Texto Base da Consultoria Legislativa

DIRETORIA LEGISLATIVA
CONSULTORIA LEGISLATIVA
ASSUNTO: TRABALHO ESCRAVO

CONSULTORES:  Beatriz Rezende Marques Costa, Maria Auxiliadora da Silva e Sandra Valle 
DATA: Julho de 2012


Trabalho Escravo


Embora o trabalho escravo tenha sido formalmente extinto em 12 de maio de 1888, com a Lei Áurea, ainda hoje, em pleno século XXI, persiste a existência dessa forma de exploração de mão de obra.


O Código Penal brasileiro, em seu art. 149, tipifica essa prática como redução à condição análoga à de escravo na qual alguém é submetido a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, a condições degradantes de trabalho e a restrição de locomoção em razão de dívida contraída com o empregador.


Muitos doutrinadores discutem se a expressão trabalho escravo é a correta para determinar esse fenômeno que representa uma anomalia nas relações de trabalho, principalmente em um Estado Democrático de Direito. Também se utiliza a expressão trabalho forçado para conceituar tão indesejável prática.


Independentemente desse aspecto semântico, o trabalho escravo existe e está presente em todo o mundo, inclusive no Brasil, nas áreas urbanas e rurais, em claro atentado à dignidade humana.


Preocupada com o problema, a Câmara dos Deputados criou a Comissão Parlamentar de Inquérito - CPI destinada a investigar a exploração do trabalho escravo ou análogo ao de escravo, em atividades rurais e urbanas, de todo o território nacional.


Nesse fórum, abriu-se a oportunidade de ouvir importantes depoimentos de várias pessoas comprometidas com essa luta: exministros, acadêmicos e representantes do Governo e de organizações não governamentais. Ainda na esfera de competência da CPI, está prevista a realização de visitas in loco, a fim de colher testemunho de pessoas que se encontram nessa lamentável condição. Várias empresas têm contatado a CPI não só para participar dos seus trabalhos, mas, também, para mostrar experiências bem sucedidas nesse campo, como, por exemplo, o trabalho voluntário de auditagem na sua cadeia produtiva para impedir o uso de mão de obra análoga à de escravo.


Os trabalhadores reduzidos à condição análoga à de escravo na área rural são normalmente aliciados ou recrutados pelos
chamados "gatos" que, contratados pelos empregadores, saem em busca de mão de obra na época das safras. Os trabalhadores são levados a lugares distantes de sua residência e já chegam às fazendas com dívidas de transporte, moradia e alimentação, que dificilmente podem ser quitadas, o que os impede do desligamento do serviço. Trata-se da famigerada servidão por dívida.


Também tem sido considerado trabalho escravo o exercido em jornadas elevadas ou excessivas, em condições precárias, como alojamento inadequado, falta de fornecimento de alimentação adequada, de água potável, de instrumentos de trabalho e de equipamentos de proteção individual.


Outras irregularidades normalmente praticadas pelos empregadores são a retenção da Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS) e o desconto de verbas salariais não previstas em lei ou não autorizadas pelo empregado.


Assim, o trabalho escravo, nos dias atuais, caracteriza-se pela afronta direta aos princípios e às garantias individuais previstos na Declaração Universal dos Direitos Humanos, nas Convenções e nos Protocolos internacionais, na Constituição Federal e em nosso ordenamento jurídico infraconstitucional.


Já em 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamava em seu art. IV: "Ninguém será mantido em escravidão
ou servidão; a escravidão e o tráfico de escravos estão proibidos em todas as suas formas".


O órgão especializado da Organização das Nações Unidas - ONU, a Organização Internacional do Trabalho - OIT, aprovou as
Convenções nºs 29 e 105, ratificadas pelo Brasil, e já integradas ao nosso sistema jurídico, que determinam aos países signatários que tomem medidas eficazes para coibir qualquer forma de trabalho que reduza o trabalhador à condição análoga à de escravo. Observe-se a importância da atuação da OIT, na medida em que a Convenção n° 29, de 1930, é anterior à Declaração de Direitos Humanos, que é de 1948.


