Direitos da População Negra e Combate ao Racismo são avaliados em audiência pública

O encontro do Observatório Parlamentar da RPU, presidido pelo deputado Bira do Pindaré (PSB-MA), reuniu autoridades e representantes da sociedade civil e avaliou a evolução de recomendações feitas ao Brasil sobre a garantia de direitos da população negra e o combate ao racismo
14/05/2021 17h58

Captura e montagem: Fernando Bola/CDHM

Direitos da População Negra e Combate ao Racismo são avaliados em audiência pública

O Observatório Parlamentar da RPU, sediado na Comissão de Direitos Humanos e Minorias, debateu, nesta sexta-feira (14), 15 recomendações voltadas para a promoção dos direitos da população negra e o combate ao racismo. O deputado Bira do Pindaré (PSB/MA), que presidiu a audiência, sintetizou algumas dificuldades no combate ao racismo no Brasil e apontou questões centrais para o cumprimento das recomendações no país. “Não reconhecer o racismo dificulta qualquer tipo de implantação de políticas. Então, esse é um ponto necessário que foi destacado aqui. Também vale lembrar da lei das cotas, que ano que vem passa por uma revisão, e a necessidade de resgatar o censo do IBGE, instrumento indispensável para a definição das políticas públicas. E denunciar a decisão ambiental tomada esta semana, que ainda vai para o Senado, e temos chance de reverter para proteger os territórios quilombolas, os territórios indígenas e os das comunidades tradicionais”, destacou.

A Revisão Periódica Universal é um mecanismo de avaliação da situação dos direitos humanos nos 193 países membros da ONU. Os países se avaliam mutuamente, e esse diálogo gera um conjunto de recomendações para cada país. O Brasil aceitou 242 recomendações neste terceiro ciclo da RPU, que teve início em 2017.

Esequiel Roque do Espírito Santo, Secretário Adjunto da Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, destacou a ratificação à Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Discriminação. Esequiel também apontou que o governo já vacinou 1,8 milhões de pessoas de comunidades tradicionais, como quilombolas, e que o auxílio emergencial foi pago a mais de 21 milhões de cidadãos negros.

Pastor Murillo Martínez, Consultor Independente da ONU em questões de direitos humanos e ex-membro do Comitê para Eliminação da Discriminação Racial (CERD), parabenizou o Brasil pela ratificação da Convenção, mas reforçou a necessidade de se colocar em prática tais instrumentos.

“O racismo e a discriminação racial constituem um dos desafios mais importantes que a humanidade enfrenta. Vemos a instrumentalização do racismo, a utilização política do racismo, derivando em graves consequências para a paz nacional e internacional. O aumento dos discursos de ódio está impactando gravemente a paz e a segurança internacional”, declarou Martínez.

Para Marco Antônio Delfino, Coordenador do Grupo de Trabalho de Combate ao Racismo e Promoção da Igualdade Racial do Ministério Público Federal, só a ratificação da Convenção Interamericana não é o bastante. “Apenas a ratificação não é suficiente para alterar o quadro de racismo estrutural que vivemos no país. O primeiro passo para transformar uma realidade é reconhecê-la. A partir do momento em que essa realidade não é reconhecida, a possibilidade de transformação não existe”.

Marco Antônio também demonstrou preocupação com a questão da letalidade policial e a necessidade de um controle social nas forças policiais. “Nós temos uma legislação que traz princípios e diretrizes claras para a redução da letalidade policial, mas esses mecanismos não são cumpridos. Uma política pública tem que contar com controle social, com transparência nos dados, algo que, infelizmente, até o momento não existe”. Outra questão destacada pelo representante do Ministério Público é o perfilamento racial e uso de ferramentas que empregam algoritmos, que podem contribuir com um encarceramento ainda maior da população negra.

