Não é fake news: parlamentares e sociedade civil criticam “revogaço” de portarias da política de saúde mental do Ministério da Saúde

Em debate ocorrido nesta quarta-feira (9), com parlamentares e sociedade civil, entidades solicitam que alterações na área sejam precedidas de escuta das entidades de profissionais e outras instituições.
09/12/2020 17h10

Foto : CDHM

Não é fake news: parlamentares e sociedade civil criticam “revogaço” de portarias da política de saúde mental do Ministério da Saúde

A Frente Parlamentar Mista em Defesa da Reforma Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial a Presidência Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados (CDHM) promoveram, nesta quarta-feira (9), reunião para debater os retrocessos na política de saúde mental.


No último dia 4, durante uma apresentação para o Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass), o Ministério da Saúde mostrou uma planilha com propostas que devem revogar várias portarias, editadas entre 1991 a 2014, que estabelecem a política pública de saúde mental. Veículos da imprensa, como a revista Época e o jornal Folha de São Paulo, tiveram acesso a esse material.


Entre as mudanças sugeridas pelo governo federal, estão o fim do programa De Volta para Casa, das equipes de Consultório na Rua e o Serviço Residencial Terapêutico. Todos esses programas fazem parte do programa anual de reestruturação da assistência psiquiátrica hospitalar no SUS.


Além disso, os Centros de Atenção Psicossocial (Caps) fariam apenas reabilitação, não mais o atendimento psiquiátrico. O governo também estaria propondo a extinção dos Caps voltados aos usuários de álcool e drogas.


“A liberdade é terapêutica”


Erika Kokay (PT/DF), presidente da Frente Parlamentar, denuncia que “o governo açoita a Constituição, usurpa o papel do Congresso e desconstrói a legislação brasileira, além de trazer de volta o holocausto dos hospícios e manicômios. O Ministério da Saúde agora financia choques elétricos e leitos psiquiátricos, hospício cronifica a doença e priva o paciente do convívio com as pessoas. A liberdade é terapêutica”.


Kokay informa que já foi solicitada uma reunião com o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM/RJ), além de um levantamento das condições jurídicas para uma ação popular na Justiça contestando o “revogaço”.


A assessora do Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para Direitos (ACNUDH), Angela Terto, destaca um estudo recente da Organização Mundial da Saúde (OMS) que mostra que a pandemia de COVID-19 interrompeu serviços essenciais de saúde mental em 93% dos países em várias regiões do mundo. A pesquisa foi feita em 130 países e aponta grande impacto da pandemia no acesso aos serviços de saúde mental, além da necessidade de mais financiamento. “Na Câmara temos o Observatório Parlamentar que vai acompanhar as recomendações da Revisão Periódica Universal, e entre elas estão os esforços para saúde inclusiva feitos pelo governo, como saúde mental em vários âmbitos”.


Lúcio Costa, do Mecanismo Nacional de Combate à Tortura pede que “a temática da saúde mental seja prioridade no Alto Comissariado, porque hoje estamos falando de instituições que violam direitos humanos. Inspecionamos 40 hospitais psiquiátricos e nosso parecer foi pelo fechamento de todos. Cárcere privado, estupro, tratamento cruel e degradante mantidos pelo dinheiro público”.


Retrocesso e interesses financeiros


“A revogação dos decretos e portarias é um grande atentado às políticas públicas e, infelizmente, não é uma surpresa. Esse desmonte começou em 2017 com medidas contra a lei e tratados internacionais, uma forte aposta contra políticas públicas com grande apoio aos equipamentos de internação. E isso viola o SUS também”, afirma Leonardo Pinho, presidente da Associação Brasileira de Saúde Mental (ABRASME).


Priscilla Viegas, da Associação Brasileira dos Terapeutas Ocupacionais lembra que “esse desmonte vem sendo sistematizado e não é de agora, isso rompe o sistema democrático de construção dos serviços públicos de saúde mental, desconsiderando recomendações de conselhos de trabalhadores da área”.


Para Paulo Teixeira (PT/SP), o poder financeiro estaria por trás das possíveis mudanças. “No nosso país há um modelo de saúde mental que é fruto de uma reforma psiquiátrica que precisa avançar. Porém, me parece que os interesses econômicos dos hospitais psiquiátricos é que estão travando esse avanço, é disso que se trata”.


“É mais um brutal ataque à saúde pública. Não temos ministro da Saúde, não temos Presidente. Sabemos que há um desmonte a caminho, é tudo um imenso negacionismo. A luta antimanicomial acontece há 30 anos. Tem muito negócio, interesse financeiro, por trás de tudo isso”, diz Ivan Valente (PSOL/SP).


Para Fernanda Magano, da Federação Nacional dos Psicólogos (FENAPSI) é “uma ação reacionária, pautada pelo atraso e pelo fascismo, movida por interesses financeiros, desrespeitando categorias profissionais e destruindo políticas construídas ao longo de décadas. Esse debate tem que continuar”.


Fake News


“Até o momento nada foi revogado, até agora são estudos. Hoje mesmo foram liberados 100 milhões de reais para os Centros de Atenção Psicossocial. Ou seja, não queremos acabar com os Caps e até novembro habilitamos 83 novos Centros. Quando há troca de governo, sempre há mudanças, é democrático. Hoje o manicômio é na rua, nos presídios. Faltam leitos para internação. Quanto à apresentação do dia 4, está disponível, é só pedir”, adianta Raphael Parente, responsável pela Secretaria de Atenção Primária à Saúde do Ministério da Saúde.