Em 2004, o Brasil incorporou ao seu ordenamento jurídico, por meio do Decreto n° 5.017, o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional relativo à Prevenção, Repressão e Punição ao Tráfico de Pessoas, em especial Mulheres e Crianças, documento esse que está sob custódia do Escritório das Nações Unidas contra Drogas e Crime - UNODC. A OIT e o UNODC trabalham em estreita parceria e, quando solicitados, prestam assessoria e assistência técnica, provendo, dentre outras atividades conjuntas, capacitação e assistência na elaboração de leis.


No âmbito interno, o trabalho escravo afronta os seguintes artigos da Constituição Federal

  • Art. 1°, III, que dispõe sobre a proteção da dignidade humana;
  • Art. 1º, IV, que trata da proteção aos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
  • Art. 5º, caput, que estabelece que "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade";
  • Art. 5º, III, que proíbe a submissão à tortura ou a tratamento desumano ou degradante;
  • Art. 5º, XV, que disciplina a proteção à liberdade de locomoção;
  • Art. 5º, XLVI, que estabelece a proibição de imposição de pena de trabalhos forçados ou cruéis, e
  • Art. 7º que dispõe sobre os diversos direitos trabalhistas de proteção aos trabalhadores urbanos e rurais.


Várias normas infraconstitucionais disciplinam o trabalho escravo na área penal, merecendo destaque os artigos 149, 203 e 207 do Código Penal, que dispõem, respectivamente, sobre as seguintes condutas criminais: reduzir alguém à condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições
degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto; frustrar, mediante fraude ou violência, direito assegurado pela legislação do trabalho;
aliciar trabalhadores, com o fim de levá-los de uma para outra localidade do território nacional. Na esfera internacional, o art. 206 determina que é crime recrutar trabalhadores, mediante fraude, com o fim de levá-los para território estrangeiro.

 

Importante mencionar que um dos principais fatores que incentivam a continuidade da exploração do trabalho humano é a impunidade, resultante da demora da entrega da prestação jurisdicional no Brasil. Ademais, as penas de reclusão e multa previstas no Código Penal, além de pequenas, são raramente aplicadas e insuficientes para servir de obstáculo ou empecilho a essa atividade ilícita, ilegal e imoral. 

 

Também não são raros os casos em que a atuação da fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) é demorada ou tardia, o que contribui para que os empregadores eliminem as provas que poderiam confirmar o trabalho escravo, em vista do reduzido número de auditores-fiscais para o tamanho do Brasil. 


Além disso, esses locais de trabalho geralmente são protegidos por guardas armados que dificultam o acesso e a atuação dos
fiscais e juízes do trabalho diretamente ligados no combate ao trabalho escravo. Esses, muitas vezes são ameaçados ou até mortos (Informação sobre o crime na revista Em Discussão, do Senado Federal - maio de 2011; Veja também: Prisão dos suspeitos em julho de 2004 - Portal do MPFCronologia atualizada - portal do MPF), ficando limitados para exercer seu trabalho de maneira digna e eficaz. Assim, o argumento de que policiais não devem participar dessas operações cai por terra, pois esse tipo de fenômeno é uma anomalia nas relações de trabalho que não pode limitar-se somente à competência do MTE. Só uma ação conjunta de todos os poderes do Estado pode dificultar o exercício dessa atividade ilegal. Infelizmente essa prática tem se perpetuado na área rural, pelo fato de os trabalhadores ficarem confinados em lugares afastados dos grandes centros, onde os aliciadores se aproveitam da ausência de órgãos fiscalizadores e da visibilidade do problema.


Na área urbana, o problema da "invisibilidade" permanece. Não obstante todas as dificuldades, já foram detectados casos de
trabalhadores, em geral imigrantes ilegais, submetidos a trabalho forçado ou a condições degradantes de trabalho em grandes centros urbanos. Com a maior atenção dedicada a esse fenômeno urbano, tem havido mais fiscalização e trabalhos desse tipo têm sido detectados com mais frequência. As grandes empresas investigadas alegam desconhecimento do problema por envolver uma cadeia produtiva muito extensa, que as impossibilita de conhecer de perto todos os seus fornecedores. E é nesse ponto que a situação se torna mais perigosa, pois, de acordo com a OIT, o tráfico internacional de pessoas para exploração sexual ou trabalho forçado gera um lucro anual de 32 bilhões de dólares (Ver estudo da OIT: custo da coerção).


