Audiência pública reforça a importância da regularização migratória durante a pandemia da Covid-19
A Comissão de Direitos Humanos e Minorias debateu nesta quarta-feira (4) a regularização migratória e o fechamento de fronteiras no contexto da pandemia da Covid-19.
A audiência pública, presidida pelos parlamentares Carlos Veras e Fernanda Melchionna (PSOL/RS), contou com a participação de representantes do Ministério da Justiça, da Polícia Federal, de pesquisadores do tema, de organizações da sociedade civil, entre outros. Representantes da Casa Civil* e da Caixa, convidados para o debate, não compareceram.
“Direitos humanos não têm fronteiras, nem direitos sociais”, afirmou a deputada Fernanda Melchionna.
Flavio Diniz, diretor substituto do departamento de migrações do Ministério da Justiça, argumentou que o próprio enfrentamento à pandemia afetou o fluxo migratório. Flavio apontou que as portarias que limitam as migrações foram editadas de forma excepcional e temporária por recomendação da Anvisa, e que já estariam sendo flexibilizadas. “Mas a política migratória nacional não foi alterada, ela está passando por um momento mundial muito difícil. Inclusive essa última portaria, a 655, conseguiu um avanço, que foi o retorno da operação Acolhida, para o fluxo venezuelano”, disse.
O Delegado de Polícia Federal André Zaca Furquim, da Coordenação-Geral de Polícia de Imigração do Ministério da Justiça, explicou que as fronteiras terrestres estão fechadas e que os modais marítimos e aéreos seguem regras específicas. “As pessoas que violam essas portarias e acabam passando a fronteira terrestre sem permissão não estão sujeitas à regularização migratória. É uma consequência da portaria, e a Polícia Federal, como executora da polícia de migração, não tem como de forma discricionária interpretar isso de maneira diferente”, afirmou, indicando que seria algo excepcional devido às razões sanitárias.
“Esse universo de pessoas era muito maior, até a publicação da Portaria 655, no dia 23 de junho. A grande novidade dessa portaria é a reabertura da fronteira com a Venezuela para fins de acolhimento”, disse, informando que a regularização dessa parcela migrante significativa pode ser retomada. O delegado informou ainda que a instituição estuda a realização de mutirões para dar conta da demanda reprimida.
Aumento das desigualdades
Jobana Moya, da Campanha Regularização Já, reforçou que o fechamento das fronteiras e a não regularização migratória ampliou as desigualdades e dificultou o acesso aos serviços públicos.
“Também é do nosso interesse o desenvolvimento do Brasil, somos parte desse território. E para isso precisamos estar regularizados, precisamos que entendam que é um direito humano o direito a migrar, e que não podemos permitir que sigam fechando as fronteiras”.
“Nós não somos números, somos pessoas, estamos aqui. Queremos ter uma cidadania plena”, reforçou Jobana, defendendo a aprovação do PL 2699, da bancada do PSOL, e do PDL 344, da senadora Mara Gabrilli.
Fechamento ambíguo
Para o Procurador Regional da República André de Carvalho Ramos, Coordenador do GT Migração e Refúgio da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, é fundamental que haja respeito aos tratados internacionais, especialmente ao Estatuto dos Refugiados
André de Carvalho destacou que a Lei da Pandemia não estabeleceu as sanções de restrições vistas nas portarias e apontou que o fechamento realizado no Brasil foi ambíguo, pois permite o ingresso aéreo.
Para o Procurador, as portarias contrariam a Lei da Pandemia, a Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados e a Lei de Migrações e geram uma situação de desamparo.
“A lei de imigração estabelece procedimentos administrativos, justamente para que seja observado o devido processo legal, a ampla defesa ao contraditório, não existe deportação sumária. Essas inovações em portaria, do meu ponto de vista, desrespeitam o Estado Democrático de Direito”, finalizou defendendo a revogação da portaria e o respeito aos tratados.
João Chaves, do Grupo de Trabalho Migrações, Apatridia e Refúgio da Defensoria Pública da União de São Paulo, destacou que foram editadas 31 portarias com restrições de entrada nos diversos modais com base na Lei da Pandemia, mas que ao longo do tempo as portarias adotaram medidas que violam direitos das pessoas migrantes, como a deportação imediata, a inabilitação do pedido de refúgio e a aplicação de multas.
“A lei da Covid não justifica e não permite a suspensão do direito de refúgio e a deportação imediata, esses institutos não têm amparo na legislação brasileira”.
Ele destacou ainda que depois de um ano de pandemia já foi verificado que medidas radicais de fechamento de fronteiras não são eficientes para controlar o vírus e não podem servir como álibi para uma política migratória de exceção.
