Audiência pública reforça a necessidade de medidas de proteção dos povos indígenas contra a Covid-19

Audiência conjunta entre a CDHM e a Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas foi presidida pela deputada Joenia Wapichana, primeira mulher indígena eleita parlamentar.
20/04/2021 08h55

Captura e montagem: Fernando Bola/CDHM

Audiência pública reforça a necessidade de medidas de proteção dos povos indígenas contra a Covid-19

Realizada nesta segunda-feira, 19 de abril, data em que os povos indígenas celebram sua trajetória de resistência, a audiência conjunta remota teve como foco a imunização de povos que vivem fora de aldeias, em áreas rurais, nas periferias dos centros urbanos e em áreas que aguardam demarcação, excluídos do Plano Nacional de Vacinação (PNI) contra a Covid-19 do Governo Federal.

 “É importante lembrar e repetir o que estabelece o artigo 196 da nossa Constituição Federal de 1988: a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”, disse o deputado e presidente da CDHM, Carlos Veras, ao iniciar o encontro, e passar a presidência da audiência para a deputada Joenia Wapichana.

 “Essa audiência pública é de extrema importância. Hoje é considerado o Dia do Índio. Nesta pandemia, a situação dos povos indígenas do Brasil é altamente crítica. Desde o início, em março de 2020, até o presente momento, já foram contabilizados cerca de 52.494 casos confirmados, e 1039 indígenas mortos em 163 povos afetados, segundo dados do Comitê Nacional de Memória e Vida Indígena”, apontou a parlamentar. A deputada lembrou que a lei 14.021/20 reforça a necessidade de um plano de enfrentamento à Covid que proteja povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais.

 “Quero saudar os povos indígenas nesta data, pela reafirmação de direitos, de identidade, de resistência na luta, que já vem se arrastando há mais de 521 anos e que tem colocado os povos indígenas como protagonistas na defesa de seus direitos e buscado sensibilizar a sociedade brasileira. Os povos indígenas têm encarado esse processo de colonização que ainda não terminou, constantemente nós vemos projetos afrontando direitos constitucionais. Existe muito a ser consolidado. Neste mês de abril, todo o movimento indígena está voltado a viabilizar a situação dos povos indígenas, suas demandas, propostas e soluções”, complementou a parlamentar, lembrando que em tempos normais o “abril indígena” lotaria presencialmente espaços como as comissões da Câmara dos Deputados e outros ambientes de discussão política.

 

Ministério Público

Gustavo Kenner, Procurador da República e membro do Grupo de Trabalho Saúde Indígena da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal, focou na questão dos indígenas de áreas urbanas, que não estão sendo vacinados. Ele relembrou que em Santarém, no Pará, a primeira indígena morta pela Covid estava em contexto urbano e em situação de vulnerabilidade. Tratava-se de uma anciã importante para o povo Borari. “Esse critério de exclusão dos indígenas em áreas urbanas parte de um equívoco de vincular uma identidade indígena e as suas condições à territorialidade. Você deve vincular para ampliar direitos, e não para restringir”, argumentou.

 O procurador explicou que muitas vezes essas pessoas saem de seus territórios para ampliar a luta pelos seus direitos, indo para as universidades e para outros empregos, por exemplo. Os indígenas urbanos atuam como pontes entre as aldeias, evitando que muitas pessoas precisem ir até a cidade para receber benefícios, por exemplo, com o objetivo de proteger a comunidade.

 

Cobertura Vacinal e fake news

Em Santarém, uma ação judicial garante o atendimento a todos os indígenas, mas a divulgação de fake news pode estar prejudicando a cobertura vacinal. Segundo o procurador, existem informações sobre uma sistemática propagação de fake news entre os indígenas. As fake news seriam difundidas por madeireiros, garimpeiros e alguns missionários que estariam repassando informações de que as vacinas causam mutações - e isso se soma à relutância natural dos povos indígenas, depois de tantos ataques, quanto à ação do Estado para garantir a prioridade de algo positivo e benéfico.

 

Alta vulnerabilidade indígena

Ana Lucia de Moura Pontes, da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO), apresentou dados que indicam que o risco de exposição é maior entre os povos indígenas.

 “Na mesma localidade, comparando cor ou raça, se identificou que populações indígenas têm até cinco vezes mais chances do que pessoas brancas de terem sido expostas à Covid-19. Isso é uma chance de até 87% a mais que uma pessoa branca na mesma localidade”, apontou Ana Lúcia, a partir de um estudo da Universidade Federal de Pelotas.

 Análise parcial por faixa etária, considerando até setembro de 2020, indicou que a mortalidade indígena é maior do que em não-indígenas. Em todas as faixas etárias, com exceção da entre 30 e 39 anos, a mortalidade indígena é pelo menos 50% maior que a dos não-indígenas, chegando a ser sete vezes maior entre zero e nove anos de idade.