Para a prevenção e o combate ao trabalho escravo serem mais eficazes, o Governo brasileiro instituiu, em 1995, o Grupo Executivo de Repressão ao Trabalho Forçado (Gertraf), integrado por diversos ministérios, que foi substituído pela Comissão Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae), criada pelo Decreto de 31 de julho de 2003, composta por organizações governamentais e não governamentais. Também em 1995, foi criado o Grupo Especial de Fiscalização Móvel no MTE, que passou a atuar em ações integradas com outros ministérios, com o apoio do Ministério Público Federal, do Ministério Público do Trabalho e da Polícia Federal, propiciando um trabalho de investigação e autuação dos infratores.


Em 2004, o MTE criou, por meio da Portaria 540, o Cadastro de Empregadores que tenham comprovadamente sido flagrados
mantendo trabalhadores em condições análogas às de escravo. Esse Cadastro ficou sendo conhecido como "lista suja". A exclusão desse rol depende de monitoramento do infrator pelo período de dois anos. Se, durante esse período, não houver reincidência do crime, forem pagas todas as multas resultantes da ação de fiscalização e quitados os débitos trabalhistas e previdenciários, o nome será retirado do cadastro.


Com base nessa "lista suja", instituições federais podem negar o empréstimo de recursos públicos. Além da restrição ao crédito, a divulgação dessa lista possibilita uma melhor atuação de instituições governamentais e não governamentais na erradicação da escravidão, permitindo, inclusive, a criação de novos mecanismos de prevenção e repressão.


O Cadastro também possibilitou a identificação das cadeias produtivas do trabalho escravo, o que levou, em 2005, à assinatura do Pacto Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo cuja missão é estabelecer ferramentas eficazes para que o setor empresarial e a sociedade brasileira não comercializem produtos de fornecedores que fizeram uso de trabalho escravo. 

 

As leis existentes, porém, não têm sido suficientes para eliminar esse tipo de exploração de mão de obra, e o número de infratores reincidentes é grande. Mesmo com a aplicação de multas e o corte de crédito, usar trabalho escravo ainda é um bom negócio para muitos empresários. Prospera, ainda, o indesejável binômio: altos lucros e baixos riscos de punição. 

 

Dessa forma, vários órgãos governamentais e entidades da sociedade civil consideraram que medidas drásticas poderão por fim a essa abominável prática.

 

Nesse sentido, foi aprovada nesta Casa, em maio passado, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 438, de 2001, conhecida como a PEC do Trabalho Escravo, de autoria do Senador Ademir Andrade, que "Dá nova redação ao art. 243 da Constituição Federal.", estabelecendo a pena de perda da gleba onde seja constatada a exploração de trabalho escravo, revertendo a área ao assentamento dos colonos que já trabalhavam na respectiva gleba. Essa expropriação já ocorre, conforme o texto constitucional vigente, no caso das propriedades em que forem encontradas plantações de psicotrópicos. Essa proposta retorna ao Senado, pois foi modificada para incluir a possibilidade de expropriação também da propriedade urbana, como medida de justiça, já que o problema atinge as áreas rural e urbana.

 

Tramita, ainda, na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) da Câmara dos Deputados, a Proposta de Emenda à nº 327, de 2009, que visa, em resumo, a conferir competência penal à Justiça do Trabalho, especialmente em relação aos crimes contra a organização do trabalho, os decorrentes das relações de trabalho, sindicais ou do exercício do
direito de greve, a redução do trabalhador à condição análoga à de escravo, aos crimes praticados contra a administração da Justiça do Trabalho e a outros delitos que envolvam o trabalho humano.


Além dessas iniciativas, vários projetos de lei estão em tramitação no Congresso Nacional, dos quais se destacam os seguintes: 

PL nº 5.016/2005, de autoria do Senador Tasso Jereissati (PLS nº 208/2003, no Senado Federal), que "Estabelece penalidades para o trabalho escravo, altera dispositivos do Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), e da Lei nº 5.889, de 8 de junho de 1973, que regula o trabalho rural, e dá outras providências". A proposição tramita na Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Regional (CAPADR), aguardando parecer do Relator. À proposição foram apensados os seguintes projetos:

