Entrevista: Augustino Veit
Correio Braziliense - 19/12/2005
Eumano Silva
Tema do Dia - Crise ética
Presidente da comissão de desaparecidos diz ter havido negociação do governo com os militares
Lula é vinculado à área sindical. Tem sensibilidade para os assuntos sociais, mas não vê que as questões, inclusive econômicas, têm de passar pela ótica dos direitos humanos. Ele se move muito pelo resultado imediato
O presidente da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, Augustino Veit, acumula frustrações em relação ao tratamento dado pelo governo Lula aos direitos humanos. As decepções começaram com a falta de poder do ex-ministro Nilmário Miranda para interferir na atuação das outras pastas. Chegaram ao auge há duas semanas, quando o presidente deixou de comparecer pela terceira vez à entrega de diplomas aos que se destacaram em ações no setor. A premiação, antes em dinheiro, desta vez foi apenas um papel. "Nos governos Itamar e Fernando Henrique conseguimos traçar uma política de Estado, mas no governo Lula, isso não aconteceu", afirma Veit.
Advogado e militante dos direitos humanos desde os anos 70, Veit também critica a tentativa do governo de rebaixar o status de ministério da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, mais um sintoma do pouco caso do presidente com o tema. Pouco mais de um ano depois de nomeado por Nilmário para o comando da comissão, chegou à conclusão de que Lula não quer melindrar os militares na questão dos documentos produzidos durante a ditadura. " Tenho certeza de que o governo fez dois grandes acordos na transição, um na área econômica e outro na militar", afirma. " A prova disso foi o decreto assinado pelo Fernando Henrique prorrogando os prazos dos sigilos da documentação para 50 anos", conclui.
Apesar das reclamações, Veit diz ter esperança de conseguir avanços no resgate do passado. Confia que o futuro secretário nacional do Direitos Humanos, Paulo Vanuchi, amigo de Lula, terá força política para dar mais atenção ao setor. A seguir os principais trechos da entrevista.
"Lula fez acordo"
Qual a avaliação do senhor sobre o desempenho do governo Lula na área dos direitos humanos?
No início do governo, Lula aceitou a proposta da sociedade civil de elevar o status da Secretaria de dos Direitos Humanos para ministério. Esperávamos apoio institucional absoluto, total e prioritário da Presidência da República para que o ministro Nilmário Miranda pudesse ser um homem forte dentro do governo para atuar de forma preventiva nos direitos humanos. Deveria ser referendado para fazer política com os outros ministérios, como o da Saúde e o da Educação.
Isso não aconteceu?
Não. Pelo contrário, Nilmário ficou bastante isolado. Sem uma articulação política, cada ministério passa a fazer a tarefazinha da pasta. Um exemplo foi a irmã Dorothy Stang (freira norte-americana assassinada no Pará em fevereiro de 2005). Por que não houve uma ação preventiva em relação às denúncias que ela fez — nos ministérios do Trabalho e do Meio ambiente — de trabalho escravo, desmatamentos e tráfico de madeira? Por que não se articularam com o Ministério da Justiça, a Polícia Federal e a Secretaria de Direitos Humanos se todos sabiam das ameaças contra ela?
A entrada de Paulo Vanuchi na Secretaria Nacional dos Direitos Humanos pode mudar essa situação?
Penso que sim. Vanuchi trabalhou no programa de direitos humanos durante a transição com o governo Fernando Henrique. Ele sentou com a sociedade civil e recebeu a proposta da elevação de status de secretaria. É um homem bem relacionado com o presidente e pode vir a ter força institucional maior do que os antecessores se Lula der as condições políticas. A ministra Dilma Rousseff (Casa Civil) se afina muito com a história do Vanucchi e acho que a gente pode alavancar o governo nessa questão.
Por que o governo Lula não dá esse apoio a uma questão importante na história do PT?
Lula é vinculado à área sindical. Tem sensibilidade para os assuntos sociais, mas não vê que as questões, inclusive econômicas, têm de passar pela ótica dos direitos humanos. Lula não valoriza questões de afirmação de valores. Ele se move muito pelo resultado imediato. Não é responsabilidade exclusiva do Lula, mas quero enquadrá-lo nesta concepção de sociedade que nós somos. Esse é um governo com proposta eleitoral para permanecer no poder. Não tem proposta de Estado, de nação. Isso se refletiu (na tentativa de) rebaixamento do status dos Direito Humanos pars subsecretaria da Secretaria Geral da Presidência. Não fossem a pressão internacional e a mobilização do Congresso e da sociedade civil, hoje seria uma subsecretaria.
Onde fica mais evidente essa falta de interesse do governo?
Falta integração articulada dos ministérios. Para o ano que vem, não há previsão para a diária dos fiscais do trabalho escravo. É inacreditável, mas há fiscais do Ibama que encontram fazendas com trabalho escravo e nada fazem porque não é da competência deles, é do Ministério do Trabalho. Nos três anos do governo Lula, morreram mais lideranças indígenas do que nos 10 anos anteriores. Também na reforma agrária, as metas anunciadas para a redução dos conflitos não foram alcançadas.
Qual a opinião do senhor sobre o tratamento dado aos mortos e desaparecidos durante a ditadura militar?
Não basta o governo anunciar a transferência dos arquivos da Abin (Agência Nacional de Inteligência) para o Arquivo Nacional. Os papéis queimados na Base Aérea de Salvador provam que nem todos os documentos foram para a Abin. A transferência não pode ser aceita como um ponto final na história do regime militar. Ainda há coisas obscuras, são cerca de 70 desaparecidos. O governo não pode se dar por satisfeito sem dar conta do paradeiro e das circunstâncias em que essas pessoas foram mortas e desapareceram. Há resistências dentro das Forças Armadas, mas o governo teria condições de revelar a verdade. Para isso, deve haver articulação política com as Forças Armadas.
