Blog da Representação Brasileira no Parlamento do Mercosul
O Irã e a questão do desarmamento
ANTECEDENTES: IRAQUE E BUSTANI
I. Quando o regime do Xá Reza Pahlevi foi derrubado pela revolução dos aiatolás, Washington logo vislumbrou em Saddam Hussein um aliado capaz de fazer frente ao “perigo xiita”.
II. Saddam, que era sunita e havia instituído um regime essencialmente laico, se constituía no candidato ideal. Ele foi armado de forma substancial pelos EUA e seus aliados e incentivado a promover uma guerra contra o Irã. Para tal finalidade, Washington vendeu a Saddam todos os precursores químicos necessários para fabricação de gás mostarda e Sarin, bem como armas convencionais em abundância, e até mesmo antraz em sua forma “molhada”, menos eficaz que em sua forma “seca” (esporos), mas igualmente perigosa.
III. Tais armas foram usadas à exaustão contra os iranianos, inclusive contra a população civil. O governo norte-americano em nenhum momento protestou contra tal uso. A famosa ofensiva contra os curdos, hoje tão usada por Washington para demonstrar a ferocidade de Saddam Hussein, teve o aval do governo norte-americano, pois havia o perigo concreto de que os curdos do Iraque se unissem aos iranianos.
IV. As Nações Unidas chegaram até a emitir comunicados denunciando o extenso “uso de armas de destruição em massa na guerra” naquele conflito, especialmente o gás mostarda, mas, por pressão dos EUA, não mencionou especificamente o Iraque.
V. Essa guerra entre o Irã e o Iraque, mais conhecida como a “Guerra Imposta”, por motivos óbvios, matou mais de 500.000 pessoas e deixou profundas marcas no Irã. Esse país sentiu-se cada vez mais isolado e ameaçado.
VI. Porém, como todos sabem, as relações Washington/Baghdad começaram se deteriorar e chegaram ao rompimento depois que Saddam Hussein, com seu país falido após a guerra, decidiu ocupar o Kuwait, pois este se recusava a diminuir sua produção de petróleo, puxando o preço dessa commodity para baixo.
VII. Na guerra que se seguiu, a Guerra do Golfo, o Iraque foi intensamente bombardeado pela força aérea dos EUA. Tais bombardeios tiveram como um dos seus alvos principais os depósitos e fábricas de armas daquele país. Como os norte-americanos tinham sido o principal fornecedor de armas para o Iraque, Washington sabia muito bem o que e onde atacar. O resultado foi a eliminação da maior parte do arsenal químico, biológico e convencional de Saddam Hussein.
VIII. Ademais, ao término da guerra, o Iraque foi submetido a um rigoroso embargo comercial e, durante 7 anos, às inspeções sobre desarmamento da ONU. Assim, o pouco armamento químico, biológico e convencional que restou da Guerra do Golfo foi destruído pelo próprio governo do Iraque, inclusive 13.000 cápsulas de gás mostarda e mais de 800 mísseis Scud.
IX. O país ficou em frangalhos, tanto econômica como militar e socialmente. Conforme dados da UNICEF, a mortalidade infantil aumentou mais de 160%, ao longo da década de 90. Doenças que haviam sido erradicadas, como o tifo e a cólera, voltaram a se manifestar intensamente. Os hospitais de Bagdá e outras grandes cidades iraquianas ficaram repletos de crianças, muitas delas sofrendo efeitos teratogênicos mal explicados. Como não havia geração de empregos, o governo iraquiano teve de distribuir cestas básicas para boa parte da população, a fim de evitar que as pessoas morressem de fome. A infraestrutura civil e militar estava seriamente comprometida. O exército iraquiano ficou com sua capacidade operacional extremamente reduzida, e não teria conseguido articular ofensivas contra ninguém.
X. Washington sabia perfeitamente disso, mas passou a ter o firme interesse na deposição de Saddam, que, de “aliado confiável” na guerra contra o Irã, havia passado à condição de “ditador perverso”. Os EUA queriam o acesso seguro ao petróleo iraquiano, ao preço mais baixo possível, e a instituição de um novo regime “pró-Ocidente”.
XI. Começou, então, uma campanha para pintar Saddam como uma séria ameaça aos seus vizinhos e ao mundo. Difundiu-se que Saddam ainda tinha armas de destruição em massa e que estava disposto a usá-las, assim que tivesse a oportunidade.
XII. A exposição feita por Collin Powell no Conselho de Segurança da ONU constituiu-se em exemplo cabal de como informações podem ser manipuladas sem critérios. Fotos de satélites que mostravam bases militares com caminhões e bulldozers foram apresentadas como "provas inequívocas" de que o Iraque tinha armas de destruição em massa e as estava movimentando e escondendo. Cápsulas vazias e abandonadas de armas químicas foram consideradas como "evidências incontestáveis" de que o Iraque não estava cumprindo a Resolução 1441 da ONU, que o obrigava a se desarmar. Os dois mísseis Al-Samoud, que poderiam, em tese, superar o alcance máximo permitido pela ONU de 150 km, chegando (pasmem!) a 170 km, caso tivessem um bom sistema de orientação, também foram apresentados como uma “séria violação” da Resolução 1441.
XIII. Ora, o próprio chefe dos inspetores da ONU, Hans Blix, se encarregou de contestar tais falácias, argumentando que essas informações não se constituíam em "provas" de que o Iraque não estava cumprindo a Resolução 1441. Ademais, Hans Blix criticou o que ele chamou de "serviços de inteligência de certos países", que diziam ter provas de que o Iraque tinha armas de destruição em massa, mas não as repassavam para os inspetores da ONU.
