Texto Base da Consultoria Legislativa

 

 

TIPO DE TRABALHO: ESTUDOS E CONSULTAS - OUTROS

SOLICITANTE: CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO E INFORMAÇÃO

ASSUNTO: Elaboração de trabalho para a atividade “Fique por Dentro”. Tema: crise hídrica

Autora:     Roseli Senna Ganem
Consultora Legislativa da Área XI
Meio Ambiente e Direito Ambiental, Organização Territorial, Desenvolvimento Urbano e Regional

 

Versão em PDF : Crise Hídrica

 

O que é crise hídrica?

   Crise hídrica é como tem sido chamada a falta de água para abastecimento humano, que assolou e ainda assola diversas cidades brasileiras. A expressão ganhou notoriedade e passou a ocupar as manchetes dos jornais a partir de 2014, quando o Sistema Cantareira, que abastece a Região Metropolitana de São Paulo (RMSP), entrou em níveis críticos e a população enfrentou a falta de água.

   O Cantareira é um complexo de seis represas destinado ao abastecimento de aproximadamente nove milhões de pessoas da cidade de São Paulo, além de mais outros 10 municípios. É formado por quatro reservatórios conectados por túneis subterrâneos e canais nas bacias dos rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí (PCJ), mais dois reservatórios na bacia do Alto Tietê. Na crise de 2014 e 2015, foi autorizado o uso da reserva técnica do Sistema Cantareira, conhecido como "volume morto", que soma cerca de 480 bilhões de litros de água localizados abaixo das estruturas de operação dos reservatórios e acessíveis apenas por bombeamento (ANA, s/d).

   A crise hídrica se abateu também sobre os sistemas do rio Paraíba do Sul, que abastecem o Rio de Janeiro, em 2014 e 2015. E o mesmo vem ocorrendo no Distrito Federal desde dezembro de 2016, quando baixou muito o nível dos reservatórios do Descoberto e Santa Maria, que abastecem a Capital Federal, sujeitando a população local ao racionamento desde 2017.

  Segundo a Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil, em 21 de dezembro de 2017 (data da última atualização dos dados), havia 901 reconhecimentos vigentes (de estado de calamidade pública ou situação de emergência) em decorrência de seca/estiagem. Desse total, foram 849 reconhecimentos na Região Nordeste (Bahia, Ceará, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte e Sergipe); 37 na Região Sudeste (Espírito Santo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo); oito na região Centro-Oeste (Tocantins) e sete na Região Norte (Acre, Amazonas e Pará) (SNPDC, 2018). Note-se que tal quadro não reflete a real situação do País, tendo que em vista que o DF, por exemplo, que não aparece nesses dados, está em racionamento de água desde janeiro de 2017.

   Sem dúvida, a seca afeta principalmente os estados do Nordeste. Mas há que se diferenciar o fenômeno que incide no bioma Caatinga dos fatos ocorridos na RMSP e que estão ocorrendo no DF. Embora a maior parte do território brasileiro apresente estações seca e chuvosa bem marcadas, o volume anual de chuvas não é o mesmo entre as diferentes regiões.

   O clima semiárido da Caatinga caracteriza-se por baixo índice pluviométrico anual – entre 250 mm a 750 mm por ano –, chuvas concentradas em um espaço curto de tempo e sistema de chuvas bastante irregular, de ano para ano. Periodicamente (de oito a dez vezes por século), a região é submetida a longos períodos de seca, que pode se prolongar por três a cinco anos (CÂMARA DOS DEPUTADOS/COMISSÃO EXTERNA DA SECA NO SEMIÁRIDO NORDESTINO, 2015; LEAL et al., 2005). Atualmente, o Nordeste vive a pior seca dos últimos sessenta anos, iniciada em 2011.

   A Mata Atlântica, onde se situa o Sistema Cantareira, constitui floresta pluvial, cujo regime pluviométrico varia entre 1.800 e 3.600 mm anuais, podendo chegar a 4.000 mm/ano (CARVALHAL et al., s/d). Por sua vez, o Cerrado, bioma onde se situa o DF, caracteriza-se por clima tropical quente subúmido, com precipitação anual entre 600 e 2.200 mm, com as áreas limítrofes aos biomas Caatinga e Amazônia recebendo, respectivamente, os menores e os maiores volumes de chuva (IBGE, 2004).

   Desse modo, a seca intensa e prolongada é um fenômeno inerente ao clima semiárido, mas a RMSP e o DF situam-se em regiões de chuvas anuais abundantes. Enquanto a maior parte da rede hidrográfica da Caatinga é intermitente, no Cerrado e na Mata Atlântica, os rios são perenes. Assim, a recente redução do nível dos reservatórios de São Paulo e do DF não tem precedentes na história, com as dificuldades consequentes no abastecimento de água.