Quem deveria fazer essa articulação?
O presidente é o comandante-em-chefe das Forças Armadas, é quem pode determinar o que quiser. A legislação ampara a não revelação, tanto a Lei da Anistia como o Código Penal. Ninguém é obrigado a produzir provas contra si mesmo, ninguém voluntariamente vai falar, mas temos de trazer as chefias das Forças Armadas para um diálogo. Tenho certeza de que o governo fez dois grandes acordos na transição, um na área econômica e outro na militar. A prova disso foi o decreto assinado pelo Fernando Henrique prorrogando os prazos dos sigilos da documentação para 50 anos. Isso só pode ter sido um acordo.
O presidente Lula também teria participado desse acordo?
Acho que sim, as Forças Armadas temem a verdade. A legislação internacional avançou muito. A Argentina revogou a lei deles e hoje eles podem responsabilizar os implicados na época da ditadura. Acho que no Brasil não há condições, poucas pessoas reivindicam. O que mais se espera é a verdade. A Organização das Nações Unidas propugna pela responsabilização individual e recomendou ao governo brasileiro a abertura de toda a documentação. Se o Brasil não consegue lugar no Conselho de Segurança da ONU é porque deu exemplo ostensivo de impunidade ao fazer a Lei de Anistia, que perdoou todo mundo pelas atrocidades, pelos crimes de lesa-humanidade que foram cometidos aqui.
Que comparação o senhor faz entre os últimos governos em relação aos direitos humanos?
Vínhamos numa escala crescente desde1992, quando o Brasil assumiu em Viena o compromisso de elaborar um plano nacional de direitos humanos. O presidente era Itamar Franco e o ministro da Justiça era Maurício Corrêa. O Brasil criou naquele ano a Secretaria de Direitos Humanos. No início do governo Lula, elevamos para o status de ministério. Nos governos Itamar e Fernando Henrique conseguimos traçar uma política de Estado. No governo Lula, isso não aconteceu. Nossa expectativa foi frustrada.
O senhor pode dar mais um exemplo?
Sim. Durante oito anos Fernando Henrique entregou um prêmio a pessoas e organizações de reconhecido trabalho na área de direitos humanos. Empresas davam prêmio que variavam entre R$ 10 mil e R$ 30 mil. Um prêmio com a presença do presidente para quem trabalha na periferia, no mundo do tráfico de drogas, da prostituição, se traduz numa auto-estima fantástica. Tem um valor simbólico fenomenal. Em três anos, nenhuma vez Lula se dignou a se fazer presente na entrega do prêmio. Pior: este ano foi entregue apenas um diploma na Sub-secretaria de Direitos Humanos, sem sequer um representante do Palácio do Planalto. Mas nós que somos militantes temos de ter esperança de que vamos avançar. Acho que o Paulo Vanucchi, mantendo a equipe, pode dar a atenção devida. Estou falando dele somente do Lula, mas depende do conjunto das forças da sociedade civil.
No caso da Guerrilha do Araguaia, que expectativa os familiares dos desaparecidos podem ter?
Temos 64 desaparecidos no Araguaia. Estou convencido de que houve uma "operação limpeza" e acho que o governo todo sabe disso. Temos poucas chances técnicas de recuperar os restos mortais. Mas espero que o governo consiga oficializar e assumir a responsabilidade disso. O governo já reconheceu as mortes, mas falta reconhecer a "operação limpeza" e revelar como ela foi feita.
Os moradores do Araguaia envolvidos pelos militares ou pelos guerrilheiros têm algum direito?
Todas as pessoas que tiveram direitos violados têm direito a reparação. Nossa legislação já prevê. Acho que devemos fazer uma lei específica para contemplar e reparar os prejuízos dos que foram utilizados pelas Forças Armadas e dos que moravam na região e foram vítimas de violações, invasões de domicílios, tiveram a vida destruída, familiares torturados, desaparecidos. Muitos tiveram de migrar em razão da guerrilha ou da repressão. Espero que eles possam se organizar rapidamente para, com mais força, levar ao Congresso a lei para reparar esses danos.
A decisão de levar os arquivos da ditadura para o Arquivo Nacional pode ajudar nos esclarecimentos?
Esse é um passo importante. Mas, se não forem liberados documentos, por exemplo, sobre a "operação limpeza" no Araguaia, vamos exigir a busca dessa documentação. Não acredito que o Exército tenha feito operações sem documentá-las. Se esses documentos não passarem para o Arquivo Nacional é porque estão em lugares indevidos. Critico a classificação dos documentos em "secretos", "ultra-secretos" e "reservados". Os "secretos", por exemplo, podem ser liberados em 30 anos. Outra lei diz que, mesmo depois desse prazo, o documento será submetido a uma comissão interministerial que avaliará a conveniência da liberação. Uma comissão dessas não pode avaliar essa "conveniência". Tem de ser na visão do Estado e não do governo, pois seria tratado como questão político-partidária.
O que ainda é possível ser feito?
Ainda no governo Lula, precisamos formar o banco de dados do DNA dos familiares dos desaparecidos para confrontar com ossadas que possamos encontrar no futuro. Ainda precisamos apreciar 33 processos. Alguns exigem diligências bastante trabalhosas, como é o nebuloso caso do assassinato do jornalista Alexandre Von Baungarten, que tem oito caixas com 32 volumes. Depois, vamos elaborar o relatório final da comissão dos 10 anos da Comissão de Mortos e Desaparecidos, que esse ano completa 10 anos. Estou sugerindo a instituição de uma comissão permanente do ponto final, da verdade, para lutar até as últimas conseqüências pelo esclarecimento dos fatos.