  • PL nº 2.667/2003, do Deputado Paulo Marinho, que Torna hediondos os crimes de redução à condição análoga à de escravo e aliciamento de trabalhadores de um local para outro do território nacional, acrescentando dispositivos à Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990;
  • PL nº 2.668, de 2003, do Deputado Paulo Marinho, que Agrava as penas para os crimes de redução análoga à de escravo e aliciamento de trabalhadores de um local para outro do território nacional, dando nova redação aos arts. 149 e 207 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal;
  • PL nº 3.283, de 2004, do Deputado Marcos Abramo, que Inclui inciso VIII na Lei dos Crimes Hediondos, Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990, tornando crime hediondo; 
  • PL nº 3.500/2004, do Deputado Edson Duarte, que Veda destinações de recursos de empresas públicas e sociedades de economia mista a pessoas físicas ou jurídicas condenadas por empregar trabalhadores em regime de trabalho análogo à escravidão;
  • PL nº 3.524/2004, da Deputada Iriny Lopes, que Dispõe sobre a proibição da concessão de benefícios e incentivos fiscais e financeiros públicos a pessoas físicas ou jurídicas que não cumprem o disposto na legislação trabalhista, que submetem trabalhadores a formas degradantes de trabalho ou que os reduzem a condições análogas à de escravo;
  • PL nº 8.015/2010, do Deputado Arnaldo Faria de Sá, que Dispõe sobre o perdimento de bens que tenham sido utilizados na prática do crime de redução a condição análoga à de escravo;
  • PL nº 1.302/2011, do Deputado Padre Ton, que Altera a Lei nº 5.889, de 8 de junho de 1973, dando-lhe nova redação, punindo o empregador rural por abusos na contratação de trabalhadores;
  • PL nº 3.107/2012, do Deputado Roberto de Lucena, que Determina a cassação da inscrição no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ) de empresas que façam uso direto ou indireto de trabalho escravo.
  • PL nº 3.842, de 2012, do Deputado Moreira Mendes, que Dispõe sobre o conceito de trabalho análogo ao de escravo.

 

Desde os anos 90, quando foi oficialmente reconhecida a presença de trabalho escravo e degradante em nosso país, o governo brasileiro tem se aplicado no combate a esse tipo de exploração, merecendo, inclusive, o elogio de organismos internacionais. Mas muito mais ainda precisa ser feito. Nesse sentido, importante dar-se continuidade ao trabalho de fiscalização dos auditores fiscais do trabalho, principalmente nos grupos móveis, cuja atuação é a base do combate ao trabalho escravo, fornecendo subsídios para a atuação do Ministério Público e da Justiça do Trabalho. 


Por outro lado, cumpre ao Parlamento brasileiro a discussão de propostas que possibilitem a erradicação efetiva do trabalho
escravo, além da sua competência investigativa, na forma da referida CPI em funcionamento.


Ademais, não bastam tão-somente medidas repressivas para combater e coibir essas novas formas de trabalho escravo. Indispensável é a criação de meios que permitam aos trabalhadores prescindirem desse tipo de trabalho, notadamente o oferecimento de ensino público de qualidade que lhes possibilite pleitear empregos decentes. A falta de qualificação profissional obriga os trabalhadores, sem alternativa de renda, a se submeterem ao trabalho forçado. Essa é a razão por que muitos trabalhadores resgatados acabam se submetendo novamente a essa prática. 

 

Necessário se faz também que se institua uma nova política de imigração no Brasil, em vista da atual realidade socioeconômica que atrai cada vez mais trabalhadores dos países vizinhos em busca de melhores condições de vida, pois a nossa lei de imigração vigente, que data de 1980, era precipuamente preocupada com a segurança nacional sem levar em
consideração o fenômeno da globalização que tem revolucionado o movimento migratório no mundo inteiro. Hoje em dia fala-se até em sistema de cotas por um determinado período de modo a regulamentar esse movimento, sem que se veja o trabalho do estrangeiro como trabalho indesejado. Vários países da Europa têm aberto suas fronteiras para possibilitar a entrada de trabalhadores estrangeiros para realizar serviços ou trabalhos, hoje, recusados pelos seus nacionais.

 

Consultoria Legislativa, em julho de 2012.
BEATRIZ REZENDE MARQUES COSTA, MARIA AUXILIADORA DA SILVA e SANDRA VALLE
Consultoras Legislativas
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Material atualizado até a data da publicação (15/08/2012).