“São Francisco vivo, território pesqueiro livre”

Com essas palavras de ordem começou a audiência pública desta quinta-feira (12), sobre os conflitos fundiários no Norte de Minas Gerais e as violações aos direitos territoriais dos povos das águas. Pelo menos quinze comunidades em nove municípios enfrentam conflitos com casos de violência e até assassinatos. São comunidades de povos tradicionais, como pescadores artesanais, vazanteiros, geraizeiros e quilombolas. O encontro foi promovido pela Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados (CDHM), em parceria com a Comissão de Fiscalização Financeira e Controle (CFFC). São comunidades que já cumpriram as exigências técnicas para ter direito à terra, mas as ações ficam paradas na Secretaria do Patrimônio da União (SPU), enquanto os despejos continuam através de liminares na Justiça.
12/07/2018 15h45

Foto: Fernando Bola

“São Francisco vivo, território pesqueiro livre”

 “As comunidades em situação de conflito nas barrancas do Rio são Francisco, vivem uma violência crescente. O latifúndio vem aumentando e retomando espaço. As comunidades estão amparadas na Constituição, têm direito à terra, mas a Secretaria do Patrimônio da União não faz o que deveria fazer”, aponta Neuza Francisca do Nascimento, da Comissão Pastoral da Terra de Minas Gerais.

Neuza informa ainda que, durante a enchente de 1979, os povos que moravam nas margens do Rio São Francisco tiveram que sair do local e, ao voltar, foram barrados pelos fazendeiros e nunca mais puderam retornar. “Hoje, os fazendeiros usam aparatos judiciais e policiais para ações de posse. O povo das barrancas está desprotegido, sem condições jurídicas, políticas e até de educação. Além disso, os conflitos, que são coletivos, passaram a ser individualizados. Pescador tem casa destruída com trator e até vazantes são envenenadas para forçar a saída das famílias”, denuncia.

Letícia Rocha, da Comissão Pastoral da Terra de Montes Claros (MG), apresenta números sobre a violência no campo. O relatório da CPT de 2017 mostra que nesse ano houve o maior número de assassinatos em conflitos no campo dos últimos 14 anos, com 71 assassinatos. Dez a mais que no ano anterior. Desses, 31 foram chacinas, o que corresponde a 44% do total. Os massacres aconteceram no Mato Grosso, Pará, Tocantins, Bahia e Amazonas. “Por trás dos números tem o drama social de famílias privadas dos seus direitos por causa desse modelo arcaico do latifúndio e bens públicos como commodities”, observa Letícia.  

A representante do Movimento dos Pescadores e Pescadoras Artesanais do Brasil e da Articulação Nacional das Pescadoras, com sede em Januária (/MG), Enedina dos Santos, testemunhou ameaças. “Nós somos uma comunidade tradicional, vivemos da terra ou da água e não temos outro lugar para trabalhar. Recebemos ameaças todos os dias, por telefone, por terceiros ou de dentro de carros que passam. Somos um povo fraco no financeiro, mas forte na batalha. Não temos acesso a nada, ainda usamos candeeiro, nem luz temos”!

“Desculpe não ter palavras bonitas, sou quase um analfabeto, essa casa aqui eu só conheço através da televisão. O governo não quer reconhecer nós. O que eu sei fazer é o que meus pais ensinaram, plantar mandioca, feijão de corda, que dá um tropeiro gostoso. Se eu for pra cidade que serviço sobra pra mim? Uma vassoura pra limpar e tem que ter segundo grau completo. Quando vou ter segundo grau completo? Só quero cuidar dos meus filhos lá no lugarzinho que eu tô” Cleber Santana, Comunidade Barrinha

Paz no campo, mas só nome

Criado com pretexto de defender a paz no campo, foi criado um movimento nacional justamente com esse nome, Paz no Campo. Porém, denunciam os participantes da audiência, virou um movimento de insegurança no campo. Segundo as lideranças dos movimentos sociais, milícias armadas atuariam sob a liderança de latifundiários e ameaçam transformar a zona rural do Norte de Minas em uma zona de guerra.

Uma denúncia com esse conteúdo foi feita em abril deste ano pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e da Comissão Pastoral da Terra, na Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG).

“Não podemos fingir que nada está acontecendo”

A colocação é de Eliana Torelly, procuradora Regional da República e integrante da 6ª Câmara do Ministério Público Federal, que cuida de questões relacionadas aos povos tradicionais. “Não podemos admitir falar de mortes e fingir que nada acontece. Fui até a comunidade de Croatá e vi como a área está bem preparada, com o uso tradicional e não predatório dos recursos naturais. Isso já habilita a titularidade, a ter um Taus (Termo de Autorização de Uso Ambiental). Foi um alívio muito grande conseguir a suspensão da liminar que pedia o despejo das famílias que vivem lá”.

