CDHM debate modelo agrário, desabastecimento alimentar e fome
Os reflexos do agronegócio exportador no desabastecimento alimentar interno, a inflação de alimentos, a ampliação da fome e da miséria, além da importância dos estoques públicos de alimentos, foram debatidos nesta quarta-feira (25) em audiência pública realizada pela Comissão de Direitos Humanos e Minorias.
Pesquisa realizada pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional - Rede PENSSAN demonstrou que 116,8 milhões de brasileiros viveram com algum grau de insegurança alimentar em 2020, 43 milhões de pessoas não tinham alimentos em quantidades suficientes e 19 milhões enfrentavam a fome diariamente.
Para Silvio Porto, Professor da Universidade Federal do Recôncavo Baiano, a escolha por um modelo que privilegia a exportação e outras políticas equivocadas contribuíram para o aumento da fome no Brasil. “A pesquisa identificou que mais de 55% da população brasileira encontrava-se em algum nível de insegurança alimentar e cerca de 19 milhões de pessoas estavam efetivamente passando fome. Um quadro de extrema preocupação, reflexo de uma inação por parte do Estado e de políticas equivocadas”, disse o pesquisador, indicando que o cenário deve se agravar ainda mais em 2021.
“Essa fome tem rosto, cor e classe. As mulheres negras são as mais afetadas, as pessoas analfabetas ou com baixíssima escolaridade, tanto na área rural quanto urbana, e também as mulheres chefes de família que vivem nas periferias da cidade”, reforçou o professor.
Para o pesquisador, a paralisação do programa de cisternas expôs ainda mais os agricultores aos períodos de estiagem, dificultando a produção de alimentos. Sobre a inflação de alimentos, Silvio argumentou que é uma questão estrutural e que alcança frutas, verduras, legumes, grãos, carnes.
Outro dado destacado pelo pesquisador foi o aumento da produção de determinados grãos, que estaria quase 90% concentrada na produção de milho e soja, e a maior parte acabaria destinada à exportação, devido às vantagens cambiais e de imposto.
Silvio destacou ainda que quando se considera os principais produtos necessários para o abastecimento interno, como arroz e feijão, vê-se que tiveram suas áreas de produção reduzidas, o que mostra que o mercado prioriza a soja e o milho.
O professor criticou a postura do governo, que deixou de formar estoque públicos de alimentos. “Quando a gente olha para os outros países, inclusive os Estados Unidos, tem lá um bom nível de estoque para garantir o abastecimento. O Brasil produz pouco, não dispõe de estoque, e o governo fica de expectador, qualquer problema que ocorra é a iniciativa privada que vai resolver”.
Ministério da Agricultura e CONAB
Para Guilherme Soria Bastos Filho, Secretário de Política Agrícola do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, há uma elevação dos preços de determinados produtos devido a uma conjunção de fatores: demanda internacional, aumento das exportações, desvalorização cambial e intempéries climáticas.
Segundo ele, existe monitoramento sistemático dos mercados domésticos para avaliar se há possibilidade de desabastecimento.
Guilherme defendeu que as exportações agrícolas possibilitam a disseminação de tecnologia e estimulam o aumento da produção e da produtividade e, por conseguinte, resultam em menores preços aos consumidores.
Para ele, existe uma expectativa de aumento de produção para a safra 2021/2022, o que pode contribuir com a redução e estabilização dos preços.
Sérgio de Zen, Diretor de Política Agrícola e Informações da Companhia Nacional de Abastecimentos, argumentou que existe uma defasagem tecnológica que impede o monitoramento eficiente de toda a produção nacional. Ele destacou que vem sendo realizado o desenvolvimento de um sistema informatizado que reúna informações que beneficiem pequenos, médios e grandes produtores e consumidores.
Desvalorização da agricultura familiar
Segundo Alair Luiz dos Santos, Secretário da Política Agrária da Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares (CONTAG), o avanço da fome é resultado do modelo de agronegócio exportador. “A gente percebe o grande avanço da fome. Isso é culpa de um agronegócio exportador que pensa na ampliação da produção, no aumento da produtividade para exportar, e não traz benefício para o povo brasileiro”.
“Nós passamos nesses últimos dois anos por uma forte desvalorização do papel da agricultura familiar brasileira. A agricultura familiar é que produz para garantir a alimentação interna, que produz alimentos que abastecem o mercado local, de grande importância para a mesa do brasileiro”, reforçou Alair.
