Discurso do Dep. Luiz Couto sobre os 30 anos da Anistia

31/08/2009 18h25

28 de agosto: 30 anos da Lei da Anistia

Deputado Luiz Couto (PT-PB)

Presidente da CDHM

28 de agosto de 2009 é tempo de rememorar uma conquista popular fundamental para a democracia que usufruímos hoje. Trinta anos atrás era editada a Lei 6683/79 – Lei da Anistia Política, sem dúvida um dos principais marcos da cidadania brasileira.

Depois desses 30 anos, hoje é mais fácil avaliar a relevância dessa conquista.

Antes de tudo, é preciso lembrar que a Anistia é resultado direto da luta de resistência de militantes e cidadãos comuns indignados com a repressão, os assassinatos, a tortura, a proibição de organização, a censura e tantas outras violações de direitos humanos que se tornaram sistemáticas desde o golpe civilmilitar que depôs o presidente João Goulart, em 1º de abril de 1964.

Também contribuiu para a anistia a pressão feita do exterior, por governos democráticos (principalmente europeus) e setores da sociedade civil e do mundo da cultura e da imprensa daqueles países, demonstrando a importância da solidariedade internacional nesses momentos.

Ainda hoje emocionam canções como “Apesar de você”, de Chico Buarque, e “O bêbado e o equilibrista”, de João Bosco e Aldir Blanc, nascidas e inspiradas no calor da luta política, que, somando-se ao clamor das ruas, contribuir para derrotar a ditadura.

A luta pelo fim da ditadura teve dois momentos chaves, ambos com o protagonismo das ruas. O primeiro foi a conquista da Anistia.

Num primeiro momento, a Anistia significou o retorno à pátria de opositores do regime que haviam sido banidos e exilados, a libertação de presos políticos e a suspensão e o livramento de processos arbitrários. A Anistia permitiu o engajamento de muitos dos nossos melhores quadros políticos na luta política.

O segundo momento chave foi a campanha pelas Diretas Já, luta histórica pela escolha do presidente da República pelo voto popular. Embora a meta não tenha sido atingida naquele momento, a mobilização mudou claramente a correlação política e forçou o fim dos governos militares, com a escolha indireta da chapa Tancredo Neves & José Sarney pelo Colégio Eleitoral.

Portanto, a Anistia é um episódio grandioso na história brasileira e deve ser lembrado como uma conquista, como prova da capacidade de mobilização e de luta pelos melhores valores democráticos e solidários do nosso povo.

Entretanto, o processo da Anistia segue em aberto e há duas questões importantes a exigir a reflexão nacional no marco dos trinta anos.

A primeira é quanto à extensão da Anistia àqueles que, em nome do Estado, cometeram crimes contra a humanidade e contra os direitos humanos,

qualificados como crimes imprescritíveis em tratados patrocinados pela Organização das Nações Unidas (ONU) e Organização dos Estados Americanos (OEA) dos quais o Brasil é signatário.

Respaldados nesses instrumentos internacionais, juristas independentes avalizam a interpretação de que os torturadores e responsáveis por desaparecimentos forçados e execuções extrajudiciais não podem se valer da Lei da Anistia para escapar da Justiça. Os crimes por eles cometidos são crimes comuns contra a humanidade, e não crimes políticos, como foram enquadrados os militantes políticos atingidos pelos atos de exceção do regime ditatorial.

Evitar a impunidade dos que praticaram esses crimes não busca satisfazer o afã de ver esses criminosos atrás das grades. O sentido da aplicação das leis e instrumentos internacionais é dar uma demonstração de que, a exemplo do que ocorre em outros países, no Brasil tais crimes não são tolerados e não poderão jamais ser repetidos.

Mesmo dentro do Governo Federal, há divergências de interpretação. Enquanto o ministro da Defesa e o Advogado-Geral da União entendem que os militares se beneficiam da Lei de Anistia, os ministros da Justiça e da Secretaria Especial dos Direitos Humanos compartilham a interpretação sobre a imprescritibilidade da tortura e do desaparecimento forçado, propugnada pelos tratados internacionais.

Outra questão em andamento diz respeito à reparação, por meio da Lei da Anistia – e suas sucedâneas –, aos que foram perseguidos de várias formas pela repressão. Centenas de requerimentos de anistia com pedidos de indenização estão sendo analisados pela Comissão Especial de Anistia, no âmbito do Ministério da Justiça. Nos últimos meses, os processos têm tramitado com maior celeridade, em razão da intensa mobilização dos anistiados e de suas famílias, com o apoio de entidades como a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados e do próprio presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Durante muitos anos, os processos demoraram longos períodos para serem concluídos, e segmentos políticos e da mídia inconformados com o reconhecimento do direito dessas pessoas à anistia, fizeram acusações exaustivamente, tentando inviabilizar as reparações.

Outra pendência importante decorrente da Anistia aos perseguidos pela ditadura de 1964 diz respeito ao resgate da verdade e da memória. A luta pela abertura dos “arquivos secretos” tem sido longa e ainda há um enorme trabalho a ser feito.

Muitos dos que detêm informações sobre o destino de presos políticos desaparecidos, entre outras informações, mantêm documentos ocultos, muitas vezes manipulando o conhecimento dos fatos de acordo com a evolução da conjuntura, sempre no sentido de preservar os interesses e a impunidade dos que participaram das violações de direitos humanos na repressão.

Fragmentos dos episódios têm vindo à tona por meio da divulgação de depoimentos, livros e pesquisas. Em maio último, foi lançado pelo Governo Federal o projeto Memórias Reveladas, coordenado pela ministra Dilma Rousseff e pelo ministro Paulo Vannuchi. Esse projeto organizou e disponibilizou tudo o que foi possível recolher até agora em matéria de documentos de valor histórico sobre aquele período cinzento.

Mas grande parte dessa documentação não se encontra em poder do Estado, e sim em poder de particulares que se apoderaram desses documentos. É importante que haja por parte dessas pessoas um gesto de dignidade, no sentido de disponibilizar essas informações para a sociedade. As novas gerações e as famílias dos que desapareceram têm o direito de saber a verdade.

Portanto, o marco dos trinta anos da Lei da Anistia é uma oportunidade para a reflexão e a mobilização da sociedade brasileira no sentido de complementar o "acerto de contas com o passado e o futuro".

As tarefas estão claras: resgatar os documentos e informações ainda não revelados; responsabilizar os que, em nome do Estado, na época ilegítimo, pois se tratava de uma ditadura estabelecida por meio de um golpe militar, cometeram crimes imprescritíveis contra a humanidade e; por fim, concluir o julgamento de todos os processos de reparação e indenização das vítimas da repressão.

Não podemos aceitar que estas demandas sejam rebaixadas pelas viúvas da ditadura como revanchismo. Tais reivindicações são, em verdade, a conclusão de um processo legal e necessário, pois a democracia não se faz com a omissão da justiça.

Finalmente, este é um momento de valorizar a política como espaço de exercício da democracia. Generalizar a crítica à política e a todos os que de alguma forma participem da luta pelo bem comum é abrir caminho para o discurso e a sanha golpista, a mesma que condenou o Brasil aos vinte e um anos de ditadura.

Melhorar os procedimentos da política, ampliar e aperfeiçoar os espaços da democracia participativa e dos mecanismos de representação, realizar uma reforma política que reduza os vícios que minam sua credibilidade: estes são, em nossa opinião, os principais desafios que devemos enfrentar para consolidar a democracia brasileira no marco dos trinta anos da Lei da Anistia.