Texto Base da Consultoria Legislativa

DIRETORIA LEGISLATIVA
CONSULTORIA LEGISLATIVA
ASSUNTO: TRABALHO ESCRAVO CONTEMPORÂNEO

CONSULTOR: Beatriz Rezende Marques Costa
DATA: 13 de maio de 2009

 

TRABALHO ESCRAVO CONTEMPORÂNEO

O trabalho escravo legalizado foi extinto no Brasil em 13 de maio de 1888. Porém, em pleno século XXI, ainda se tem notícia da existência de formas de exploração de mão de obra, se não idênticas, pelo menos semelhantes às praticadas durante o período da escravidão.

O trabalho escravo contemporâneo se distingue de certa forma do exercido durante o período colonial brasileiro, pois prescinde do título de propriedade. O empregador, além de negar ao trabalhador o salário e demais direitos trabalhistas, rouba-lhe sua condição de ser humano, cerceando sua liberdade, explorando-o sob condições degradantes de trabalho e submetendo-o a uma coerção física e moral que o impede de se livrar dessa condição.

Por esse motivo, muitos doutrinadores discutem se a expressão trabalho escravo é a correta para determinar esse fenômeno moderno, mas que representa uma anomalia nas relações de trabalho, principalmente em um Estado Democrático de Direito.

Entretanto, no fundo, não importa o nome dado a esse tipo de prestação de trabalho (trabalho escravo ou em condições análogas, trabalho forçado, escravidão por dívidas, ou qualquer outra denominação). Inegável é que ele está presente no Brasil, em claro atentado contra a dignidade humana, em áreas urbanas e rurais, mas principalmente nestas, onde se torna difícil a fiscalização e a atuação do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e do Ministério Público do Trabalho.

Os "escravos modernos" são normalmente agenciados pelos chamados "gatos" que, contratados pelos empregadores, saem em busca de mão de obra na época das safras. Os trabalhadores são levados a lugares distantes de sua residência e já chegam às fazendas com dívidas de transporte, moradia e alimentação, que nunca são quitadas. Mas, apesar do absurdo da situação, o próprio trabalhador acaba por sentir-se obrigado a permanecer no local até que as dívidas sejam pagas, o que nunca ocorre.

As jornadas de trabalho são elevadas e as condições do ambiente de trabalho são precárias, como alojamento inadequado, falta de fornecimento de boa alimentação e água potável, falta de fornecimento de equipamentos de trabalho e de proteção.

Outras irregularidades normalmente praticadas pelos empregadores é a retenção da Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS) e o desconto de verbas salariais não previstas em lei ou não autorizadas pelo empregado.

Assim, o trabalho escravo nos dias atuais caracteriza-se pela afronta direta aos princípios e às garantias individuais previstos na Declaração Universal dos Direitos Humanos, nas convenções internacionais especialmente nas da Organização Internacional do Trabalho (OIT), na Constituição Federal e em nosso ordenamento jurídico infraconstitucional.

O artigo IV da Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, da qual o Brasil faz parte, proíbe qualquer forma de escravidão ou servidão:

"Artigo IV: Ninguém será mantido em escravidão ou servidão; a escravidão e o tráfico de escravos estão proibidos em todas as suas formas."

A OIT, em 1998, elaborou uma Declaração de Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho, na qual rechaça qualquer forma de trabalho forçado ou compulsório, modalidade em que o trabalho escravo moderno pode ser enquadrado. As Convenções nº 29 e 105, ratificadas pelo Brasil, e por isso já integradas ao nosso sistema jurídico, propõem aos países signatários que tomem decisões a fim de coibir qualquer forma de trabalho que reduza o trabalhador à condição análoga à de escravo.

Na Constituição Federal, o trabalho escravo, além de afrontar todos os dispositivos de proteção aos trabalhadores urbanos e rurais elencados no art. 7º, representa violação literal ao art. 5º, caput, que estabelece que "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade,(...)"; ao art. 1º, III, que dispõe sobre a proteção da dignidade humana; ao art. 1º, IV, que trata da proteção aos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; ao art. 5º, III, que proíbe a submissão à tortura ou a tratamento desumano ou degradante; ao art. 5º, XV, que disciplina a proteção à liberdade de locomoção e, finalmente, ao art. 5º, XLVI, que estabelece a proibição de imposição de pena de trabalhos forçados ou cruéis.

Várias normas infraconstitucionais também são afrontadas nesse tipo de relação de trabalho merecendo destaque o descumprimento da farta legislação brasileira de proteção ao trabalho, seja ele urbano ou rural, e os art. 149, 203 e 207 do Código Penal, que dispõem, respectivamente, sobre os seguintes crimes: reduzir alguém à condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto; frustrar, mediante fraude ou violência, direito assegurado pela legislação do trabalho; aliciar trabalhadores, com o fim de levá-los de uma para outra localidade do território nacional.

Importante mencionar que um dos principais fatores que incentiva a continuidade da exploração do trabalho humano é a impunidade, pois a prestação jurisdicional no Brasil é, em geral, lenta, o que acaba resultando na falta de justiça.