Frei Sérgio Goergen, dirigente nacional do Movimentos dos Pequenos Agricultores (MPA), também destacou o abandono vivenciado pelos trabalhadores rurais. “As políticas públicas para os pequenos produtores, que são os que alimentam o mercado interno, que põem comida na mesa do povo brasileiro, estão em um abandono muito grande. Se não houver apoio aos pequenos produtores, os grandes não vão fazer o abastecimento do mercado interno. Um governo que não mantém estoques reguladores é um governo que não se dispõe a controlar preços e garantir o abastecimento”.
“Não dá para conviver com milhões de brasileiros passando fome em um país que se orgulha de ser um grande exportador de grãos. Não estamos questionando grandes e médios produtores, estamos dizendo que os pequenos agricultores, os agricultores familiares, precisam de apoio para colocar comida na mão do povo brasileiro”, reforçou Frei Sérgio.
Desigualdade social e desemprego
Bruno Lucchi, Superintendente Técnico da Confederação Nacional da Agricultura (CNA), argumentou que a fome é resultado da desigualdade e que o agronegócio seria parte da solução. “Qual é o problema hoje da questão da fome? É a distribuição de renda. O agro é uma parte dessa solução. Nós temos 14% de desempregados que não têm condições de comprar alimento, independente se estiver alto ou baixo. Entre abril e setembro do ano passado nós tínhamos 600 reais de auxílio emergencial, isso reduziu os índices de pobreza do Brasil. Mostra que a política pública de incremento de renda para a população é o caminho neste momento, ao invés de fazermos estoque em um país que produz muito alimento, vamos colocar dinheiro na veia da população, seja com o auxílio ou com a doação de cestas”, disse.
Programas eficientes e transversais
Para Cátia Grisa, Professora no Programa de Pós-Graduação em Dinâmicas Regionais e Desenvolvimento da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, o apoio aos agricultores familiares pode resultar em ganhos para toda a população.
“O IBGE tem mostrado a elevação da pobreza e da extrema pobreza e a gente tem um problema sério de saúde relacionado com o sobrepeso e a obesidade. É fundamental em um cenário de escassez de recursos que a gente pense em políticas que sejam eficientes. A gente viu experiências de governos estaduais com cestas verdes, que compravam alimentos da agricultura familiar, com produtos in natura, base para uma alimentação saudável, e distribuíam para a população em situação de vulnerabilidade. Experiências como essa poderiam estar gerando renda para a agricultura familiar e fomentando, promovendo a alimentação saudável”, destacou Cátia.
Parlamentares
O presidente da CDHM, deputado Carlos Veras (PT/PE), lamentou as dificuldades vivenciadas. “É muito triste ver os agricultores e agricultoras familiares enfrentando uma enorme dificuldade para poder viver no campo, para poder continuar produzindo e ajudando na garantia da soberania alimentar nesse país. É incontestável que a agricultura familiar é responsável por mais de 70% dos alimentos que vão à mesa do povo brasileiro”.
“A CONAB tem um papel fundamental na regulação dos preços, é um papel do Estado controlar a inflação, regulamentar os preços”, destacou Veras.
“Fui testemunha de um produtor no município de Exu que pegou a produção dele de macaxeira e teve que doar. O preço para poder colher era maior do que ele ia conseguir ao vender. Cadê o PAA? O PAA é essencial para que o trabalhador tenha onde comercializar o seu produto, não fique refém do atravessador”, reforçou.
“Espero que a partir dessa audiência a gente possa sensibilizar o Governo para garantir apoio, crédito, assistência técnica à produção e à comercialização desses trabalhadores e trabalhadoras. Nós temos apresentado uma proposição para que o Garantia Safra, o Seguro Safra seja liberado de imediato. O recurso vai gerar desenvolvimento no município. O dinheiro do trabalhador e da trabalhadora não vai para a bolsa de valores, vai para o mercado, para a farmácia. Espero que a gente possa encontrar caminhos para atravessar esse momento difícil que o Brasil tem vivenciado”, complementou o presidente da CDHM.
O deputado Padre João (PT/MG) também destacou que o enfraquecimento de programas como o Pronaf e o PAA vem impactando o abastecimento interno. “Nosso povo está vivendo na miséria e na fome, inclusive na zona rural. O PAA com menos de 80 milhões. Cadê a formação de estoques reguladores? Não existe. A realidade é de grande vulnerabilidade”.
“O Estado brasileiro está deixando o povo na miséria e da fome. Não lança mão das políticas reguladoras ou de um conjunto de programas para garantir o abastecimento. Se o Governo conseguisse pelo menos reconhecer essa realidade, dava pra gente ter esperança. Quando eu estou no caminho errado e não reconheço, não tem perspectiva de melhorar. A gente melhora e muda quando reconhece, e o Governo ignora a situação de miséria e de fome, o abandono das políticas que de fato fortalecem a agricultura familiar”, finalizou o parlamentar.
Fábia Pessoa/CDHM