   A situação anômala de abastecimento hídrico na RMSP deu ensejo ao debate nacional sobre questões que já vinham sendo colocadas há décadas por hidrólogos, ecólogos, meteorologistas e outros especialistas, relativas à segurança hídrica no País. Embora o Brasil detenha um quinto da reserva de água doce do mundo, com 8.130 km3/s, 73% de sua disponibilidade hídrica concentra-se na bacia amazônica, que é a região menos habitada do país. Apenas 27% dessa reserva está disponível para 95% da população brasileira (LIMA, 2001). A região semiárida da Caatinga dispõe de apenas 4% dos recursos hídricos do país (CIRILO, 2015).

   É nesse contexto que a segurança hídrica deve ser discutida. A segurança hídrica, de acordo com a Declaração Ministerial de Haia[1] sobre Segurança Hídrica no Século XXI (II Fórum Mundial da Água, Haia, 2000), significa “assegurar que as reservas de água doce e os ecossistemas costeiros serão protegidos e recuperados; que a estabilidade política e o desenvolvimento sustentável serão estimulados; que todas as pessoas terão acesso à água segura e suficiente a um custo compatível para ter uma vida saudável e produtiva”.

  Ou seja, a “crise hídrica” não se resume ao desconforto decorrente do racionamento de água. Trata-se de questão muito mais ampla, que compromete a sustentabilidade dos ecossistemas, os usos múltiplos e o acesso da população a água em quantidade e qualidade adequadas (TUNDISI & TUNDISI, 2015), seja no Semiárido Nordestino, seja no Sudeste, no DF e nas demais regiões.

 

Legislação de recursos hídricos

   A gestão dos recursos hídricos está prevista na Constituição Federal (CF), art. 21, XIX, segundo o qual compete à União “instituir sistema nacional de gerenciamento de recursos hídricos e definir critérios de outorga de direitos de seu uso”. Entretanto, compete não apenas à União, mas também aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas, bem como registrar, acompanhar e fiscalizar as concessões de direitos de pesquisa e exploração de recursos hídricos (art. 23, VI e XI).

   De acordo com a CF, as águas são bens da União, dos Estados e do Distrito Federal. São da União os lagos, rios e quaisquer correntes de água em terrenos de seu domínio, ou que banhem mais de um Estado, sirvam de limites com outros países, ou se estendam a território estrangeiro ou dele provenham, bem como os terrenos marginais e as praias fluviais (art. 20, III). São bens dos Estados e do Distrito Federal as águas superficiais ou subterrâneas, fluentes, emergentes e em depósito, ressalvadas, neste caso, as decorrentes de obras da União (art. 26, I). Portanto, as águas dos Estados e do Distrito Federal são aquelas restritas aos seus territórios. E não existem águas particulares nem municipais.

   A principal norma que rege a gestão das águas é a Lei nº 9.433, de 1997, que institui a Política Nacional de Recursos Hídricos. Essa Lei estabelece que a água tem valor econômico e determina que, em caso de escassez, o abastecimento humano e a dessedentação de animais são os usos prioritários. Ela também institui diversos instrumentos de gestão, entre os quais a outorga de direitos de uso dos recursos hídricos e a cobrança pelo uso da água. Ambos visam racionalizar a captação dos cursos d’água, de forma a evitar a exploração insustentável dos recursos hídricos e garantir seu uso múltiplo. A Lei também institui os comitês de bacias hidrográficas, que são órgãos colegiados formados por representantes do Poder Público, dos usuários de recursos hídricos e de entidades civis com atuação na bacia hidrográfica. O objetivo dos comitês é garantir a gestão descentralizada dos recursos hídricos na bacia.

   O Brasil conta, também, com a Lei nº 12.608, de 2012, que estabelece a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil. O objetivo principal dessa Política é promover a prevenção a desastres naturais. Compete à União apoiar os Estados, o Distrito Federal e os Municípios no mapeamento das áreas de risco, nos estudos de identificação de ameaças, suscetibilidades, vulnerabilidades e risco de desastre e nas demais ações de prevenção, mitigação, preparação, resposta e recuperação, bem como instituir e manter sistema de informações e monitoramento de desastres.

  Além dessas há normas destinadas a disciplinar o saneamento básico (Lei nº 11.445, de 2007), a gestão urbana (Lei nº 10.257, de 2001), o controle do desmatamento (Lei nº 12.651, de 2012), as ações de mitigação e adaptação às mudanças climáticas (Lei nº 12.187, de2009) e muitas outras que oferecem extensa base legal para a boa gestão dos recursos naturais.

