Diferentes, mas nem tanto

Amanda é estudante de artes visuais. Bernardo está terminando o ensino médio. Mas outras pessoas que, assim como eles dois, são autistas, vivem acorrentadas ou até mesmo em jaulas. Como o caso de um menino que ficou preso durante 15 anos em casa. A família pobre não conseguia tratamento na rede pública. Até o dia em que o menino recebeu atendimento por 6 meses. Começou a falar, sorrir e conheceu o pátio de casa, onde tinha pisado pela última vez há 11 anos. Cada um deles tem uma capacidade, ou várias. E elas podem ser desenvolvidas da forma que for mais adequada. Podem ser diferentes, mas com direitos iguais a todos.
03/07/2018 20h05

Foto: Fernando Bola

Diferentes, mas nem tanto

São histórias de conquistas e desafios que foram contadas na audiência pública desta terça-feira (3) da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados. Tudo começa com a Lei que, em 2012, criou a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista, seguida da Lei Brasileira de Inclusão, de 2015. Para as famílias dos autistas essas Leis nunca saíram do papel e a síndrome ainda é cercada de desinformação e preconceito.

Atualmente, um dos serviços públicos que podem ser procurados por pacientes autistas é o Caps (Centro de Atenção Psicossocial). Os Centros são usados no tratamento de autistas justamente pelo caráter, a princípio, intensivo. Mas, os profissionais que atuam nessas instituições, muitas vezes não estão preparados para lidar com essa demanda.

O autismo é uma síndrome integrante do grupo de desordens cerebrais chamado Transtorno Invasivo do Desenvolvimento (TID) ou Transtorno Global do Desenvolvimento (TGD). Estima-se que há setenta milhões de autistas em todo o mundo.

Também não existem números sobre o autismo no Brasil. Há a estimativa que sejam 2 milhões. Porém, o Requerimento 179, deste ano, que tramita na Câmara dos Deputados, pede ao Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão que o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) inclua o autismo no Censo Demográfico de 2020. O objetivo é apurar a quantidade e a condição socioeconômica das pessoas que se enquadram dentro do Transtorno do Espectro Autista.

Pais

Fernando Cotta é pai de autista severo e Fundador do Movimento Orgulho Autista Brasil (Moab). Ele afirma que as leis que preveem inclusão e diagnóstico precoce nunca foram colocadas em prática. Ele também pede que autistas tenham direito às vagas especiais nos estacionamentos e também redução de impostos na compra de veículos. Afinal, são reconhecidos como deficientes. Então, que os mesmos direitos sejam estendidos a todos. Ele também conta que há pouco mais de um ano, servidores federais pais de autistas conseguiram ter carga horária reduzida, mas são discriminados com maior carga de trabalho ou perda de funções. “Ainda há pessoas encarceradas em suas casas por causa do autismo. Precisamos de escolas inclusivas, que os professores e monitores estejam preparados. Na saúde, os médicos também não sabem diagnosticar a síndrome. As pesquisas sobre o uso do canabidiol também devem avançar, para que seja usado nos casos de convulsões, por exemplo”, sugere Fernando.

O canabidiol é um dos componentes não psicoativos encontrados na canabis sativa, ou planta do cânhamo. Hoje, no Brasil, o medicamento deve ser importado com autorização da justiça.  A Agência Nacional de Vigilância Sanitária realiza estudos para regulamentar o plantio de maconha para pesquisa e uso medicinal.

O coordenador Nacional do Núcleo de Atenção ao Transtorno do Espectro do Autismo (Natea), Lucelmo Lacerda, quer que a comunicação alternativa seja implementada de fato. Essa forma de comunicação usa imagens ou fotos como meio de comunicação funcional e pode ajudar crianças com atraso de desenvolvimento que afete a fala. “Existe uma violação de direitos humanos brutal com nossos autistas. Vivemos uma visão falsa da realidade. Todo mundo deve ser matriculado na escola regular porque lá tudo vai se resolver. Mera ilusão. O Estado adota o modelo porque é barato. Também não existe uma política de comunicação, de linguagem especial nas escolas. Além da falta de preparo dos professores. Nas crises agressivas, o professor segura do jeito que dá. Sem falar em ensino de habilidades” expõe Lucelmo. Ele também aponta o mau uso do dinheiro público como responsável pela falta de sucesso na execução de políticas inclusivas, e pede a construção de consensos entre todos os campos ideológicos para que os desafios sejam vencidos.

Para Viviane Guimarães, coordenadora de educação do Moab e mãe de autista, é preciso falar dos pais. “Só pode cuidar do outro quem está bem. Pais se separam mesmo se amando, porque não têm tempo para o casal.  Diagnóstico precoce é a exceção da exceção. Médicos não conseguem fazer. E não sei o que era pior, quando a escola recusava meu filho ou agora que é obrigada a aceitar. Professores tem uma enorme boa vontade, mas não sabem o que fazer com nossos filhos”, pondera.

