Especialistas pedem retomada política do combate à AIDS
Logo na abertura do evento, a exibição de vídeos do grupo “Porta dos Fundos” apresentava aos presentes situações cotidianas de relacionamento afetivo entre jovens em que personagens heterossexuais discutiam de forma bem humorada questões relacionadas à AIDS que os afligiam. Logo a seguir, o deputado Jean Wyllys (PSol/RJ), comentando os vídeos, afirmou que o grupo de humor esclarecia os jovens sobre a doença de uma forma que lhes era bastante familiar. “A AIDS não é doença de homossexuais. A presença de personagens heterossexuais nos vídeos indica que atinge quem apresenta comportamentos vulnerável”, destacou o parlamentar.
Perspectivas diferentes
Jean Wyllys advertiu que o Ministério da Saúde não tem veiculado campanhas de prevenção sobre a AIDS e que a doença está avançando sobre grupos jovens (15 a 25 anos), mulheres, pessoas pouco escolarizadas e ampliando casos pelo interior do país.
Ivo Brito, representante do Ministério da Saúde, discordou. De acordo com o que informou o técnico da Saúde, o grupo de risco informado pelo parlamentar condiz com o período de 1990 à primeira década do século 21. Neste momento, disse Ivo Brito, os boletins estatísticos do Ministério apontam que a tendência de ampliação de pessoas infectadas pelo vírus da AIDS está entre homens jovens e de nível maior de escolarização.
“Há dificuldades para identificar com clareza essa mudança de tendência”, disse o representante da Saúde. ”E, portanto,, de desenvolver políticas focalizadas que não produzam efeitos contrários ou estigmatizem um grupo”.
Lei sancionada combate discriminação
Gustavo Bernardes, representante da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, lembrou que a presidente Dilma Rousseff sancionou nesta terça-feira a Lei (12984/14) que define crimes de discriminação de portadores do HIV e doentes de AIDS. Ele lembrou casos de discriminação de crianças em escolas e adultos e jovens em ambientes de trabalho. “Vai contribuir bastante para o enfrentamento contra o desrespeito aos direitos humanos”.
A deputada Manuela D’Avila (PC do B/RS) afirmou que a nova Lei é um avanço que pode contribuir para a exclusão de manifestações de preconceito em ambiente s escolar e de trabalho, ou até mesmo, levar o preconceituoso para a cadeia. “Mas falta avançar por uma cultura de um mundo sem preconceitos. ”
A importância da educação
O deputado Jean Wyllys lembrou ainda das dificuldades nos bastidores políticos em levar a frente um Seminário desse porte e tema. O parlamentar lamentou a não participação da Comissão de Educação na organização do evento.
Já a deputada Iara Bernardi (PT/SP), autora de proposta que criminaliza a homofobia, afirmou que a Câmara já atravessou momentos em que existia maior compromisso político com a luta por essa causa. De acordo com a parlamentar, “a proposta não avançou no Senado, mesmo com a intervenção de três senadores de peso político”.
A deputada Érika Kokay, que também requereu o Seminário, destacou a importância da educação para a construção de mecanismos de combate à discriminação e consciência dos direitos humanos. "Não se faz política pública com preconceito e discriminação", afirmou. De acordo com a parlamentar existe uma sutil corrosão na sociedade dos recentes avanços progressistas. “São pressões fundamentalistas e expressões fascistas cerceando e corroendo o Estado laico”, afirmou.
Para o deputado Jean Wyllys, "deveriam existir garantias de que as escolas fossem parceiras na educação sexual das crianças."
“Retomada política da questão da AIDS é preciso”
Dois especialistas, com linhas diferentes de abordagem sobre a questão da AIDS, promoveram a abertura do Seminário no período da tarde, enfatizando a importância da retomada da AIDS como agenda política.
Richard Parker, presidente da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (Abia), advertiu que a política é campo fundamental, sem a qual não há evolução no enfrentamento da epidemia de AIDS. “Mesmo com avanço das técnicas e tecnologias, não existe avanço sem o esforço político”, afirmou.
Para o estudioso, o avanço tecnológico é importante, mas sem que exista sua distribuição a quem necessite, uma atitude política, pequeno será seu uso. Richard Parker mencionou como modelo a política de direitos humanos apregoada por Herbert de Souza, o Betinho, adotada pelo Estado nos anos 90.
Valdilea Gonçalves dos Santos, médica infectologista da FIOCRUZ, destacou que foram muitos os avanços científicos alcançados no combate ao vírus HIV. “Por mais que avance (a ciência), é clara a necessidade de se atuar em outras dimensões. É preciso voltar a politizar a questão da AIDS”, concordou.
A médica lembrou ainda que o investimento no combate ao HIV é decrescente em todo o mundo. Mas declarou que a combinação dos avanços já conquistados permitem reduzir em até 96% as possibilidades de contrair o vírus da AIDS.
O conceito de “vulnerável” contra o estigma da discriminação
O especialista Richard Parker destacou ainda a importante mudança de paradigma no conceito de “grupos de risco” para “pessoas em condições vulneráveis” no combate à discriminação. “É uma mudança do comportamento individual para o contexto social. A epidemia coincide com lugares onde há desigualdade social, discriminação racial e étnica, ou opressão sexual”, afirmou. Parker também lamentou a volta do estigma da discriminação, “apesar de todos os esforços realizados até o momento”.