 

Causas da crise hídrica

   Serão aqui discutidas as causas da crise hídrica nas áreas mais afetadas pelas secas recentes, quais sejam: o Sudeste, o DF e o Nordeste. Embora a expressão “crise hídrica” não seja utilizado para a seca nordestina, seus problemas de desabastecimento de água também serão apresentados aqui, considerando-se que, como nas demais regiões brasileiras, sua causa principal não está na falta de chuvas, mas na gestão hídrica. Assim, embora tais regiões tenham sido submetidas a estiagens mais fortes que o normal nos últimos anos, as respectivas crises resultam de um quadro mais complexo de fatores, que inclui mudanças climáticas e impactos ambientais, problemas de gestão dos recursos hídricos, mau uso do solo e crescimento populacional.

   Na Região Sudeste, o clima é influenciado pela Zona de Convergência do Atlântico Sul (ZCAS), pelas frentes frias e pelo Jato de Baixos Níveis (JBN), este proveniente da Amazônia, que transportam umidade para a América do Sul a leste dos Andes. A estação chuvosa se estende de setembro a março, sendo que, entre novembro e março, precipita-se 72% da chuva anual. A precipitação média na região do Sistema Cantareira, entre os anos de 1983 e 2014, apenas no mês de janeiro, foi de 268 mm (MARENGO et al., 2015).

   Entretanto, no início de 2014, um anticiclone de alta pressão nos baixos e médios níveis da atmosfera se estabeleceu no Oceano Atlântico subtropical, aí permanecendo por 45 dias, favorecido pela temperatura do ar 2,5ºC mais alta que o normal. Esse anticiclone é típico das latitudes médias e altas e dura entre sete a oito dias. Sua ocorrência no Oceano Atlântico subtropical e com duração tão longa é fenômeno extremamente raro (MARENGO et al., 2015).

   O anticiclone deixou a ar mais seco e estável, bloqueou a entrada da umidade oriunda dos três sistemas que atuam sobre a Região Sudeste (ZCAS, JBN e frentes frias) e inibiu as tradicionais pancadas de chuvas de verão. A precipitação na região do Sistema Cantareira, em janeiro de 2014, foi de apenas 87,9 mm – muito inferior à média histórica. As chuvas de verão de 2013/2014 foram as mais baixas desde 1961 (MARENGO et al., 2015).

   Como resultado, os sistemas de abastecimento do Cantareira e do Paraíba do Sul não receberam o volume de água esperado para a estação chuvosa, em 2014 e 2015. Em 2015, ocorreu novo sistema de alta pressão, porém mais fraco. De qualquer forma, gerou-se um círculo vicioso de falta de umidade, que manteve baixa a precipitação pluviométrica na Região Sudeste, secando os reservatórios (MARENGO et al., 2015).

   Paralelamente, a umidade transportada pelo JBN desviou-se para o oeste da Amazônia, ocasionando fortes cheias nos estados do Acre e de Rondônia, no verão de 2014 (MARENGO et al., 2015).

   Não se pode afirmar peremptoriamente que a seca na RMSP esteja relacionada com o aumento da temperatura atmosférica a longo prazo, gerado pelas mudanças climáticas. Mas pode-se afirmar que houve uma anomalia nas condições atmosféricas relacionada a temperaturas regionais muito elevadas. Além disso, a redução das chuvas no Sudeste, entre 2013 e 2105, faz parte de uma tendência de queda dos totais pluviométricos anuais desde 1990, de 3 mm/ano (MARENGO et al., 2015). A seca que se abateu no Sudeste em 2013/2015 foi a mais severa desde 1962.

   Acrescente-se que, nas últimas duas décadas, vêm se acumulando diversos eventos extremos no Brasil. Além da crise hídrica no Sudeste e no DF, foram registrados: na Amazônia, secas intensas em 2005 e 2010 e enchentes em 2009, 2012, 2014 e 2015, e, no semiárido nordestino, desde 2011, a pior seca dos últimos sessenta anos (MARENGO & ALVES, 2015). Somem-se, ainda, as chuvas extremas e consequentes deslizamentos de terra em 2011 e 2013, na Região Serrana do Rio de Janeiro, que deixaram centenas de mortos; o tornado de Xanxerê (SC), em 2015; e inúmeros outros desastres registrados em todo território nacional pela Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil.

   Esses eventos enquadram-se nas projeções de aumento da frequência e da intensidade dos eventos extremos decorrentes das mudanças climáticas, do Intergovenmental Panel on Climate Change (IPCC) (MARENGO & ALVES, 2015; MARENGO et al., 2015). Tais projeções abrangem clima menos chuvoso no semiárido nordestino e na Amazônia, aumento do índice de chuvas anuais no sul e aumento das chuvas extremas e de longos períodos de seca no sudeste e no sul do Brasil (MARENGO & ALVES, 2015). Portanto, não se pode negligenciar a possível correlação entre os desastres ocorridos nos últimos anos e as mudanças climáticas e suas consequências para a população. Medidas adaptativas precisam ser adotadas, de forma a evitar que eventos extremos ocasionem desastres.