 

Vítimas e perdas irreparáveis

Antônio Eduardo Cerqueira de Oliveira, do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), lamentou os ataques que retiram direitos de povos indígenas.

 “Os povos indígenas no Brasil já há alguns anos vêm lamentando a precarização do atendimento à saúde, principalmente nas aldeias. Esse atendimento vem sofrendo intervenções, no sentido de retirar desses povos esses direitos. Uma delas foi a desarticulação do Mais Médicos, precarizando ainda mais o serviço. As comunidades indígenas não têm sido ouvidas, então, quando a Covid chega ao Brasil, ela pega as comunidades totalmente desprovidas, uma vez que se soma ao contexto de violências contra as suas vidas e seus territórios”, reforça Antônio Eduardo.

 Segundo ele, a pandemia evidenciou a precariedade das condições já existentes. “Não há água potável, habitações são precárias, falta profissionais de saúde e equipamentos médicos, muitas comunidades passaram a ser assoladas pela fome. O quadro é dramático. A contaminação chegou às aldeias, vitimando os sábios, os anciões, deixando sequelas que serão sentidas por muitos anos. Os povos originários estão perdendo bibliotecas inteiras de conhecimentos e saberes tradicionais”, relata. Antônio apontou ainda que a presença de invasores nos territórios contribui para a contaminação das comunidades, principalmente as que estão em regiões de isolamento, como os Yanomami.

 Douglas Rodrigues, do Projeto de Xingu, apresentou dados sobre a cobertura vacinal, que deveria alcançar indígenas em contexto urbano, e também reforçou a necessidade de mais agilidade na instalação de barreiras que protejam essas comunidades. “A gente está deixando uma porta de entrada aberta para o vírus dentro das comunidades. Em relação aos isolados, as barreiras estão sendo instaladas de forma muito lenta, muito desarticulada, não existem protocolos, um monitoramento. Quando você junta a estratégia de barreiras com essas outras medidas, isso nos deixa em uma situação muito preocupante”, afirmou.

 

Estratégia ineficaz

Para Dinamam Tuxá, da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB, as informações sobre o andamento da vacinação estão sendo repassadas de forma distorcida pelos entes do Estado. “A estratégia de vacinação não está sendo eficaz, há janelas, abre precedente para que o vírus chegue. Existem indígenas em trânsito, que moram no perímetro urbano, mas que têm relação direta com a comunidade. Se não houver imunização de 100% da população indígena, há o risco iminente de contaminação”, apontou.

 Para Dinamam, é fundamental um plano que contemple a realidade dos povos indígenas, atendendo a todos os indígenas que habitam o território nacional.

 

Violações de direitos

Para Elaine Moreira, integrante da Comissão de Assuntos Indígenas da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), a pandemia chegou ao país em um cenário já marcado por uma série de retrocessos na política indigenista, com cortes de orçamento, a não demarcação de territórios nos últimos três anos e a entrada de profissionais sem experiência na FUNAI, que não vem atuando de acordo com seu papel institucional.

 Elaine elencou uma série de situações que devem ser apuradas: a notícia de troca de vacina por ouro na terra Yanomami, fake news que se espalham pelo território nacional, distribuição de cloroquina sem outro acompanhamento de remédios que, combinados, são usados no combate à malária. Segundo Elaine, existe aumento de casos de malária no distrito Yanomami e na região do leste de Roraima, e falta medicação para o tratamento.

 A integrante da ABA também falou sobre a necessidade de vacinar toda a população indígena, bem como a realização de campanha de informação voltada para esses povos sobre a vacina, os intervalos e cuidados necessários e a proteção integral das comunidades indígenas isoladas.

 

Histórico

De acordo com censo realizado pelo IBGE em 2010, dos 896,9 mil indígenas, 517.383 mil (57,7%) vivem em terras indígenas (TIs) e 379.535 mil (42,3%) vivem em cidades ou na zona rural, em terras indígenas que estão nas primeiras etapas do processo de demarcação.

 Em resposta à ADPF 709, da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e de seis partidos políticos para garantir a vacina contra a Covid-19 para todos os povos indígenas, independente do contexto territorial, o STF determinou que seja assegurada prioridade na vacinação aos povos de terras não homologadas e urbanos sem acesso ao SUS, em igualdade de condições com os demais povos indígenas.

 O requerimento para audiência foi realizado pela deputada e presidente da Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas, Joenia Wapichana (REDE-RR), e contou com o apoio dos parlamentares Erika Kokay (PT-DF), Camilo Capiberibe (PSB-AP), Frei Anastácio (PT-PB), Helder Salomão (PT-ES), Padre João (PT-MG), Sâmia Bomfim (PSOL-SP), Sóstenes Cavalcanti (DEM-RJ) e Vivi Reis (PSOL- PA).

 

Fábia Pessoa/CDHM