Democracia e saúde mental andam juntas, afirmam usuários e especialistas

O Ministério da Saúde aprovou em dezembro de 2017 mudanças na Política Nacional de Saúde Mental. Apesar da resolução que estabelece diretrizes para o fortalecimento da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) ter recebido apoio do Conselho Federal de Medicina (CFM), da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), e de outras entidades médicas, ela é alvo de fortes críticas. Entre elas, que foi feita sem a participação dos usuários dos serviços de saúde mental e que, por causa disso, é contrária à Constituição, às Leis e à compromissos internacionais firmados pelo Brasil.
30/05/2018 19h30

Banco de Imagens da Câmara dos Deputados

Democracia e saúde mental andam juntas, afirmam usuários e especialistas

Para discutir a atual situação da Política Nacional de Saúde Mental, a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados promoveu nesta quarta-feira (30), uma audiência pública reunindo usuários e especialistas do setor.

Uma das maiores críticas contra a Portaria 3.588 do governo federal, que consolida a resolução de dezembro de 2017, é que as mudanças trazem de volta a criação de leitos em hospitais psiquiátricos. Dessa forma, vai contra o Movimento Nacional da Luta Antimanicomial de 1987, e que criou o movimento “Por uma sociedade sem manicômios”. Na década de 80, haviam aproximadamente 100 mil leitos em hospitais psiquiátricos. Atualmente, são cerca 23 mil leitos em 161 hospitais.

 Cemitérios de vivos

“Poderíamos estar comemorando os 31 anos do Movimento de Luta Antimanicomial, mas estamos vivendo um retrocesso. Faltam Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), não há investimento na formação dos profissionais desses Centros, além do desmonte do SUS, que está sendo absorvido pelos planos de saúde e dos pactos sociais conquistados nos últimos anos, que garantiam direitos para doentes mentais, idosos, excluídos”, destaca o médico Paulo Amarante, vice-presidente da Associação Nacional de Saúde Coletiva (Abrasco). Ele diz ainda que a própria Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) foi conivente com as mudanças, defendendo a mercantilização da dor e da medicina. “A Portaria 3.588 inverte toda a política que existia, foi aprovada a toque de caixa, sem participação de ninguém, prevê mais investimentos para hospitais particulares e traz de volta os manicômios, os cemitérios de vivos, como dizia Lima Barreto”.

Rogério Giannini, presidente do Conselho Federal de Psicologia vai na mesma direção. “Estamos vivendo tempos de intolerância com os diferentes e falta de compreensão com quem precisa ser cuidado. Vivemos um Estado de exceção, com a redução dos recursos para políticas públicas e crescimento da linguagem do ódio. Democracia é instrumento terapêutico e exercício da cidadania”, conclui Giannini.

A volta do eletrochoque

De acordo com Lúcio Costa, do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, o Ministério da Saúde, através da Coordenação de Saúde Mental, está oferecendo aporte de R$ 110 mil para municípios que queiram usar a terapia do eletrochoque. “ Em vez de olhar para as patologias, temos que olhar para as necessidades das pessoas e não dar medicação, psicotrópicos que trazem sérios efeitos colaterais e dificultam ainda mais reinserção dos pacientes na comunidade”, observa.

Defender o óbvio

Andressa Ferrari, da Rede Nacional da Luta Antimanicomial, trabalha em um CAPS em Brasília (DF)e  afirma que há uma luta diária para “defender o óbvio”, como ela diz. “ Temos que fazer esforços para defender o SUS e o pleno funcionamento dos CAPS. Porque tanto esforço para defender a volta dos leitos psiquiátricos? Qualquer lugar que cerceia a liberdade, tem uma premissa manicomial, como os hospitais psiquiátricos e aldeias”.

“Se não fosse o atendimento num CAPS, uma moça ia se suicidar na nossa frente”, testemunha Tiago Borges, integrante do Movimento Pró Saúde Mental e usuário desse serviço também em Brasília. Ele é enfático nas críticas. “ Ninguém visita os CAPS, a Secretaria de Saúde do DF não vai à campo nem o governo federal. Como vamos comemorar a luta antimanicomial dentro de um manicômio? A gente tem que despertar e lutar pelos nossos direitos”, conclui.

Deborah Duprat, procuradora federal dos Direitos do Cidadão, alerta que a Portaria do Ministério da Saúde é contrária à Constituição e antiética. “Para manicômios iam as mulheres histéricas, mães solteiras, gays, trans, pessoas fora dos padrões hegemônicos, mas a Constituição superou tudo isso. Além disso, o Brasil assumiu compromisso internacional através de uma Convenção de respeito e atenção às pessoas com deficiências de várias ordens. Quem tem que formular políticas públicas são os usuários e não especialistas”.

“Em tempos difíceis, saúde mental é democracia”, ressalta Ana Maria Pita da Associação Brasileira de Saúde Mental. “ A luta pelos direitos, principalmente pelos excluídos, continua. Temos que reverter essas portarias esdrúxulas, principalmente neste este ano de eleições”.

O outro lado

Rafael Ribeiro da Coordenação de Saúde Mental do Ministério da Saúde, apresentou dados de uma pesquisa que mostra que houve uma redução de leitos psiquiátricos de 120 mil para 18 mil; que há um aumento de doenças mentais em presidiários, estima-se que são 61 mil pacientes encarcerados; sobrecarga dos serviços de emergência e urgência psiquiátricos; a falta de uso pelos governos estaduais e municipais dos recursos enviados pela União e falta de prestação de contas do que desses recursos.

A deputada Érika Kokay (PT/DF), que solicitou a realização da audiência pública, pediu que todos os segmentos envolvidos nas questões de saúde mental continuem mobilizados  para, juntos, revogarem a Portaria 3.588 e. “Não podemos aceitar nenhum tipo de retrocesso nos cuidados com a saúde mental, isso também significaria o fim de muitas conquistas, violação dos direitos humanos, da democracia e do exercício da cidadania”.

A Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, é presidida pelo deputa Luiz Couto (PT/PB).

 

Pedro Calvi / CDHM