Evolução dos direitos da população LGBTQIA + é examinada em audiência pública

Representantes da sociedade civil relataram que os poucos avanços não são percebidos na vida das pessoas e defenderam a necessidade de formação e sensibilização de agentes do Estado, a criação de mecanismos para combater a impunidade e a subnotificação de abusos, além da importância de uma educação para a diversidade
21/06/2021 17h09

Captura e montagem: Fernando Bola/CDHM

Evolução dos direitos da população LGBTQIA + é examinada em audiência pública

O Observatório Parlamentar da RPU, sediado na Comissão de Direitos Humanos e Minorias, examinou na última sexta-feira (18) a evolução dos direitos das pessoas LGBTQIA + com base nas recomendações feitas ao Brasil no âmbito da Revisão Periódica Universal.

A audiência foi a sétima realizada pelo Observatório Parlamentar, uma parceria da Câmara dos Deputados e o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, e contou com a participação do governo, de representantes de organizações da sociedade civil, de especialista em orientação sexual e identidade de gênero da Organização das Nações Unidas e dos parlamentares Rosa Neide (PT/MT), Padre João (PT/MG), Helder Salomão (PT/ES) e Erika Kokay (PT/DF).

Os participantes defenderam a necessidade de formação e sensibilização de agentes do Estado, especialmente os da segurança pública, para a atuação com a população LGBTQIA+, a criação de mecanismos para combater a impunidade e a subnotificação de abusos, a importância de dados confiáveis para a formulação de políticas públicas efetivas e o papel fundamental da inclusão no currículo escolar de temas ligados à educação sexual inclusiva e à tolerância à diversidade.

 

Potencial da população LGBTQIA +

Victor Madrigal-Borloz, especialista independente da ONU em orientação sexual e identidade de gênero, destacou a importância do trabalho da sociedade civil para conquistas como o reconhecimento da identidade de gênero por autodeterminação e para a criminalização da LGBTfobia pelo Supremo Tribunal Federal. “Apesar dessa recente conquista, é preciso reconhecer as alarmantes estatísticas de crimes de ódio perpetrados no Brasil, motivados pela orientação sexual ou identidade de gênero das vítimas. Os dados mostram que a violência e a discriminação contra LGBTs continua afetando a vida dessa população, especialmente os mais vulneráveis”, afirmou, relembrando que o Brasil lidera o ranking mundial de assassinatos de pessoas trans e que em 2018, 82% das vítimas eram negras.

“Concepções errôneas e preconceituosas continuam a ser disseminadas em manifestações de autoridades públicas, alimentando um ciclo vicioso de ódio contra as pessoas LGBTs, e isso afeta sua inclusão social e dificulta seu acesso à saúde, educação, moradia, emprego, participação política e segurança pessoal”, disse.

O especialista defendeu que é preciso ir além da proibição legal e adotar iniciativas que busquem de forma ativa reeducar e conscientizar a população, e que o Estado brasileiro tem a responsabilidade de sensibilizar e treinar os agentes públicos e prestadores de serviço para que respeitem a diversidade sexual e de identidade de gênero. “Agentes de saúde, professores, juízes, autoridades policiais são figuras que participam das principais interações sociais e que podem romper o ciclo de exclusão e garantir acesso a direitos fundamentais que são negados às pessoas LGBTs”.

“As pessoas LGBTs precisam recobrar a confiança em um sistema que as oprimiu e tentou apagar sua identidade. A impunidade sistemática cria um ambiente favorável à continuidade e ao aumento dos crimes de ódio, já que os infratores não são punidos e reeducados e os potenciais infratores não são dissuadidos de transgredir a lei, mas talvez até estimulados”, complementou, reforçando que a impunidade limita o enfrentamento à violência e aumenta o índice de subnotificação dos abusos.

Para o especialista, essa ausência de dados específicos sobre pessoas LGBTs prejudica a criação de políticas públicas efetivas para combater a LGBTfobia. “A falta de dados sobre as pessoas LGBTs torna a comunidade invisível para os formuladores de políticas públicas”.

“A população LGBT não é uniforme, diferentes grupos têm diferentes necessidades”, argumentou. Para o especialista, dados específicos de raça, etnia, idade, religião e classe social podem contribuir com políticas públicas específicas que alcancem a diversidade da população LGBT.

Madrigal-Borloz apontou a importância do trabalho realizado por organizações da sociedade civil, que, apesar das dificuldades e dos riscos, trabalham para garantir direitos para a população LGBT e preencher as lacunas de informações devido à inércia do Estado.

