CDHM debate extinção e alteração dos colegiados de participação popular

Participantes denunciaram desmonte do sistema de participação social no Brasil, com inúmeros impactos na formulação e acompanhamento de políticas públicas de diferentes áreas
15/07/2021 20h15

Captura e montagem: Fernando Bola/CDHM

CDHM debate extinção e alteração dos colegiados de participação popular

A Comissão de Direitos Humanos e Minorias debateu nesta quarta-feira (14) em audiência pública a extinção e alteração dos colegiados de participação popular, realizadas por meio do Decreto 9759/2019.

A audiência contou com a participação de membros e ex-membros de colegiados de diferentes áreas, como Meio Ambiente, Psicologia, Segurança Alimentar e Nutricional, população LGBTQIA+, crianças e adolescentes, entre outros. Os participantes reforçaram a importância dos colegiados e denunciaram que o Decreto impactou negativamente a participação social na formulação e monitoramento das políticas públicas.

“Estamos diante de um verdadeiro desmonte do sistema democrático e participativo que vinha se consolidando no país, desde a Constituição Federal de 1988”, afirmou Ana Sandra Fernandes, presidenta do Conselho Federal de Psicologia (CFP), órgão que perdeu assento no Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (CONAD).

Ana Fernandes explicou que o CFP, junto com outras entidades profissionais e organizações da sociedade civil, foi retirado da composição do CONAD por meio do Decreto. O Conselho é responsável por aprovar, reformular e acompanhar o Plano Nacional de Políticas sobre Drogas, por acompanhar diretrizes para prevenção do uso indevido, pela atenção à reinserção social de usuários e dependentes de drogas, entre outras competências.

Fernandes afirmou que o Decreto 9759 promoveu no âmbito do CONAD o negacionismo científico. “Proibir o Conselho Federal de Psicologia de contribuir com as políticas nacionais sobre drogas é negacionismo científico e uma afronta à Lei 5766, que nos institui nesse lugar de órgão consultivo do Estado brasileiro em matéria de psicologia”, disse.

Ela reforçou que o desmonte do CONAD desconfigurou a Política Nacional de Drogas, fazendo com que caminhasse para um financiamento público das comunidades terapêuticas, e o consequente esfacelamento da Rede de Atenção Psicossocial e sucateamento dos Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS AD).

“Expulsaram a ciência, expulsaram as trabalhadoras e os trabalhadores, expulsaram quem precisa ser atendido e amparado pela política sobre drogas. Então, quem e quais interesses estão conduzindo as políticas sobre drogas no atual governo?”, questionou Ana.

 

Combate à fome

“A extinção do CONSEA significa virar a página do combate à fome em nosso país, é virar a página do Fome Zero, significa a desestruturação do SISAN (Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional)”, lamentou Anderson Santos, representante da Via Campesina no Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), extinto por meio do Decreto.

Anderson Santos afirmou que a Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional (CAISAN), responsável pela coordenação e pelo monitoramento das políticas públicas relacionadas à segurança alimentar e nutricional, ao combate à fome e à garantia do Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA), também teve seu escopo reduzido a um papel burocrático, sem nenhum diálogo com a sociedade civil.

Ele destacou que com a extinção do CONSEA a sociedade civil vem se organizando e realizando conferências populares como forma de resistência.

“O resultado de tudo isso é o retorno das pessoas para a situação de fome, é o retorno do Brasil pro mapa da fome. A gente chegou a 4,2% de pessoas em insegurança alimentar e estamos agora com 19 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar grave e mais da metade da população brasileira em insegurança alimentar leve”, disse, afirmando que o Brasil perdeu durante a pandemia instrumentos fundamentais que pudessem atuar na questão de segurança alimentar.

 

Esvaziamento dos colegiados

Ariel Castro Alves, ex-conselheiro do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, afirmou que o CONANDA também sofreu com esse processo: teve a quantidade de membros reduzida,  sua forma de eleição alterada, encontros mensais inviabilizados mesmo antes da pandemia.

“Essa intervenção arbitrária, antidemocrática, acabou inviabilizando uma série de trabalhos e atividades, inclusive a própria Conferência Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente”, relatou.

Alves destacou que foi a atuação do Supremo Tribunal Federal, em resposta à ação da sociedade civil, que permitiu que o CONANDA continuasse em funcionamento, garantindo os mandatos que haviam sido cassados, reuniões mensais, custeio dos deslocamentos e a eleição da mesa diretora por meio do colegiado.

Carlos Bocuhy, ex-conselheiro do Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA), demonstrou preocupação com o futuro e as vulnerabilidades sociais e ambientais brasileiras.  Segundo ele, relatório do IPCC, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, previsto para 2022, aponta para o aumento de um grau e meio na temperatura global até 2050, o que era esperado para 2100.

“Nós temos que ter políticas públicas, participação social, temos que garantir essa qualidade na defesa ambiental para que se possa fazer frente a um estágio de intensa vulnerabilidade que vai se apresentar cada vez mais para o Brasil”, afirmou, destacando que a atual crise hídrica já faz parte desse quadro desafiador.

“O Brasil é detentor de 20% da biodiversidade do planeta. O CONAMA estabelece políticas públicas para a área ambiental, mas, mais do que isso, ele estabelece toda a normativa sobre qualidade ambiental. Então, é fundamental que o Conselho tenha uma participação social muito efetiva”, defendeu.

Carlos Bocuhy apontou que o Decreto não conseguiu extinguir o CONAMA por ser previsto em lei, mas o desfigurou a ponto de neutralizar a sociedade civil, alterando a representação dos biomas e regiões e eliminando a participação da ciência, dos trabalhadores e das populações tradicionais. Bocuhy sugeriu que houvesse uma articulação para instituir os conselhos por lei.