Eliana também relata um encontro na Secretaria do Patrimônio da União (SPU) para falar sobre a preocupante situação o Norte de Minas Gerais. Ela espera que até 2020 a União demarque os terrenos que são do seu domínio, neste caso, as margens de um Rio São Francisco. Porém, de acordo com a procuradora, existem divergências entre a SPU no Distrito Federal e a superintendência no estado sobre exigências burocráticas. “A solução é relativamente simples, temos que concentrar esforços para a demarcação definitiva dessas áreas. Hoje o ambiente no Norte de Minas é de intranquilidade social”.

Afonso Henrique Teixeira, procurador de Justiça e Coordenador das Promotorias Agrárias do Ministério Público de Minas Gerais, lamenta a extinção, pelo atual governo federal, da Ouvidoria Agrária Nacional “Em 2017 não tivemos nenhuma família assentada e isso reflete a falta de políticas públicas. O Ministério Público vai para o enfrentamento contra o armamento no campo. Quem pegar em armas para expulsar comunidades vai enfrentar o MP. Precisamos levar a institucionalidade ao Norte mineiro, com a presença do Ministério Público, órgãos de segurança pública e governos do estado e federal. São propriedades públicas sendo utilizadas indevidamente por irresponsáveis, porque quem devia tomar conta, não faz o trabalho”, conclui Afonso.

Em Minas Gerais existe o único órgão de conciliação agrária do país, a Mesa de Diálogo de Negociação de Conflitos Urbanos, Rurais e Socioambientais, do governo estadual. O coordenador, Fernando Tadeu David, sugere a realização de diligência e audiência pública em Montes Claros, numa atuação conjunta entre as Comissões de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados e da Assembleia Legislativa mineira.

“O Norte de Minas representa hoje essa articulação imoral do latifúndio com setores do Estado.  A omissão do Estado está se concretizando na violência e eles estão com as mãos sujas de sangue, além disso é uma prática de racismo ambiental. Os entraves burocráticos técnicos já estão resolvidos, agora a questão é um embate político”.  Umezita, Pastoral dos Pescadores

O que deve ser feito

 “A estratégia do latifúndio tem envolvido o uso de milícias armadas, organizações ruralistas locais, empresas de comunicação, de segurança e da área jurídica. De um lado, atuam com as milícias armadas, atacando as comunidades, e de outro, usam órgãos públicos e controlam a mídia local para ganhar a opinião pública na região”, explica o deputado Padre João (PT/MG), que pediu a realização do debate junto com o deputado Patrus Ananias (PT/MG).

Foram encaminhadas, entre outras ações, a realização de uma diligência da CDHM à Região Norte de Minas Gerais, em conjunto com a Mesa de Diálogo e Negociação, CDH da Assembleia Legislativa e Ministério Público Federal e Estadual. 

A CDHM também vai representar, junto ao Ministério Público Federal, para a instauração de inquérito para apurar responsabilidades e omissões da SPU e Incra nas ocupações sustentáveis das comunidades. Além de requerimento de documentos que permitam aos integrantes da comunidades acesso aos seus direitos sociais e políticas públicas.

Comunidades em conflito

São pelo menos quinze comunidades situadas em nove municípios em situação de conflito fundiário.

- Comunidades Pesqueira e Vazanteira de Caraíbas e da Venda, na localidade dede Maria da Cruz

- Comunidades Quilombola, Pesqueira e Vazanteira de Croatá, e de Sangradouro Grande, em Januária

 - Comunidade Pesqueira e Vazanteira de Canabrava, em Buritizeiro

 - Comunidade Extrativista de Barra do Pacuí e Pescadores Artesanais de Ibiaí, em Ibiaí;

- Comunidade Pesqueira e Vazanteira de Ilha da Porteira, em São Francisco

 - Comunidade Tradicional Geraizeira do Vale das Cancelas, em Grão Mogol

- Comunidades de Barrocão, de Pau de Fruta, de Buritis de Baixo, em Jequitaí

- Comunidades Vazanteiras de Barrinha, de Cabaceiras e de Maria Pretas, em Itacarambi

- Comunidade Geraizeiras de Riacho dos Machados, em Riacho dos Machados

 

Pedro Calvi / CDHM