Defendeu ainda que é preciso transformar a educação brasileira, para formar cidadãos bem informados, conscientes e tolerantes. “A invisibilidade, ou as representações negativas dessa diversidade no âmbito escolar e nos materiais didáticos, abrem espaço para a discriminação e a violência, criam um ambiente que permite a exclusão e o bullying, gerando isolamento e baixa autoestima nos estudantes LGBT, levando ao rendimento insatisfatório ou à evasão escolar, dando início ao ciclo de marginalização que as deixará em desvantagem na vida adulta”.

“Ao redor do mundo, as sociedades que abraçam a diversidade têm muito mais a ganhar, as pessoas LGBT são parte essencial do tecido social. Negar oportunidades às pessoas LGBT e marginalizá-las é deixar de ganhar uma enorme contribuição da força criativa e produtiva de um país. A função primordial de uma nação deve ser proteger e proporcionar o bem-estar e a realização completa dos potenciais de todos os cidadãos”, finalizou. 

 

Poucos avanços

Sergio Gardenghi Suiama, Coordenador do Grupo de Trabalho "LGBTI: Proteção de Direitos", da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, afirmou que o Brasil enfrenta um momento de retrocesso no que se refere ao reconhecimento e à reafirmação de direitos da população LGBTQIA+. Suiama reforçou que desde a Constituição de 1988 o Parlamento brasileiro não aprovou nenhuma lei que tenha como objetivo proteger essa população e que o Executivo vem se omitindo na formulação de políticas públicas e retrocedendo em áreas como a da saúde.

“Desde 1988, infelizmente o único braço do Estado brasileiro que atua, ainda que de forma tímida, em defesa da população LGBTQIA+ é o Judiciário”, citando o reconhecimento da união estável, do respeito à identidade de gênero e a criminalização da homotransfobia.

“A nossa bandeira atual é o reconhecimento da inclusão nos sistemas de segurança pública de um campo específico para a identificação da homotransfobia, já que uma das questões mais graves, mais difíceis que têm que ser enfrentadas é justamente a falta de dados e a falta de informações confiáveis a esse respeito”, declarou Suiama sobre os atuais esforços da Procuradoria.

“Temos que agradecer às organizações não-governamentais, especialmente à Antra e ao Grupo Gay da Bahia, que buscam, com as suas limitações, levantar esses dados e essas informações”, completou.

 

Ausência de informações sobre a população LGBTQIA+

Ana Lúcia Oliveira, Coordenadora do Grupo de Trabalho "Identidade de Gênero e Cidadania LGBTI", da Defensoria Pública da União, destacou que a DPU expediu recomendação ao IBGE para inclusão nos questionários do Censo de 2020 de perguntas sobre identidade de gênero e orientação sexual, bem como a coleta de dados para melhor compreensão da população LGBTQIA+ que abordem quantitativo populacional, escolaridade média, faixa salarial, situação familiar e estimativa de vida.

Oliveira destacou a ausência de dados em diferentes esferas, como os relacionados à população carcerária LGBTQIA+; ao Cadastro Único para a seleção de beneficiários de programas sociais do Governo Federal; aos dados de segurança pública, que deveriam abranger também crimes relacionados à violência doméstica familiar, como a lesão corporal, feminicídio, bem como informações sobre estupro coletivo e corretivo, além da falta de informações sobre a violência política de gênero. 

Douglas Admiral Louzada, Defensor Público do Espírito Santo e Coordenador da Comissão de Diversidade Sexual e Identidade de Gênero da Associação Nacional de Defensoras e de Defensores Públicos (ANADEP), falou sobre resistência da população LGBTQIA+ em procurar as forças de segurança para registrar boletins de ocorrência por temer represálias. "Apesar da decisão que considerou crime a LGBTfobia, nós ainda temos grandes gargalos a enfrentar, que passam pela formação das forças de segurança, pela criação de dados e estatísticas e pela humanização do atendimento”.

 

Desigualdades territoriais

Darlah Farias, do Coletivo Sapato Preto, destacou que a falta de dados e informações é ainda mais acentuada em regiões como a Amazônia, tanto em segurança, quanto em saúde. Para ela, a população LGBTQIA+ não acessa os avanços jurídicos não somente por falta de diálogo, ou de informações, mas principalmente porque a estrutura do sistema judiciário demonstra que essa população não é bem-vinda.

Darlah Faria apontou a dificuldade que a população LGBTQIA+ encontra para ter acesso aos serviços de saúde, apesar de já existir cartilha nacional com orientação de atendimento, principalmente nos interiores.