   De qualquer forma, apenas a anomalia meteorológica não explica a situação hídrica de 2013 a 2015 no Sudeste do Brasil. Os especialistas reiteram que essa era uma crise anunciada, que teve o precedente da “crise do apagão”, em 2001/2002 (MARENGO et al., 2015), quando houve rebaixamento dos reservatórios destinados à produção de energia e a população brasileira foi submetida ao racionamento (obrigatoriedade de reduzir 20% do consumo de energia).

   A crise hídrica na RMSP está relacionada também com o crescimento populacional e aumento da demanda de água, a falta de planejamento para atender essa demanda e a ausência de consciência coletiva sobre a redução do consumo e do desperdício (MARENGO et al., 2015). A Carta de São Paulo, resultante do encontro de dezesseis cientistas brasileiros para debater a crise hídrica, em novembro de 2014, sob os auspícios da Academia Brasileira de Ciências e da Academia de Ciências do Estado de São Paulo, afirma que:

   “Os dados apresentados mostram que os sistemas produtores de água – principalmente na região da macrometrópole paulista – não dispõem de capacidade suficiente para garantir as vazões necessárias ao atendimento da demanda atual e projetada, em especial de abastecimento público. Os sistemas de abastecimento foram projetados para dar garantia de 95% no suprimento de água. Esta garantia mostrou-se frágil face à severidade dos recentes eventos extremos de seca, indicando a necessidade de melhoria da segurança hídrica, especialmente em face de situações climáticas desfavoráveis.

   Em médio e longo prazo essa situação se complica ainda mais, uma vez que as demandas tendem ainda a crescer. É evidente a necessidade de obras para aumentar a capacidade de reservação e distribuição dos sistemas, obras estas que levarão um tempo considerável para serem concluídas.” (Carta de São Paulo, p. 13)

   Assim, na RMSP, o sistema de abastecimento não está projetado para enfrentar escassez hídrica, na ocorrência de eventos extremos. A situação se agrava em face das projeções de aumento da demanda.

   Já o DF está situado em região de clima tropical quente subúmido, com chuvas de verão abundantes, e abrange nascentes de três das grandes bacias brasileiras: Prata, Araguaia-Tocantins e São Francisco. Mas, por localizar-se em terras altas, constitui área dispersora de drenagem e não possui rios caudalosos. Por isso, sua disponibilidade hídrica é baixa – entre as três piores do Brasil, perdendo apenas para Paraíba e Pernambuco (OLIVEIRA, 2014).

   O abastecimento hídrico no DF é realizado principalmente por dois reservatórios: do Descoberto e santa Maria. Entre 1972 e 2017, a precipitação média no mês de janeiro foi de 247,4 mm. Em janeiro de 2017, a precipitação foi de 145,7 mm, ou seja, cerca de 58,9% da média climatológica (INMET, 2017). Naquele mês, o nível da água no reservatório do Descoberto, que abastece 65% da população do DF, estava em 18,94% (VELOSO, 2017), o que desencadeou o programa de racionamento. Em novembro de 2017, o nível da água no Descoberto chegou a 5,3%, enquanto no Santa Maria chegou a 21,6% (CARVALHO, 2018). Normalmente, na época seca, a retirada de água é maior que a entrada, no Descoberto. Em 2016, quando sobreveio a estiagem mais acentuada, a entrada foi menor ainda, ocasionando o racionamento (VELOSO, 2017).

   Entretanto, a falta de chuvas também não é a única explicação para a crise de abastecimento hídrico no DF. Houve aumento de consumo, devido ao crescimento populacional. Em 2010, a população do DF era de 2.570.160 habitantes, passando a 3.039.444 em 2017 (IBGE, s/d), o que dá um crescimento médio de 67.040 hab/ano. O consumo médio de água é elevado, de 184 l/hab/dia, acima do consumo médio nacional, de 150 l/hab/dia (VELOSO, 2017).

   Apesar dos inúmeros planos de ordenamento territorial elaborados para DF, os governos locais nunca lograram o controle efetivo da expansão urbana. Além de aumentar o consumo, o crescimento urbano desordenado afeta os sistemas de drenagem naturais, pela conversão de áreas verdes em solo impermeabilizado. Em áreas vegetadas, a água que cai na época das chuvas penetra lentamente o solo até chegar nos cursos dágua. O reservatório de água presente no solo alimenta os rios na estação seca. Mas quando o solo é impermeabilizado, ocorre escoamento abrupto, causando grandes alagamentos e enchentes. Além disso, a expansão urbana força a busca de mananciais cada vez mais distantes, como já ocorre na RMSP e ocorrerá no DF, com o uso da água do reservatório de Corumbá IV, situado em Goiás.