Danielle Brígida, Presidenta eleita do Conselho Nacional de Combate a Discriminação LGBT+, destacou que foi a participação social que permitiu a formulação de políticas públicas para a população LGBTQIA+. “Se hoje o SUS tem atendimento para a nossa população, é porque existiu participação social”.

“A nossa população ainda precisa que essas políticas avancem muito e tudo que a gente tem visto é retrocesso. A nossa população ainda é marginalizada, ainda está fora do ensino regular, ainda não consegue o atendimento básico na saúde. A nossa população nunca saiu do mapa da fome”, afirmou, destacando que os dados produzidos, mas não divulgados pelo governo, apontam a dificuldade de acesso dessa população às políticas.

“A partir do momento que o governo se ausenta das suas responsabilidades ele também é responsável pelas nossas mortes”, finalizou Danielle.

Diva Santana, da Comissão Especial sobre mortos e desaparecidos políticos, afirmou que o colegiado também sofreu desmonte, lembrou que a Presidente da Comissão, a promotora federal Eugênia Gonzaga, foi destituída em 2019, juntamente com mais três conselheiros.  Ela destacou que as substituições não cumpriram o orientado pela Lei 9040/1995, que criou a Comissão e designa a participação de um representante do Ministério da Defesa, e que atualmente dois representantes do Ministério estão no conselho.

A representante destacou que a Comissão vem funcionando precariamente, e que existiria interesse em acabar com a instituição, além de dificuldade para ter acesso a informações sobre a continuidade de importantes trabalhos, como a investigação de ossadas do cemitério de Perus, que trariam respostas às famílias que tiveram desaparecidos.

Lucia Secoti afirmou que o Conselho Nacional do Idoso (CNDI) também sofreu desmonte e foi descaracterizado. “A gente não tem controle social nenhum na pandemia no segmento da pessoa idosa, nem em outros segmentos”. Secoti pediu apoio ao PL 4249/2020, que dispõe sobre a Política Nacional do Idoso, para definir a composição e funcionamento do CNDI, e ao PDL 454/2019, que susta o decreto que alterou o Conselho.

A representante do CNDI ainda lamentou a ausência de relatórios do Disque 100, que eram gerados anualmente, impossibilitando o acompanhamento das denúncias.

 

A construção da participação social  

A pesquisadora da Universidade de Brasília Débora Rezende desconstruiu os argumentos utilizados pelo governo na época para justificar a extinção dos conselhos, como a acusação de distorção da representação e da participação, burocratização da administração e o alto custo para Estado.

Sobre o argumento da distorção, ela destacou que os colegiados são resultado da luta de vários atores desde a redemocratização do Brasil. “São frutos de debates intensos durante a Constituinte sobre como seria possível reverter nossa história autoritária e excludente, que  não incluía a vontade e a participação social”, disse, destacando que antes esse debate estava concentrado nas elites.

Débora rebateu o argumento de burocratização afirmando que a participação não causa disfunção ao Estado e que várias pesquisas comprovam que a atuação conjunta entre governo e sociedade civil resulta em políticas mais inovadoras.

“As políticas sociais que conhecemos hoje são frutos dos movimentos da sociedade civil. O SUS nasce de uma conferência nacional e depois é implementado a partir de normativos pensados nos conselhos. O SUAS também é desenhado em conferências e conselhos. A política nacional de segurança alimentar nasce do controle social nos conselhos. E tudo isso está em risco hoje”, afirmou, falando que políticas melhores formuladas custam menos ao Estado.

A pesquisadora destacou ainda que mesmo durante a pandemia o Conselho Nacional de Saúde tem sido enfraquecido, com redução de recursos e tendo suas resoluções desconsideradas, apesar de o Conselho ser o órgão máximo de deliberação na área.

 

Preceito Constitucional

“O que está acontecendo hoje no Brasil é um desmonte do pacto federativo. É um desmonte do pacto republicano estabelecido em 1988. A única justificativa para este ato é a incapacidade do governo de dialogar com aqueles que pensam diferente do seu projeto. E não aceitar o conflito político, que é central para democracia, coloca em sérios riscos à democracia no Brasil”, afirmou Débora.

 

Para Mônica Alckmin, membro da mesa diretora do CNDH e Coordenadora da Comissão Especial sobre Participação Social, o Decreto é parte de uma escolha por uma estratégia não democrática.

“Quando a gente fala do ataque a essas políticas, nós estamos falando do ataque à estrutura democrática do país. Essas medidas, esses posicionamentos, a dificuldade de dar transparência impacta especificamente na democracia do país”.

Para Mônica, é fundamental denunciar a gravidade do cenário ao Legislativo e às instâncias internacionais. “A perda da democracia de um país com a dimensão política e territorial do Brasil vai impactar no mundo”.

Para o pesquisador da Unicamp Wagner Romão, a participação da sociedade civil foi cerceada a partir da edição do Decreto. Romão apresentou estudo de como o Decreto impactou de diferentes formas os colegiados, desde a quantidade de participantes, a forma de escolha dos integrantes, que acontecia por eleição, a periodicidade dos encontros, afetando também os conselhos nos estados e municípios.

Para o deputado Helder Salomão (PT/PE), ex-presidente da CDHM, que presidiu a audiência, as medidas causam impactos severos e graves com relação à participação social no Brasil. “Não é uma escolha de governo, é um preceito constitucional, é um princípio democrático. Então, cabe aos governos cumprirem princípios democráticos e preceitos constitucionais”, afirmou.

A audiência contou ainda com a participação dos parlamentares Erika Kokay (PT/DF) e Frei Anastácio Ribeiro (PT/PB).

 

Fábia Pessoa/CDHM