“A gente tá falando de uma realidade de uma população que tem medo de se mostrar. A gente tem medo de aparecer, porque a partir do momento em que a gente aparece, a partir do momento em que a gente fala, se torna alvo”, afirmou, ressaltando a necessidade de dados qualitativos principalmente nas áreas de saúde e segurança pública.

Dandara Rudsan, do Coletivo Amazônico LesbiTrans, argumentou que a legislação precisa de ferramentas diferentes para ser operacionalizada em diferentes regiões do país.

“O meu apelo é para que quando nós façamos essas reflexões acerca da população LGBT, a gente reflita também sobre a população LGBT que está no rio, na floresta, que está na agricultura familiar, alimentando esse país. Esses corpos LGBT existem. Quando falamos de implementação contra a LGBTfobia, quando falamos das decisões do STF, existe uma distância muito grande entre a decisão e o seu cumprimento”.

“As necessidades de um LGBT que está aqui na Amazônia são diferentes das necessidades de um LGBT que está no Sudeste ou no Sul, ou em qualquer outro lugar desse país”, completou Dandara, que defendeu que o processo formativo da segurança pública em relação aos crimes de LGBTfobia tenha  participação das organizações da sociedade civil.

  

Preconceito e discriminação em equipamentos públicos

Para Léo Ribas, da Liga Brasileira de Lésbicas (LBL), a ausência de dados é reflexo da atuação do Estado na vida das pessoas LGBT pelo país. Ribas reforçou que o movimento de mulheres lésbicas no Brasil vem relatando de forma recorrente a ocorrência de estupros corretivos. “A partir do momento que os equipamentos públicos não conseguem detectar e encontrar meios de acabar com essa violência, as mulheres lésbicas têm sofrido muito no acesso à justiça”.

“Nosso problema começa quando chegamos à delegacia e não somos acolhidas, respeitadas, e não temos nossa identidade de gênero e orientação respeitadas. A partir do momento que você chega em uma Delegacia da Mulher e não é reconhecida como um sujeito de direitos, você não tem acesso a essa legislação do STF”, disse.

“A educação seria uma das maiores ferramentas para o final dessas fobias, no entanto, nós temos uma educação que retira os corpos trans, que retira os corpos lésbicos, que não performam feminilidade, de dentro de suas escolas. Enquanto a gente não conseguir trabalhar com essa temática dentro desses espaços, nós não teremos total segurança e nem total visibilidade”.

 

Diversidade na educação

Marcel Jeronymo, da Aliança Nacional LGBTI+, relembrou pesquisa nacional, realizada pela ABGLT, com mais de mil estudantes adolescentes brasileiros, que se identificam como LGBTI, e mais de 73% afirmaram que foram agredidos verbalmente em ambiente escolar, 35% agredidos fisicamente e 60% disseram que se se sentem inseguros no ambiente escolar.

“É importante que a escola seja um espaço plural, de acolhimento das pautas LGBTIs. É só assim que efetivamente vamos poder ter uma sociedade mais livre, justa, igualitária, garantidora dos direitos da população LGBTQIA+, é com a educação que vamos extirpar do nosso cenário o preconceito, a desinformação e a incapacidade de reconhecer a diversidade”, disse, reforçando ainda a importância de políticas públicas para a empregabilidade e de políticas de participação social da população LGBTQIA+ em conselhos e conferências.

 

 

Efetividade dos avanços

Pedro Barbabela, representante de TODXS, questionou a efetividade dos avanços. Barbanela ponderou que das 11 recomendações relacionadas aos direitos da população LGBTQIA+, nenhuma foi cumprida integralmente.

“A população LGBT continua invisibilizada perante o Estado brasileiro, que a passos lentos justifica sua inação com discursos moralizantes. É o que vem acontecendo em nossas Casas Legislativas e em ações do Executivo”, argumentou.

“A normativa existe, mas não é posta em prática, fazendo com que diversas pessoas sejam vítimas de violência por serem quem são. O caminho ainda é enorme até conseguirmos viver em um Estado que reconheça e garanta condições e direitos para a população LGBTI no Brasil”, afirmou Pedro.

 

Acesso a direitos já conquistados

Symmy Larrat, da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT), reforçou que o conservadorismo no Legislativo não permitiu o avanço de legislações que garantam direitos à população LGBT e que os avanços conquistados não foram percebidos na realidade das pessoas.

“A população LGBTQIA+ não está acessando seus direitos como deveria, e não só pelas diferenças territoriais, mas porque existe uma perseguição às pautas de gênero. Existe uma ausência de iniciativas que promovam o acesso da população aos direitos já conquistados”.

