorrido há décadas com avanços satisfatórios, por exemplo, para os negros nos EUA e para os dalits (povo mais inferiorizado no sistema de castas) na Índia. Se as cotas não constituem uma boa política afirmativa, que se apresentem outras melhores. A omissão é que não tem mais espaço.

IRINY LOPES é deputada federal (PT-ES) e presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara.
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