Alimentação, ritos e tradições
O recurso em análise no STF foi feito pelo Ministério Público estadual contra decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que declarou a constitucionalidade da Lei 2.131/2004. A norma acrescentou ao Código Estadual de Proteção de Animais gaúcho a possibilidade de sacrifícios de animais, destinados à alimentação humana, dentro dos cultos religiosos africanos. Já para o MP-RS, a lei invade a competência da União para legislar sobre matéria penal, e privilegia os cultos das religiões de matriz africana para o sacrifício e ritual de animais. Ainda de acordo com o MP gaúcho, isso ofenderia a isonomia e iria contra o caráter laico do país.
“Alguém já viu a Justiça preocupada com abate de animais para a alimentação de judeus e muçulmanos”? Questiona a procuradora federal dos Direitos do Cidadão, Deborah Duprat, um dos participantes do encontro da CDHM.
“Podíamos falar de muitas convenções ou instrumentos jurídicos, mas o certo é que que as práticas religiosas são perseguidas. Será que o grande problema é o abate de uma ave criada sem ver a luz e sem voar, ou questões ambientais? Esse problema existe porque é uma prática que vem da diáspora africana. Também querem proibir velas e flores no mar, nas homenagens à Iemanjá, como se esse mar não estivesse cheio de plástico e óleo. Vamos parar com a hipocrisia. Queremos saber como ficará a liberdade religiosa neste país”, pontua Débora Duprat.
“Difícil mesmo foi ser carregado da África”
Regina Nogueira, do Fórum Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional dos Povos Tradicionais e Matriz Africana, vai na mesma direção.
“O sistema não se dobra, ele pensa e se refaz através das leis e do judiciário. Os povos resistiram com sua língua e tradições. A nossa alimentação é um ritual e também um ato doméstico, sem nenhum tipo de sofrimento animal. Querem que a gente consuma o alimento que dá lucro. Queremos direito a uma alimentação de quantidade e adequada ao que acreditamos. E isso é garantir que se cumpra a Constituição brasileira. Não queremos ser franqueados pelo Estado, muito menos orientados por deputados de um Congresso fundamentalista. Tradição alimenta, não violenta. Difícil mesmo foi ser carregado da África”, afirma Regina.
O procurador geral da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, Fernando Bolzoni, considera que intervir nas tradições dos povos de matriz africana, é invadir a coisa mais íntima de uma pessoa, que é a maneira de se relacionar com o divino, ou até não se relacionar. “ Essa decisão que hoje está no STF, do sacrifício de animais em cultos, começou lá no Rio Grande do Sul, em 1991. No fundo, não é uma preocupação com a proteção dos animais, mas sim perseguição religiosa, querer dizer como as pessoas devem manifestar suas crenças. Isso é inadmissível”, considera.
A presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar, Elizabetta Recine, destaca a riqueza e a sabedoria do Brasil para formular políticas públicas de segurança alimentar.
“Hoje, temos a volta da fome ao Brasil, e para tentar resolver esse problema, temos que ouvir todos os segmentos para compactuar estratégias comuns e prioritárias. Os modos de comer, de preparar a comida, fazem parte da nossa ancestralidade, sejam quais forem. Temos que ouvir os diversos segmentos da população, e aí todas as diferenças estarão respeitadas para construir políticas públicas. Ouvir camponeses, mulheres, quilombolas, agricultores, índios, negros e misturar as nossas compreensões”, reflete Elizabetta.
Bater os tambores e ir à luta
“São grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem dessa forma. Têm formas próprias de organização social, ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para se reproduzir de forma cultural, social, religiosa e econômica. Além disso, usam conhecimentos, inovações e práticas de geração em geração”, esclarece a deputada Erika Kokay (PT/DF), que pediu a realização do debate.
“ Esse povo de terreiro enfrenta toda sorte de discriminação, mas bate os tambores e vai à luta. Estamos falando não apenas da religião, mas também de espaços de alimentar a fome de pão, de justiça, de beleza e de direitos. Estamos falando de geração de renda, trabalho, respeito e homenagem à dignidade humana. O Estado persegue e consolida a discriminação”, conclui Erika.
Também participaram do encontro Rafael Moreira, da Federação de Umbanda e Candomblé de Brasília e Entorno e Maria Dolores de Lima e Silva, da Teia Nacional Legislativa dos Povos Tradicionais de Matriz Africana.
Histórico
O decreto 6.040 de 2007, do governo federal, instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT). O decreto prevê, entre outros pontos, que a visibilidade dos povos e comunidades tradicionais aconteça através do pleno exercício da cidadania, do direito à segurança alimentar e nutricional, do desenvolvimento sustentável para promover a melhoria da qualidade de vida, tanto econômica como cultural.
Pedro Calvi / CDHM