Symmy destacou que o governo não fez nenhuma ação para implementar a decisão do STF, e que não existe orientação do Ministério da Segurança Pública nesse sentido, e nem mesmo diálogo do Ministério da Família com esse Ministério para que isso ocorra.

A representante da ABGLT também destacou que o Partido dos Trabalhadores entrou com uma ação de arguição de descumprimento de preceito fundamental no STF questionando o Ministério da Saúde sobre o atendimento à saúde de pessoas transexuais e travestis. Segundo Symmy, estaria ocorrendo um processo de generificação e pessoas retificadas estariam encontrando entraves para acessar serviços no SUS. “Eu, retificada como sexo feminino, não vou poder fazer o exame de próstata no SUS. Homens trans não vão poder parir se forem retificados. Não vão poder fazer o pré-natal. E o Ministério da Saúde tem se negado a mudar essa realidade no sistema e tem feito com que pessoas trans do Brasil não acessem o serviço básico de saúde”, afirmou, antecipando que a organização vai lançar, em parceria com outras redes, relatório sobre perseguição aos defensores e defensoras dos direitos humanos no Brasil.

 

Pessoas Intersexo

Thais Emilia dos Santos, presidente da Associação Brasileira de Intersexos (ABRAI), mãe de pessoa intersexo e doutora em Educação, abordou as dificuldades enfrentadas por pessoas intersexo e suas famílias.

“A pessoa intersexo sofre uma série de violaçoes de direitos humanos. Quando um bebê intersexo nasce e não tem direito a receber uma certidão de nascimento, se viola princípios da dignidade humana, todo ser humano tem direito a ter um nome, uma identidade. E no Brasil isso não acontece, mesmo a gente tendo uma normativa, a 12.662/2012. Além de deixar essa criança sem certidão de nascimento, sem RG, sem cartão do SUS, a mãe também fica sem auxílio maternidade, porque não consegue comprovar no INSS que essa criança nasceu. Isso aconteceu comigo em 2016”, relatou.

Thais Emília reforçou que muitos médicos ainda usam o desconhecimento da lei para estimular as cirurgias precoces nos bebês de adequação de sexo para educar essas crianças em determinado gênero. “Essas violências físicas, psíquicas, acontecem aqui no Brasil três vezes por semana em hospitais municipais aqui em São Paulo e cinco vezes por mês em hospitais universitários”, destacou, reforçando que ainda existe subnotificação em relação aos casos, já que o esperado é um nascimento de bebê intersexo para cada 100 nascimentos.

Ela argumentou que a cirurgia precoce e essa retificação forçada desrespeitam os direitos das crianças, podem gerar questões sobre identidade de gênero, problemas na puberdade e ainda comprometer um atendimento em saúde, pois a pessoa por ter testículos, útero e ovários e a informação não consta nos documentos.

 

Racismo

“Nós não estamos falando de qualquer LGBT. 82% do alvo da violência e da violação dos direitos humanos da população LGBT é a população negra. É isso revela o quanto o racismo estrutura as relações sociais no Brasil. Evidencia o quanto o racismo acirra o processo de vulnerabilidade social dessa população”, afirmou Washington Luiz Dias, da Rede Afro LGBT, sobre as principais vítimas dos crimes de LGBTfobia.

Washington reforçou que o racismo aumenta o processo de vulnerabilidade social dessa população e sugeriu que o relatório final deve aprofundar mais nessa questão. O representante destacou que a desigualdade é percebida em diferentes políticas, como em casos de doenças sexualmente transmissíveis, como HIV/AIDS, onde se pode observar redução de casos em pessoas brancas e o aumento na população negra.

“A política ou a ausência de uma política sistemática de HIV e AIDS tem contribuído para a necropolítica, assim como na falsa guerra às drogas”, disse.

O representante da Rede Afro LGBT também apontou que a ausência de políticas públicas para a população LGBT é a política atual, sucateando instrumentos de participação e de controle social e que o Pacto de Enfrentamento à violência LGBTfóbica é resultado de uma articulação do Conselho Nacional LGBT em 2018.

Kátia Maria Guimarães, Coordenadora-Geral do Departamento de Promoção dos Direitos de LGBT do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, destacou que o relatório aponta questões importantes para o desenvolvimento e aperfeiçoamento das políticas públicas e antecipou que até o meio de julho o Ministério publicará acordo de cooperação com o Ministério da Saúde, que tem como eixo o combate à discriminação, o enfrentamento ao estigma e às violações de direitos humanos.

 

Fábia Pessoa/CDHM