   O DF também enfrenta outros problemas ambientais, que afetam a disponibilidade e a qualidade de suas águas. De acordo com o Instituto Brasília Ambiental (IBRAM, s/d):

   Hoje já se afiguram situações de graves conflitos ambientais quanto a ocupação do solo e uso dos recursos hídricos em todas as principais bacias hidrográficas do Distrito Federal, podendo-se mencionar de forma sucinta alguns que já assumem proporções preocupantes, exigindo soluções de curto e médio prazos:

- na Bacia do Descoberto, onde se localiza nosso maior reservatório de água, manancial de abastecimento público de mais de um milhão de pessoas, há urgente necessidade de disciplinamento do uso do solo e do tratamento de esgotos dos novos núcleos urbanos surgidos nos últimos anos. Na área rural, o monitoramento e controle do uso de agrotóxicos e a racionalização dos processos de irrigação, visando garantir a preservação da qualidade e da quantidade de água, são medidas necessárias para a compatibilização da vocação agrícola da bacia com o abastecimento público de água.

- na Bacia do São Bartolomeu, a ocupação territorial desordenada, com a rápida transformação de áreas rurais em loteamentos com características urbanas, promoveram uma impressionante perda da vegetação natural, muitas vezes em áreas de preservação permanentes (matas de galerias, nascentes e veredas) além da impermeabilização de áreas de recarga natural dos aquíferos. A exploração intensiva das águas subterrâneas e o lançamento de esgotos sem tratamento em mananciais são problemas também identificados da bacia.

- na Bacia do Rio Preto, região onde predomina a atividade agropecuária, o uso intensivo dos recursos hídricos em sistemas de irrigação de grande porte associado a um período recente de baixos índices pluviométricos, provocaram uma sensível redução da disponibilidade hídrica nos períodos de estiagem, causando significativas perdas econômicas aos produtores rurais. Estudos realizados pela Secretaria de Agricultura do Distrito Federal em 1995 indicaram que a capacidade de suporte da exploração dos recursos hídricos para irrigação já está próximos do limite em alguns mananciais e já foi ultrapassada em outros, indicando a necessidade do gerenciamento do uso da água na bacia. Deve-se considerar, adicionalmente, o aproveitamento hidroelétrico do rio Preto, planejado para a UHE do Queimado, visando a compatibilização do uso múltiplo dos recursos hídricos.

- na Bacia do Rio Maranhão, o desmatamento de áreas de preservação permanente (matas de galeria), a extração irregular de areia e o lançamento de resíduos de origem animal em estado bruto, causando a poluição das águas, são apresentados como os principais problemas encontrados.

- na Bacia do Rio Corumbá, que caracteriza-se por apresentar alta declividade, solos de baixa fertilidade e com deficiência hídrica, a pouca cobertura vegetal tem facilitado o processo de erosão e o transporte de sólidos nesta bacia. Adicionalmente, o lançamento de esgotos sem prévio tratamento nos afluentes do rio Corumbá é hoje um sério problema para a manutenção da qualidade da água neste manancial que está sendo estudado como futura fonte para o abastecimento do Distrito Federal.

- na Bacia do Paranoá, área mais densamente ocupada dentro do Distrito Federal, [...] problemas de ligações clandestinas de esgoto e de drenagem pluvial têm provocado a redução da qualidade das águas de modo significativo em algumas partes do lago.

- na Bacia do Rio São Marcos, os principais afluentes do rio são Marcos apresentam forte tendência para a agricultura mecanizada, a irrigação via pivôs centrais e o uso intensivo de agrotóxicos. Nesta bacia, o controle do uso da água, medidas preventivas quanto a contaminação dos rios por agrotóxicos, assim como a preservação das matas ciliares são medidas importantes para a manutenção da quantidade e qualidade das águas na bacia.

   Em relação ao Entorno do Distrito Federal, [...] os Governos do Distrito Federal, de Goiás, de Minas Gerais, em conjunto com o Governo Federal, terão que estabelecer, necessariamente, uma ação conjunta para a solução dos problemas advindos do rápido crescimento populacional dos municípios adjacentes a Brasília. O ordenamento da ocupação territorial, a questão do abastecimento de água e do tratamento dos esgotos, são exemplos de questões que exigem a ação conjunta das três unidades da federação e do Governo Federal para o seu adequado equacionamento.