Para Rita Lima, Vice-Presidente da Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos (ANADEP), o relatório preliminar corrobora as informações percebidas no cotidiano da Defensoria Pública. “O relatório desenha a realidade do dia a dia da Defensoria. Enquanto defensora e defensores públicos da população mais atingida pela ausência de dignidade, de entrega dos equipamentos, dos serviços, dos direitos por parte do Estado, o que nós verificamos é que, do lado de lá do balcão, a maior parte das pessoas atendidas são negras, enquanto do lado de cá, nós seguimos sendo majoritariamente brancos. Isso revela o racismo estrutural do nosso país”, diz.

“O grande entrave para o debate do combate ao racismo e preconceito racial no Brasil no  momento é nós enfrentarmos o desrespeito a um direito fundamental, que está sendo negado à população negra, o direito à vida. A chacina de Jacarezinho, em que foram assassinadas quase 30 pessoas, com a justificativa de ser uma operação em defesa dos direitos das crianças e adolescentes, é a face mais cruel desse problema deixado de lado desde a redemocratização do Brasil: a manutenção de uma estrutura repressiva e institucional, voltada inicialmente para combater opositores do regime. Passado o regime autoritário, a estrutura repressiva foi voltada para combater os novos inimigos internos, as populações periféricas, esmagadoramente formadas por negros e negras”, apontou Dennis Oliveira, da Rede Nacional Quilombação.

“O racismo é o elemento que determina a violação dos direitos humanos no Brasil, pois em qualquer área que nós abordamos, a maior parte das pessoas afetadas é da população negra. O nível de violação dos direitos humanos no Brasil está diretamente ligado ao grupo racial no qual ele incide”, destacou Lázara Carvalho, do Geledés- Instituto da Mulher Negra.

Luiz Augusto Campos, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, questionou visões otimistas sobre inclusão racial no Brasil. “Nós tivemos avanços importantes nas últimas três décadas, mas quase todos esses avanços estão hoje sob ameaça evidente. Se a gente pensar, por exemplo, na política de segurança pública, ela nunca foi tão desigual. O número de homicídios geral no Brasil, caiu, o número de homicídios de brancos caiu 30% e o número de homicídios negros aumentou 86% entre 2000 e 2019. É uma política de segurança pública para a população branca e contra a população negra”.

A legislação que afrouxa regras para a aquisição de armas foi outro ponto que mereceu destaque durante a audiência. Para Rosilene Torquatro, agente de Pastorais Negros (APNs) e da Convergência Negra, essas armas farão ainda mais vítimas negras. “Dar porte de armas, facilidades para armamento, vai aumentar a violência. Essas armas já estão liberadas, nós só vemos o aumento das milícias nos nossos territórios, são as pessoas de bem. São esses que matam as mulheres, que violentam as mulheres, que matam as crianças. São homens de bem que fazem isso. E por isso nós falamos: não às armas, a essa violência que atinge nossa juventude negra e a nós, mulheres negras. Nao à violência aos quilombolas e a todo povo brasileiro, em sua maioria, mulheres e negros”.

Para Sheila Carvalho, da Coalizão Negra por Direitos, existe um desmonte de políticas públicas que impossibilita o cumprimento das recomendações. “Há hoje no Brasil um descumprimento de todas as políticas e direcionamentos internacionais em relação ao combate à fome. É absurdo que nos últimos anos a gente tenha passado de um Brasil que ganhava prêmios internacionais pelo combate à fome, que tinha um índice de pobreza extrema de 3%, para um Brasil que volta ao mapa mundial da fome e tem hoje um índice de extrema pobreza de 12,8%”, apontou.

Valdecir Nascimento, da Articulação de Mulheres Negras Brasileiras, também questionou visões otimistas, apontou a importância da realização do censo para a construção de políticas públicas que promovam a inclusão da população negra, denunciou a falta de investimento público na política de igualdade racial a e letalidade que vitima jovens negros. “Tem muita gente com as mãos sujas de sangue nesse país, por omissão, por negação”.