Aproximação humana com os soropositivos
Rafael Bolacha, responsável pelo blog “www.umavidapositiva.com.br”, disse no Seminário que encontrou parceiros plugados na necessidade de expor e compartilhar sentimentos sobre as dificuldades enfrentadas por outros soropositivos. “Encontrei muitos blogs informativos na rede, mas o que sou responsável tem uma dimensão humana. Percebi que não estava sozinho e que os soropositivos têm várias caras. A cara da Patti, de Londrina, do Marcelo de São Paulo, do Caio de Recife.”
O “primo” HTLV
O vírus HTLV (sigla na língua inglesa que indica vírus infectante das células T humanas) é também um retrovírus que foi isolado em 1980, antes ainda do “primo” HIV. Ele se apresenta em duas versões: o HTLV-1, que provoca leucemia e doença neurológica; e o HTLV-2, com efeitos pouco evidentes ainda. Sobre o HTLV, falou Sandra Vale, presidente do Grupo Vitamore. “O vírus HTLV não apresenta sintomas e por não ser identificado, passa facilmente de uma geração a outra”, explicou a portadora do vírus.
Sandra diz que os casos de soropositivos para o HTLV são negligenciados no país, sendo poucos os estados que exigem o teste no pré-natal. Sandra estima que existam no país hoje, 2 milhões e meio de brasileiros infectados. “O HTLV-1 pode provocar incapacidade de locomoção. Em 20 anos, podemos ter muitos jovens em cadeiras de roda”, afirmou. As formas de contágio do HTLV são os mesmos do HIV.
Ainda no Seminário, outra representante do Ministério da Saúde, Adele Benzaken, anunciou que já se encontra no país, ainda a ser liberado pela aduana, um remédio importado “3 em 1”, que torna mais simples o tratamento do soropositivo, reduzindo a quantidade ingerida diariamente.
Falta informação ao jovem
A segunda Mesa da tarde “AIDS, a ilustre desconhecida: subproduto da desinformação”, que teve a mediação da deputada Érika Kokay, teve o objetivo de apresentar prognósticos.
Fernando Raphael Ferry, da Faculdade de Medicina da UFRJ, alertou para a mudança no perfil do contágio. Hoje são os pobres, jovens e mulheres os grupos mais atingidos. O início da atividade sexual tem sido momento de contaminação de muitos jovens, revelando falta de informações sobre o risco de contágio.
Uma das razões é que muitas famílias não permitem que a mídia fale sobre causa de mortes de pessoas famosas que faleceram em decorrência da Aids. Para o professor, campanhas deveriam começar nas escolas, mas essa estratégia hoje é dificultada pelo grande desconhecimento do tema entre os professores e pelos tabus religiosos. Entretanto ele considera viável construir modelos educativos para a realidade das crianças. Na UFRJ, onde leciona e pesquisa, o professor participa da organização de um Mestrado e cursos de capacitação de professores em Aids.
Ele informou que há hoje disponíveis 25 drogas para tratamento, algumas em desenvolvimento. Alertou também que o HPV, com grande incidência no país, também é um tipo de Aids; e que a sífilis está voltando com força, assim como a gonorreia.
Uma agência de notícias
A jornalista Roseli Tardelli abordou o papel do jornalista e da mídia. A experiência dela com o tema teve início quando o irmão dela sofreu o contágio com a doença. A família entrou com uma ação contra o plano de saúde Golden Cross, que se recusara a custear o tratamento. Fruto de seu envolvimento com a questão, a jornalista lançou, em maio de 2003, a Agência de Notícias da Aids, hoje consolidada como fonte de informações com presença também em Moçambique, participação em campanhas internacionais, sendo acessada em 60 países.
Roseli mostrou que em toda a trajetória da AIDS, a mídia “prestou muitos desserviços, publicando conceitos equivocados”, contribuindo para a desinformação sobre a doença. A primeira notícia a sair em um jornal brasileiro sobre o assunto, em 1981, tinha o seguinte título: “Câncer raro ataca homossexuais.” “Faltou questionar: como pode um vírus que só dá em gay?” Em 1989, a revista Veja exibia na capa uma foto do cantor Cazuza com o texto “agoniza em praça pública”. “Isso não é verdade, ele lutou com todos os recursos existentes na época, cercado de apoio.” Em 2013, a revista Superinteressante decretou: “Enfim, a cura da AIDS”. “Muito avançamos, mas não é verdade que a doença está curada”.
Senadora preocupada com a onda no sentido contrário
A senadora Ana Rita também saudou a lei sancionada pela presidenta Dilma Rousseff no combate contra o preconceito.
Ela mostrou-se espantada com a ofensiva de setores fundamentalistas diante das propostas que visam a proteger o segmento LGBT. “Fizeram de tudo para jogar numa gaveta ou na lata de lixo o Projeto de Lei 122, que criminaliza a homofobia”. Diante do ambiente negativo para votação, ela defendeu a suspensão do debate sobre a matéria, retomando a tramitação após o processo eleitoral.
A senadora saudou a parceria entre as comissões de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, ressaltando a importância dos valores humanistas que os colegiados defendem.