   Portanto, são inúmeros os problemas ambientais identificados nas bacias hidrográficas do DF, não apenas pela ocupação urbana desordenada, mas também pela atividade agrícola. A agricultura traz ameaças decorrentes do desmatamento (especialmente nas áreas de preservação permanente), da expansão da irrigação por pivôs centrais e da poluição por agrotóxicos.

  Assim, do mesmo modo como ocorreu em São Paulo, a crise hídrica no DF é o somatório de anomalia climática, impactos ambientais e falta de gerenciamento. Houve deficiência na gestão dos recursos hídricos, tendo em vista que a capacidade do sistema de abastecimento não acompanhou o crescimento urbano desordenado. E os impactos ambientais ocasionados pelas atividades urbana e rural comprometem a quantidade e a qualidade da água no DF, o que agrava o problema da escassez hídrica.

   Em relação ao Nordeste, a situação climática é diferente, mas os fatores que geram a crise se assemelham aos das demais regiões do país. A seca nordestina é um fenômeno natural, cíclico, inerente ao clima semiárido da região, que se caracteriza “por escassez de chuvas e grande irregularidade em sua distribuição; baixa nebulosidade; forte insolação; índices elevados de evaporação, e temperaturas médias elevadas (por volta de 27ºC). A umidade relativa do ar é normalmente baixa, e as poucas chuvas - de 250 mm a 750 mm por ano - concentram-se em espaço curto de tempo, provocando enchentes torrenciais. Mesmo durante a época das chuvas (novembro a abril), sua distribuição é irregular, deixando de ocorrer durante alguns anos e provocando secas” (EMBRAPA FLORESTAS, 2016).

  A seca é causada pela interferência da Zona de Convergência Intertropical e pelo El Niño, sendo de alta previsibilidade. O Brasil conta com sistema de previsão meteorológica que permite gerar quadros de probabilidade de ocorrência da seca para a estação seguinte. Há registros históricos de seca no Nordeste desde o século XVII, quando os portugueses começaram a adentrar o território brasileiro. (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2015).

   Historicamente, as ações desenvolvidas pelo Poder Público têm visado o “combate” à seca, privilegiando o atendimento emergencial. A infraestrutura hídrica atual não assegura suprimento capaz de manter o abastecimento da população e a continuidade das atividades econômicas durante a seca. A economia, pautada na produção agropecuária tradicional, não está adaptada às condições meteorológicas regionais (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2015).

   A população do semiárido ainda não suplantou as condições de pobreza. Nos anos recentes, o Programa Bolsa Família e o aumento do salário mínimo minoraram os efeitos da seca e evitaram o êxodo, mas a região ainda enfrenta renda familiar mensal inferior e taxa de analfabetismo três vezes superior aos índices nacionais. As defasagens socioeconômicas e de infraestrutura reduzem o impacto das políticas públicas, agravando os efeitos das secas (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2015).

   Destarte, o problema da região semiárida não é o clima, mas a falta de políticas públicas adequadas para as características regionais. Quando a seca sobrevém, a crise hídrica decorrente afeta toda a economia regional e as condições de subsistência. Os governos federal e estaduais atuam de forma paliativa, com suprimento emergencial de água e medidas assistencialistas. Mas não são instituídos programas de desenvolvimento adaptados às  características da região, como, por exemplo, o aproveitamento de seu imenso potencial de energia solar, plantio de espécies adaptadas à carência de água e extrativismo sustentável de sementes, frutos, madeira e resinas da Caatinga. A população permanece em ciclo pernicioso entre uma seca e outra, sem condições de superar o estado de pobreza.

   Acrescente-se que o Semiárido, juntamente com a Amazônia, está entre as regiões mais vulneráveis às mudanças climáticas. Os cenários do IPCC indicam, para o Nordeste brasileiro, períodos maiores sem chuva e pluviosidade menor, quando ela ocorrer. A seca que assolou o Nordeste entre 2012 e 2017 é considerada a pior dos últimos sessenta anos. Portanto, as condições meteorológicas tendem a piorar, o que exigirá esforço mais intenso de adaptação.

   Além da carência de infraestrutura de abastecimento e dos aspectos específicos das regiões afligidas pelas secas, devem-se destacar os problemas ambientais de ocorrência generalizada no território brasileiro, que afetam a segurança hídrica. Os principais são a poluição, que reduz a disponibilidade de água de boa qualidade, e o desmatamento, que afeta a infiltração da água, a recarga dos aquíferos e o escoamento da água para rios, lagos etc. A ocupação das áreas de preservação permanente, aliada à impermeabilização do solo, promove desastres, como o deslizamento de encostas e grandes inundações. Como afirmam Tundisi & Tundisi, 2015, p. 48:

   “Se o território das bacias hidrográficas continua a ser degradado, as matas destruídas e as várzeas ocupadas, os rios vão buscando reconquistar suas planícies de inundação naturais e inundações catastróficas tendem a ocorrer, com mais frequência e intensidade.”