Também não são raros os casos em que a atuação dos fiscais do MTE é demorada e tardia, o que contribui para que os empregadores eliminem as provas que poderiam confirmar o trabalho escravo.

Além disso, os locais de prestação do trabalho geralmente são protegidos por guardas armados, que dificultam o acesso e a atuação dos fiscais e juízes do trabalho diretamente ligados no combate ao trabalho escravo. Estes, muitas vezes são ameaçados ou até mortos, ficando limitados para exercer seu trabalho de maneira digna e eficaz.

Esta prática se perpetua, ainda, pelo fato de os trabalhadores ficarem confinados em lugares afastados dos grandes centros, onde os aliciadores se aproveitam da ausência de órgãos fiscalizadores. Não obstante já foram detectados casos de trabalhadores, em geral imigrantes ilegais, submetidos à trabalho forçado ou a condições degradantes de trabalho em grandes centros urbanos.

Para tornar efetivo o combate ao trabalho escravo e erradicá-lo, o governo brasileiro instituiu, em 1995, o Grupo Executivo de Repressão ao Trabalho Forçado (Gertraf), integrado por diversos ministérios, que foi substituído pela Comissão Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae), criada pelo Decreto de 31 de julho de 2003, composta por organizações governamentais e não governamentais. Também no ano de 1995, foi criado o Grupo Especial de Fiscalização Móvel ligado ao MTE, que passou a atuar em ações integradas com outros ministérios, com o apoio do Ministério Público Federal, do Ministério Público do Trabalho e da Polícia Federal, propiciando um trabalho de investigação e autuação dos infratores.

O último quadro geral das operações de fiscalização móvel dos anos de 1995 a 2009, publicado pelo MTE é o seguinte:

 

QUADRO GERAL DAS OPERAÇÕES DE FISCALIZAÇÃO PARA ERRADICAÇÃO DO TRABALHO ESCRAVO - SIT/SRTE 1995 a 2009

Ano N.

Operações

N.º de Fazendas

Fiscalizadas

Trabalhadores

Resgatados

Pagamento de

Indenização

AIs

Lavrados

2009

19

64

470

698.728,54

611

2008

158

301

5.016

8.998.420,87

4.886

  2007

116

206

5.999

9.914.276,59

3.139

 2006

109 209 3.417  6.299.650,53 2.772

2005

85 189 4.348 7.820.211,26 2.286

2004

72 276 2.887 4.905.613,13 2.465

2003

67 188 5.223 6.085.918,49 1.433

2002

30 85 2.285 2.084.406,41 621

2001

29 149 1.305 957.936,46 796

2000

25 88 516 472.849,69 522

1999

19 56 725 ND 411

1998

17 47 159 ND 282

1997

20 95 394 ND 796

1996

26 219 425 ND 1.751

1995

11 77 84 ND 906
  TOTAL 803 2.249 33.253 48.238.011,97 23.677

ND - Não disponível (Dados não computados a época)
Atualizado em 03/04/2009
Fonte: Relatórios Específicos de Fiscalização Para Erradicação do Trabalho Escravo

 

Em 2004, o MTE criou, por meio da Portaria 540, o Cadastro de Empregadores que tenham comprovadamente sido flagrados mantendo trabalhadores em condições análogas às de escravo. Esse Cadastro ficou sendo conhecido como "lista suja". A exclusão desse rol depende de monitoramento do infrator pelo período de dois anos. Se, durante esse período, não houver reincidência do crime e forem pagas todas as multas resultantes da ação de fiscalização e quitados os débitos trabalhistas e previdenciários, o nome será retirado do cadastro. Tal sistema vem sendo considerado um sucesso, pois 42 empregadores que haviam entrado na lista em novembro 2003 saíram dela em novembro de 2005 após normalizarem as condições de trabalho em suas propriedades.

Com base na "lista suja", instituições federais podem negar o empréstimo de recursos públicos. Além da restrição ao crédito, a divulgação da "lista suja" possibilita uma melhor atuação de instituições governamentais e não governamentais na erradicação da escravidão, possibilitando, inclusive, a criação de novos mecanismos de repressão e prevenção.

O Cadastro também permitiu a identificação das cadeias produtivas do trabalho escravo, o que levou, em 2005, à assinatura do Pacto Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo cuja missão é implementar ferramentas para que o setor empresarial e a sociedade brasileira não comercializem produtos de fornecedores que usaram trabalho escravo.

Porém as leis existentes não têm sido suficientes para eliminar esse tipo de exploração de mão de obra, e o número de propriedades reincidentes é grande. Mesmo com a aplicação de multas e o corte de crédito, usar trabalho escravo ainda é um bom negócio para muitos empresários.

A sanção penal também tem sido insuficiente, principalmente em virtude da reduzida pena mínima prevista no artigo 149 do Código Penal (dois anos). Se o empregador for julgado, há vários dispositivos que permitem abrandar a eventual execução da pena, a qual poderá ser convertida em distribuição de cestas básicas ou prestação de serviços à comunidade, por exemplo.