“Quem vai ficar com nossos filhos quando falecermos? Porque não pensamos em instituições que possam recebe-los? Mas com profissionais preparados”, as perguntas são feitas por Luciana Medina, mãe de Bernardo, autista. Ela também sugere mudanças no Enem, como o aumento do tempo para a prova de redação.  “Talvez os autistas precisem de mais tempo para a redação. O funcionamento é diferente e a objetividade não é como a nossa. Mas a inteligência e a cognitividade estão ali”, ressalta. 

Outra mãe de autista, Simone Maia Franco, pede apoio do Legislativo para que o requerimento sobre o Censo 2020 seja enviado logo ao governo federal, além do estudo sobre a curatela, que é um instrumento jurídico para que um adulto possa se responsabilizar pela gestão de pessoas. No caso, de autistas. “Também foi prevista prioridade na restituição do Imposto de Renda já no primeiro lote, o que não está acontecendo. O Conselho Nacional de Trânsito também poderia criar uma placa indicativa para autistas terem direito ao estacionamento para deficientes. Eles têm esse direito”, afirma Simone. 

Filhos

Bernardo Mendina Martínez, tem 17 anos, é estudante e integra o Projeto Desabafo Autista e Asperger. Ele é um caso raro de diagnóstico precoce, com 1 ano e meio de idade. “Temos níveis diferentes de autismo e as políticas públicas devem observar isso e serem direcionadas. As necessidades dos autistas mais leves são diferentes dos severos. No Censo 2020 talvez possamos ter os números de quantos somos, onde estamos e como vivemos, e aí embasar políticas públicas com maior precisão. Acompanhei de perto a luta da minha mãe na conquista da lei que estabelece o diagnóstico precoce. Luta que virou um livro contando essa experiência. O autismo não pode e nem deve nos limitar”, conclui Bernardo.

“Toda vez que venho na Câmara ou no Senado repito as mesmas reivindicações. Insisto nelas e tudo bem. Sou autista e repetir é comigo mesmo”, afirma com bom humor Amanda Paschoal, estudante universitária e diagnosticada autista. “ São tantas leis boas que não são colocadas em prática. Cadê a comunicação alternativa? Onde estão os fonoaudiólogos? Acho que é uma vergonha para uma Nação quando os cidadãos devem agir sozinhos porque cansaram de esperar o governo. Além de uma absoluta falta de informação com diagnósticos. Se é transtorno leve, dizem que é ansiedade. Se é severo, que é esquizofrenia”, aponta Amanda.  

Ama ameaçada de despejo pelo GDF

Gilberto Ferreira Pereira, presidente da Associação Amigos dos Autistas (Ama) e pai de uma moça autista, está na luta pela manutenção do espaço. O Governo do Distrito Federal pediu o despejo da instituição do imóvel que ocupa. Porém, uma liminar da Justiça mantém a Ama no local. “A Ama existe há 20 anos e é a única associação que atende autistas adultos e severos. Prestamos atendimento funcional, as pessoas são cuidadas com as suas habilidades. Ensinamos como ir no banheiro ou trocar de roupa. Pedimos diálogo com o governo do Distrito Federal”.

Para a deputada Erika Kokay, há uma distância entre o que está previsto na Lei e o que acontece na prática. “As leis são marcos importantes e adaptações são necessárias. Como encaminhamento dessa audiência sugiro incluir no sistema de cotas o Transtorno de Espectro Autista. Também a inclusão de políticas públicas para autistas severos. A questão da Ama é cruel e vamos marcar em caráter de urgência uma reunião com o governador do Distrito Federal para impedir o despejo, através da Comissão de Direitos Humanos e Minorias”, afirma a deputada. 

“O importante não são as conquistas, mas lutar sempre. Queremos que, além de todas essas políticas públicas, haja mais respeito com os autistas. Temos que entrar no coração e nas mentes das pessoas. Vamos cobrar do executivo, do judiciário, do Ministério Público a garantia e o cumprimento das leis e das conquistas”, encerra o deputado Luiz Couto (PT/PB), presidente da CDHM.

Também participaram do encontro os deputados Carmen Zanotto (PPS/SC) e Adelmo Carneiro Leão (PT/MG), Adriana Zink, coordenadora estadual em São Paulo do Movimento Orgulho Autista Brasil e Viníciu Mariano, pai de autista e delegado representante do Autismo na Conferência Nacional das Pessoas com Deficiência.

Pedro Calvi

CDHM