O representante do ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, informa ainda que não há previsão para discutir o tema nas próximas reuniões das Comissões Intergestores Bipartite e Tripartite.


Parente afirma que “revogação e desmonte são fake News. Estamos discutindo aqui fake News. Quanto tempo mais, essa semana, pessoas que tem um papel importante na sociedade, vão passar discutindo coisas falsas?”.


Em seguida, Maira Pinheiro, também do Ministério da Saúde, reitera que “o que está sendo discutido é absolutamente mentira”. Porém, de forma contraditória afirma que “queremos revogar portarias obsoletas, queremos acabar com o estigma do doente mental. São pessoas que merecem respeito”.


O presidente da CDHM, Helder Salomão questiona. “Se é fake News, foi uma irresponsabilidade do Ministério não ter desmentido imediatamente de forma oficial esse revogaço. É uma constante desse governo mudar de posição quando surge a pressão popular”.


É vergonhoso questionar a importância dessa reunião, é um desrespeito dos integrantes do governo federal dizer que estamos perdendo tempo discutindo fake News. Quando é para inaugurar exposição de roupas usadas, não é perda de tempo. É um desmonte, sim. Um retrocesso” apota Talíria Petrone (PSOL/RJ).


“Estamos indignados com as palavras do governo federal, desqualifica as entidades que lutam por uma saúde pública democrática e com controle social respeitado”, protesta Régia Prado, do Conselho Federal de Serviço Social (CFESS).


Ana Carolina Khouri, da Associação Nacional de Defensoras e Defensores Públicos (Anadep), pondera que “estamos extremamente preocupados com essa possibilidade de retrocesso no atendimento da rede psicossocial. A Corte Interamericana de Direitos Humanos já impôs em 2006, ao Brasil, uma condenação por violência dentro de instituições psiquiátricas”.


Notas públicas


Em nota pública divulgada na última segunda-feira (7), a Associação Brasileira de Saúde Mental (ABRASME) pede, entre outros pontos, que os conselhos profissionais e entidades representativas das profissões do SUS, que trabalham com saúde mental e drogas, sejam consultados e que qualquer mudança no setor seja debatida na Comissão Intersetorial de Saúde Mental (CISM) do Conselho Nacional de Saúde.


Também em nota, a Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial (Renila) e mais 16 instituições de todo o país, destaca que “sem nenhuma discussão com a sociedade civil organizada, o Ministério da Saúde institui o que chama de “Nova” Política de Saúde Mental, trazendo na sua essência a velha lógica do asilamento e do reforço ao sistema privado”. A Rede informa também que a Associação Brasileira de Psiquiatria apoia a iniciativa do governo federal.


Vai-e-vem


No dia 18 de maio, Dia Nacional da Luta Antimanicomial, o Ministério da Saúde extinguiu, através da Portaria 1.325, o Serviço de Avaliação e Acompanhamento de Medidas Terapêuticas Aplicáveis à Pessoa com Transtorno Mental em Conflito com a Lei (EAP), no âmbito da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional.


Após mobilização da sociedade civil e de instituições da Justiça, a portaria foi revogada duas semanas depois.

 

Encaminhamentos


Entre as sugestões encaminhadas pela sociedade civil, estão a garantia de que o Ministério da Saúde consulte os conselhos profissionais e entidades nacionais representativas das profissões do SUS; que mudanças nas políticas públicas de saúde mental e drogas sejam debatidas na Comissão Intersetorial de Saúde Mental do Conselho Nacional de Saúde e que o Ministério retome a publicação do Saúde Mental em Dados. Raphael Parente se comprometeu a levar as matérias ao Ministro Eduardo Pazuello e retornar até a próxima sexta-feira (11).


Alterações serão sejam debatidas em audiências públicas convocadas pelo Congresso Nacional e o ACNUDH deve criar estratégias para que o tema se torne prioritário.
Cerca de 60 pessoal acompanharam o debate, além de Glauber Braga (PSOL/RJ), Vivi Reis (PSOL/PA), Áurea Carolina (PSOL/MG), Deives Perez (Associação Brasileira de Psicologia Social), Sâmia Bonfim (PSOL/SP), Simone Paulon (Associação Brasileira de Saúde Coletiva), Isabela Saraiva (Conselho Federal de Psicologia), Carolina Furtado (Procuradora da República / PE) Renan Sotto Mayor (presidente do Conselho Nacional de Direitos Humanos), Marisa Helena Alves (Conselho Nacional de Saúde e Marta Elizabeth (Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial).


A reunião foi transmitida pelo Facebook de Helder Salomão e teve 6.100 visualizações.


Vida que segue


André Ferreira, é do Movimento Nacional de Luta Antimanicomial, onde representa também os familiares de usuários. “As pessoas continuam com suas demandas como terapia, remédios e as famílias lidando com tentativas de suicídio. Temos que pensar com seriedade no que está sendo discutido. Enquanto estamos aqui, tem mãe com o braço quebrado pelo filho durante um surto. Internação e medicação deveriam ser exceção e não regra, é uma terapia alienante. Para onde vão essas pessoas se todas as portarias forem revogadas?”

 

Pedro Calvi / CDHM