“Essas medidas não impediram a entrada de dezenas de milhares de pessoas, especialmente venezuelanas, que passaram um ano e três meses impedidas de ter documentos, com dificuldade de trabalho e de acesso a serviços”, afirmou Chaves. O Defensor reforçou que isso contraria a Lei de Migração aprovada pelo Parlamento brasileiro em 2017, e cria em pleno 2021 um bolsão de migração irregular, aumentando a invisibilização e a vulnerabilização de pessoas migrantes.
Violação de direitos humanos
Camila Asano, da Conectas Direitos Humanos, lembrou que a lei de migração brasileira é considerada um modelo para o mundo. Para ela, a pandemia vem sendo utilizada como argumento para retirar direitos, permitindo que o Estado escolha o perfil socioeconômico autorizado a entrar no país, minando o devido processo legal e gerando aumento de 5000% das deportações em 2020.
Para Asano, as medidas geram medo e insegurança nos migrantes, que ficam expostos a situações de vulnerabilidade, como a exploração do trabalho análogo à escravidão, a dificuldade de locação de imóveis e o acesso à saúde.
A regularização é uma forma de proteger o acesso a direitos”, afirmou, defendendo também a aprovação dos PL 2699/2020, que trata da regularização emergencial, e 7876, com a redação original do deputado Orlando Silva sobre anistia, além do Projeto de Decreto Legislativo que susta a parte violadora de direitos humanos da Portaria 655.
“A consequência direta da dificuldade de realizar a regularização documental impõe a colocação desses cidadãos e cidadãs à condição de ilegalidade e irregularidade”, falou Elton Bozzetto, do Fórum Permanente de Mobilidade Humana (FPMH), citando as inúmeras dificuldades vivenciadas por essas pessoas.
Elton exibiu depoimentos de dois migrantes que apontam a dificuldade enfrentada no mercado de trabalho, demonstrando que a falta de documentação impede migrantes de conseguir trabalho e que muitos estariam perdendo seus postos de trabalho.
“Os atos normativos do governo federal estão sendo seletivos, a portaria 655 regularizou quem já tinha entrado, e no caso os venezuelanos, ou seja, as portarias setorizam por nacionalidade, em um flagrante objetivo de supressão dos direitos humanos”, concluiu Bozzetto, reforçando que a não regularização expõe essas pessoas a trabalhos análogos à escravidão. Demandou também a revogação da portarias seletivas e ampliação dos quadros da polícia federal voltados ao atendimento de migrantes.
“Em alguns casos as pessoas migrantes foram consideradas ameaças à segurança nacional, representando potenciais transmissores do vírus, por mais que o novo coronavírus já estivesse no país”, denunciou Handerson Joseph, professor da UFRGS.
O pesquisador citou que segundo estimativas são cerca de 60 mil refugiados no Brasil e que mais de 30 mil pessoas teriam morrido ou desaparecido em rotas inseguras de migração.
Handerson lamentou a saída do Brasil do Pacto Global para Migração Segura, Ordenada e Regular, da Organização das Nações Unidas (ONU), e lembrou a fala de representante da Organização, afirmando que “a migração é uma fonte de prosperidade, inovação e desenvolvimento sustentável em um mundo moderno e globalizado”.
“Vidas migrantes importam. Vidas migrantes com direitos importam. Na semana passada comemoramos 70 anos da Convenção de Genebra de 1951, comemorá-la é também agir com humanidade e respeito com os migrantes e refugiados, tomando medidas efetivas em prol dos direitos humanos”, finalizou.
Participação de parlamentares
O deputado Orlando Silva (PCdoB/SP) defendeu a revogação da portaria e apontou que a Lei de Migrações, relatada por ele em 2017, pôs fim ao estatuto do estrangeiro, que tinha uma lógica restritiva e não reconhecia o direito humano à migração. “A migração existe desde que o mundo é mundo, é parte da história, é base da nossa formação enquanto nação”.
“Se é fundamental garantir a migração como direito, em um ambiente de pandemia é ainda mais importante. Nós deveríamos ser uma nação mais solidária, deveríamos estar mais abertos para colaborar, oferecer oportunidade diante de um momento de desastre que a humanidade vive”, declarou o parlamentar.
“Quando você não tem a regularização da situação, você cria as condições para a violação de outros direitos. Aí vamos ter o trabalho análogo ao trabalho escravo, o não acesso aos serviços públicos, ao auxílio emergencial. Você vai tendo uma cadeia de violações de direitos que vai se impondo a partir da negação do direito à migração”, afirmou a deputada Érika Kokay, reforçando que estamos vivendo um processo de retirada de direitos dos migrantes e um desrespeito à legislação brasileira.
Fábia Pessoa/CDHM
*Erramos. Durante a audiência mencionou-se, por equívoco, que o Ministério da Cidadania não compareceu, mas esse órgão não foi convidado para o evento. A informação correta é que a Casa Civil foi convidada, mas não enviou representante.