   Especificamente em relação à crise hídrica no Sudeste, uma das hipóteses para a redução das chuvas está relacionada ao desmatamento da Floresta Amazônica. Como visto anteriormente, as pancadas de chuva no Sudeste são provocadas pelas frentes frias do sul, pela ZCAS e pelo JBN. Este bombeia ar úmido do Norte para o Sudeste do Brasil. Como o conteúdo de umidade do JBN é influenciado pela intensa evapotranspiração da floresta, o desmatamento da Amazônia acarretaria a redução da umidade do JBN e, consequentemente, reduziria o fluxo de ar úmido para o Sudeste (MARENGO & ALVES, 2015). Afirmam, ainda, os autores, que:

   [...] a longo prazo, experimentos de modelagem numérica na Amazônia sugerem que, nas próximas décadas, haverá diminuição de chuvas, aquecimento da Amazônia e anomalias no transporte de umidade para o sudeste da América do Sul, o que pode aumentar as chuvas intensas concentradas em poucos dias e com períodos secos, que, em alguns casos, podem se estender em duração, gerando secas mais intensas e longas, como as de 2014.” (p. 491)

   Portanto, o desmatamento e as mudanças climáticas poderão atuar de forma sinérgica, o que terá consequências sobre o transporte de umidade para o sudeste do Brasil.

   Por fim, deve-se mencionar a ocorrência de conflitos pelo uso da água, que acirram as crises de abastecimento hídrico da população, principalmente nas bacias submetidas a condições de escassez. Tais conflitos são gerados principalmente pelo uso de tecnologias altamente consuntivas de água na irrigação, como pivôs centrais, e a produção de energia por hidrelétricas, com sobreposição desse uso sobre outros (CIRILO, 2015).

 

Consequências da crise hídrica

   A redução do volume dos reservatórios tem diversos impactos sociais, econômicos e ambientais. No Sudeste, 80 milhões de pessoas foram afetadas, nos Estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais (TUNDISI & TUNDISI, 2015).

   Na RMSP, o impacto mais sentido foi a diminuição do fornecimento de água para as residências, com ocorrência de rodízio (dias sem água nas torneiras) e redução da pressão da água. O turismo às margens de represas e lagos foi seriamente afetado. Produtos alimentícios, como tomate, alface, cana-de-açúcar, laranja e feijão, tiveram seus preços aumentados (MARENGO et al., 2015).

   O fornecimento de energia foi seriamente atingido pela falta de água, provocando a elevação das tarifas em até 15%, em 2015, pela Câmara de Comercialização de Energia Elétrica do Brasil (MARENGO et al., 2015). A perda de produção de energia hidrelétrica teve que ser compensada com energia termelétrica, aumentando a emissão de CO2.

   O número de incêndios florestais aumentou 150% no Estado de São Paulo e houve mortandade de peixes no rio Piracicaba (MARENGO et al., 2015). A redução do volume dos reservatórios agrava os problemas da saúde pública decorrentes da poluição, pelo aumento da concentração de substâncias tóxicas na água e de agentes biológicos causadores de doenças (TUNDISI & TUNDISI, 2015).

   No DF, 1.631.549 moradores das regiões abastecidas pelo reservatório do Descoberto e 557.820 habitantes das regiões abastecidas pelo reservatório de Santa Maria foram submetidas ao racionamento, que ainda perdura. Em um ano de racionamento (janeiro de 2017 a janeiro de 2018), a população ficou, em média, 60 dias sem água. Houve redução de consumo de 980l/s em 2017, 12% abaixo do consumo de água em 2016. O corte semanal de água é de um dia, mas o retorno da água é gradual, de modo que o impacto da falta de água é sentido por mais tempo (CARVALHO, 2018). No final de 2016, houve aumento da tarifa para consumo acima de 10.000 m3/mês.

   Dada sua baixa disponibilidade hídrica, o DF deverá buscar água em outros estados. A implantação de sistema de captação do reservatório de Corumbá IV, situado em Goiás, já está em andamento, além da captação do Lago Paranoá e outros sistemas menores.