Assim, vários órgãos governamentais e entidades da sociedade civil consideram que somente uma medida drástica, que coloque em risco a propriedade das terras em que foi utilizado trabalho escravo, coibirá com eficiência esse crime.

Nesse sentido, tramita nesta Casa a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 438, de 2001, conhecida como a PEC do Trabalho Escravo, de autoria do Senador Ademir Andrade, que "Dá nova redação ao art. 243 da Constituição Federal.", a fim de estabelecer a pena de perda da gleba onde for constatada a exploração de trabalho escravo, revertendo a área ao assentamento dos colonos que já trabalhavam na respectiva gleba. Essa expropriação já ocorre no caso das propriedades em que forem encontradas plantações de psicotrópicos. A essa proposição estão apensadas as PECs 232, de 1995, e 235,de 2004. A matéria, considerada como prioridade do governo nos dois Planos Nacionais de Erradicação do Trabalho Escravo (2004 e 2008), já foi votada em Primeiro Turno pelo Plenário da Câmara dos Deputados, quando foi aprovada, nos termos da Emenda Global Aglutinativa Substitutiva apresentada pelo Relator, e encontra-se pronta para a pauta a fim de que seja votada em Segundo Turno.

Tramitam, ainda, na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) da Câmara dos Deputados, as Propostas de Emenda à Constituição nºs 265 e 347, ambas de 2004, que dispõe basicamente sobre a mesma matéria tratada na PEC nº 438, de 2001, e a PEC nº 327, de 2009, que visa, em resumo, conferir competência penal à Justiça do Trabalho, especialmente em relação aos crimes contra a organização do trabalho, os decorrentes das relações de trabalho, sindicais ou do exercício do direito de greve, a redução do trabalhador à condição análoga à de escravo, aos crimes praticados contra a administração da Justiça do Trabalho e a outros delitos que envolvam o trabalho humano.

Além dessas iniciativas, vários projetos de lei estão em tramitação no Congresso Nacional, dos quais destacam-se os seguintes:

PL nº 2.636/2007 (apensado: PL nº 2.684/2007), do Deputado Eduardo Valverde, que "Dispõe sobre a competência penal da Justiça do Trabalho", atribuindo-lhe competência para processar e julgar os crimes oriundos das relações de trabalho, tipificados no Código Penal brasileiro". O projeto foi rejeitado na Comissão de Trabalho, de Administração e Serviço Público (CTASP) com parecer vencedor do Deputado Nelson Marquezelli sobre o voto favorável apresentado pela relatora original, Deputada Maria Helena. Na CCJC, foi designado Relator o Deputado Regis de Oliveira.

PL nº 5.016/2005 (apensados: PLs nºs 2.667/2003, 2.668/2003, 3.500/2004, 3.283/2004 e 3.524/2004), de autoria do Senador Tasso Jereissati (PLS nº 208/2003, no Senado Federal), que " Estabelece penalidades para o trabalho escravo, altera dispositivos do Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), e da Lei nº 5.889, de 8 de junho de 1973, que regula o trabalho rural, e dá outras providências". A proposição tramita na Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Regional (CAPADR), aguardando parecer do Relator.

PLS nº 207/2006 (apensado: o PLS nº 25/2005), da então Senadora Ana Júlia Carepa, que "Proíbe a concessão de crédito e a contratação, por licitação, de pessoas físicas ou jurídicas que tenham incorrido em ato que configure a submissão de alguém à condição degradante de trabalho e importe grave restrição à sua liberdade individual". Foi aprovado na Comissão de Assuntos Sociais (CAS) e na Comissão de Direitos Humanos (CDH). Na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), recebeu parecer pela aprovação, mas, após apensação de novos projetos, retornou às comissões anteriores para nova deliberação.

Desde os anos 90, quando foi oficialmente reconhecida a presença de trabalho forçado e degradante em nosso país, o Brasil tem se aplicado no combate a esse tipo de exploração, o que tem merecido, inclusive, o elogio de organismos internacionais. Mas muito mais ainda precisa ser feito. Nesse sentido, importante dar-se continuidade ao trabalho de fiscalização dos auditores fiscais do trabalho, principalmente nos grupos móveis, cuja atuação é a base do combate ao trabalho escravo, fornecendo subsídios para a atuação do Ministério Público e da Justiça do Trabalho.

Em outra frente, cumpre ao Parlamento brasileiro a discussão das propostas em tramitação que possibilitem a erradicação efetiva do trabalho escravo.

Porém não bastam as iniciativas oficiais para eliminar as novas formas de trabalho escravo. Imprescindível é o envolvimento da sociedade civil em um compromisso ético contra quaisquer tipos de exploração de mão de obra que retire do trabalhador brasileiro as mínimas condições de exercer seu trabalho com dignidade.

 

Consultoria Legislativa, em 13 de maio de 2009.

BEATRIZ REZENDE MARQUES COSTA

Consultora Legislativa

 

Material atualizado até a data da publicação (15/05/2009).