Valdecir também reforçou a necessidade de instrumentos internacionais que responsabilizem o Brasil pela condução de políticas que vitimam ainda mais a população negra, como neste momento de pandemia da Covid-19, além de maior compromisso por parte do Congresso Nacional. “Continuam nos desumanizando. Continuamos experimentando situações análogas à de trabalho escravo, as mais primitivas. Que país é esse? Cadê a política de promoção da igualdade racial? Pelo amor de Deus. Nos respeitem. Respeitem a história da gente, a história do povo, que gera riqueza neste país”, declarou, enfática.

“Hoje é o pior dos dias das nossas vidas, é o 14 de maio. Um dia depois do 13. É também um dos melhores dias, porque ontem nós reafirmamos a nossa capacidade de lutar coletivamente. Nós fomos para as ruas dizer não ao genocídio do povo negro”, afirmou Iêda Leal, do Movimento Negro Unificado.

“Sabemos que a libertação do povo negro foi assinada numa Lei chamada Áurea, em 1888, mas que foi pra inglês ver. Por isso que nós não comemoramos o 13 de maio. Não reconhecemos a princesa Isabel como heroína. Heroína pra nós é Luíza Mahin. Herói pra nós é o negro Cosme, do meu Maranhão, é Zumbi dos Palmares, é Pedro Ivo, e tantos outros lutadores que levantaram a voz pra enfrentar a escravidão. Essa luta continua, não é mimimi, é luta verdadeira de um povo que não se cala. E que vai resistir. E vai vencer todas as dificuldades, sobretudo do presente momento em nosso país”, declarou o parlamentar ao finalizar a audiência, reconhecendo  o compromisso dos representantes da sociedade civil no enfrentamento dessa perversidade que é a desigualdade racial no Brasil.

 

A violência contra a população negra no Brasil

Segundo dados do IBGE, em 2017, a taxa de jovens negros assassinados chegou à marca de 98,5 para cada 100 mil habitantes, contra 34 dos não negros. Quando se tratou de jovens negros do sexo masculino, essa taxa chegou a 185 por 100 mil habitantes, número exorbitante, considerando-se que a média geral do Brasil foi de 31,6.

O número absoluto de homicídios diminuiu 10,8% em 2018 (57.358) e 17,7% em 2019 (47.773), mas voltou a subir no primeiro semestre de 2020. Mas, mesmo com as mencionadas oscilações, a quantidade de negros assassinados continuou sendo de aproximadamente 75 para cada grupo de 100 homicídios, ou seja, a probabilidade de um negro ser assassinado hoje no Brasil é 2,7 vezes maior do que um não negro.

Dados do FBSP informam que, de todos os homicídios registrados no Brasil em 2019, 74% eram vítimas negras; 90,2%, homens; e 50%, jovens entre 15 e 29 anos. A violência armada continua tendo os negros como as principais vítimas: 78% de todas as mortes ocorridas em decorrência de agressão por arma de fogo, no ano de 2018, tinham como vítimas pessoas negras.

O FBSP concluiu que 75,4% das pessoas mortas em intervenções policiais entre 2017 e 2018 eram negras, tendo esse número atingido 79,1% no ano de 2019. Em 2017 foram registradas 5.179 mortes decorrentes de intervenções policiais no Brasil; em 2019 esse número subiu para 6.375 mortes. Isso significa que mais de 17 pessoas morreram por dia vítimas de intervenções policiais, sendo a imensa maioria delas pessoas negras.

Em 2018 e em 2020, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) emitiu notas expressando preocupação com o uso excessivo da força e com o alto índice de letalidade contra a população afrodescendente no Brasil.

 

COVID-19

Durante a pandemia da COVID-19, as desigualdades raciais no que diz respeito à mortalidade materna foram destacadas. Entre os casos registrados de mulheres grávidas ou puérperas que apresentaram síndrome respiratória aguda grave (SRAG), o número de mulheres negras que vieram a óbito foi quase o dobro do número de mulheres brancas. O padrão de maior letalidade se repete na população negra em geral. Entre os casos gerais de SRAG registrados até 18 de maio deste ano, o percentual de pacientes pretos e pardos que vieram a óbito (54,78%) foi maior do que os brancos (37,93%).

 

 

Fábia Pessoa/CDHM