   A seca que assola o Semiárido Nordestino desde 2011 já causou inúmeros prejuízos à produção pecuária e às safras agrícolas. Só no Estado de Pernambuco, foram perdidos 600 mil animais (PROFISSÃO REPÓRTER, 2017). Grande parte dos reservatórios artificiais entraram em colapso (CIRILO, 2015). Metade deles estava, em maio de 2017, com o nível da água abaixo de 10% (MADEIRO & GAMA, 2017). Mais de 300 cidades estavam sob racionamento, em março de 2017 (BOM DIA BRASIL, 2017). Nas regiões mais remotas, onde o caminhão-pipa não consegue chegar, muitos habitantes são obrigados a caminhar quilômetros para conseguir água (PROFISSÃO REPÓRTER, 2017). A Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil efetuou 849 reconhecimentos de estado de calamidade pública ou situação de emergência, em 2017, no Nordeste, por conta de seca/estiagem (SNPDC, 2017). Aumentam as frentes de serviços e o tráfego de caminhões-pipa.

   Assim, água é elemento essencial da vida e os impactos de sua escassez se fazem sentir em todas as esferas sociais, econômicas e ambientais.

 

Medidas preventivas e mitigatórias

   No Brasil, o abastecimento hídrico da população tem sido provido principalmente por construção de barragens e formação de reservatórios, aumento da exploração dos aquíferos e transferência de bacias mais distantes e menos exploradas. Essas ações têm limites e acabam se tornando alternativa cada vez mais caras (CIRILO, 2015). As soluções têm que ser integradas, combinando-se engenharia com ecologia (TUNDISI & TUNDISI, 2015).

   A seguir, são apresentados exemplos de ações que, se implantadas em conjunto, contribuirão para a melhoria da gestão dos recursos hídricos no Brasil:

- aumento da eficiência do sistema de transporte da água, com redução das perdas de água nos sistemas de distribuição;

- educação para a redução do consumo como medida permanente – e não apenas nas fases de racionamento;

- aproveitamento de águas pluviais;

- aproveitamento de água bruta e de águas servidas em usos que não requerem água tratada, menos exigentes em qualidade, como resfriamento de máquinas em atividades industriais, rega de jardins e descarga hidráulica em domicílios;

- universalização dos serviços de saneamento básico (sistemas de abastecimento hídrico, coleta e tratamento de esgotos, coleta e tratamento de resíduos sólidos e drenagem urbana);

- monitoramento da qualidade e da quantidade da água em tempo real;

- controle do desmatamento e restauração ecológica, especialmente das nascentes;

- revitalização de bacias hidrográficas;

- implantação de áreas verdes nas cidades, para aumentar a permeabilidade dos solos (parques, áreas de preservação permanente etc.);

- conservação das águas subterrâneas como reserva estratégica;

- ampliação dos parques eólicos e solares, em substituição à produção hidrelétrica;

- uso de tecnologias menos consuntivas de água na agricultura irrigada;

- controle do desperdício de alimentos;

- capacitação de gestores e pesquisadores para uma visão sistêmica da gestão das águas; e

- implantação de sistema de alerta da população para ocorrência de eventos extremos.

 

Considerações finais

   Embora a escassez hídrica vivida no Sudeste, no DF e na região semiárida do Brasil tenha relação com eventos meteorológicos extremos, as causas da crise são decorrentes, principalmente, da carência de gestão adequada e eficiente dos recursos hídricos. O aprimoramento da gestão das águas é necessidade urgente no país e não será possível apenas com soluções de engenharia, ainda que seja essencial ampliar a infraestrutura de abastecimento. O aprimoramento da gestão dos recursos hídricos depende de uma visão integrada, tendo a bacia hidrográfica como unidade de planejamento territorial, levando em conta suas características ecológicas e as necessidades sociais e econômicas da população.

   A escassez de água também resulta dos impactos ambientais das atividades humanas. A poluição reduz a água de boa qualidade disponível para a população. O desmatamento desorganiza o ciclo hidrológico, na medida em que contribui para que as nascentes sequem e as águas das chuvas escoem de forma acelerada para os rios, causando alagamentos e inundações. Em todas as atividades econômicas, é preciso produzir com menor consumo, reduzindo os desperdícios e utilizando fontes alternativas (como águas pluviais e águas servidas). Também é urgente combater o mau uso do solo urbano e rural.

   O Brasil deve se preparar para a intensificação dos eventos extremos, considerando-se as projeções do IPCC. O planejamento do uso dos recursos hídricos deve considerar essas projeções, como estratégia para evitar que os eventos extremos se transformem em desastres naturais.

   Por fim, deve-se ressaltar que a crise hídrica não é resultado da falta de leis. O Brasil conta com extensa base legal que oferece diretrizes mais que suficientes para gerenciar eficientemente os recursos hídricos e o meio ambiente. O que o país requer, com urgência, é a correta aplicação dessas leis.

 

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2018-1943



[1] Disponível em: https://www.meioambiente.uerj.br/emrevista/documentos/haia.htm. Acesso em 26fev.2018.