XIV. Na realidade, o governo do Iraque vinha cooperando ativamente com os inspetores da ONU. Os inspetores se deslocavam livremente por aquele país e realizavam inspeções, sem aviso prévio, em quaisquer instalações. O Iraque permitiu até que aviões espiões U2 sobrevoassem seu território para vasculhá-lo por inteiro. Não adiantou nada, é claro.
XV. Washington já havia decidido ir à guerra e depor Saddam. Havia razões de ordem geopolítica e estratégica. A Arábia Saudita vinha se tornando um aliado incerto, face ao grande crescimento do fundamentalismo islâmico. Lá estão os locais sagrados do Islã. Muitos muçulmanos, inclusive sauditas, consideram um sacrilégio que a terra do profeta seja maculada por bases norte-americanas. Assim, a derrubada do governo de Saddam Hussein asseguraria aos norte-americanos o controle do país que tem a segunda maior jazida de petróleo do mundo, e um vasto território para instalar novas bases na região. Além disso, as empresas norte-americanas lucrariam muito com a futura reconstrução do Iraque, a qual seria financiada com o petróleo iraquiano.
XVI. Foi nesse contexto da “guerra anunciada contra o Iraque” que o embaixador José Maurício Bustani foi exonerado da Organização para a Proibição de Armas Químicas (OPAQ).
XVII. Saliente-se, em primeiro lugar, que a Convenção para a Proibição de Armas Químicas é um dos mais importantes instrumentos de desarmamento e pacificação que há no cenário internacional, dada à sua natureza não-discriminatória e aos seus eficazes mecanismos de controle. A OPAQ, entidade de direito internacional público criada no âmbito da referida Convenção, é de fundamental relevância para a implantação efetiva dos dispositivos daquele ato internacional.
XVIII. Pois bem, o embaixador brasileiro José Maurício Bustani havia sido eleito e reeleito para dirigir a OPAQ pela unanimidade dos 145 países que já tinham ratificado a Convenção. Isso não aconteceu por acaso. Em sua gestão à frente da OPAQ, o embaixador José Maurício Bustani primou pela competência, lisura e espírito democrático, tendo conseguido, em apenas 5 anos, aumentar as ratificações à Convenção em 67%. Ademais, ao longo da gestão do embaixador José Maurício Bustani, a OPAQ realizou mais de 1.100 inspeções em todo o mundo e conseguiu reduzir as armas químicas em 1/3.
XIX. Em relação ao Iraque, a estratégia de Bustani era atraí-lo para a OPAQ e fazê-lo submeter-se às suas inspeções. Assim, o regime de Saddam Hussein firmaria compromisso multilateral quanto à renúncia ao desenvolvimento e uso de armas químicas.
XX. Ora, isso contrariava aos interesses dos EUA, que já haviam decidido, há algum tempo, pela invasão do Iraque. A possível entrada desse país na OPAQ fragilizaria o álibi que seria usado para justificar a futura invasão, qual seja: o de que o Iraque possuía armas de destruição em massa, especialmente armas químicas, e se recusava a destruí-las. Saliente-se que, no Conselho de Segurança da ONU, os EUA tinham e têm o poder de veto. Mas, na OPAQ, as decisões tinham e têm de ser tomadas pela maioria, não existindo a possibilidade de veto.
XXI. Assim sendo, os EUA iniciaram uma campanha para destituir Bustani, o que acabou sendo conseguido.
XXII. Esses episódio demonstram claramente que a questão do desarmamento é usada, com certa freqüência, simplesmente para justificar pressões e intervenções sobre regimes considerados “perigosos”.
A QUESTÃO DO IRÃ
1. A República Islâmica do Irã caracteriza-se como república teocrática, composta predominantemente por mulçumanos xiitas (89% da composição étnica). Mas há também cristãos, zoroastrianos e judeus.
2. O Líder Supremo, indicado pela Assembléia dos Sábios, composta por clérigos, ocupa posição de natureza vitalícia e atualmente é o aiatolá Ali Kamenei. Trata-se da autoridade máxima do Irã que detém, além de atribuições no âmbito religioso, grandes poderes de decisão em assuntos dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Exerce, ainda, influência sobre os candidatos à Presidência da República e comanda as Forças Armadas do país.
3. Atualmente, o governo está controlado pela ala conservadora, o que desenha um quadro de retrocesso em relação à aproximação com o Ocidente alinhavada pelo ex-presidente Mohammad Khatami, que foi sucedido pelo conservador Mahmoud Ahmadinejad nas eleições de 2005.
4. O Governo de Ahmadinejad busca aproximar-se de países da América Latina, como estratégia para superar o isolamento a que foi submetido pelos Estados Unidos da América (EUA) e países da Europa Ocidental, principalmente em virtude das divergências em relação ao programa nuclear civil iraniano, que, apesar de ter sido submetido, nos últimos anos, às inspeções regulares da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), conforme o que preconiza o Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares (TNP), ratificado pelo Irã, é caracterizado como de natureza militar pelos governos daqueles países.
5. As relações bilaterais entre Brasil e Irã são cordiais. Porém, ainda estão abaixo das potencialidades. Vale reafirmar, entretanto, que as relações com a América Latina ocupam agora posição de destaque na política externa iraniana. Além disso, o Governo do Irã identifica afinidades entre as agendas globais de ambos os países e pretende incrementar a cooperação bilateral nos campos energético, de turismo, acadêmico, cultural e no âmbito dos direitos humanos e da Organização das Nações Unidas. O Brasil, por sua vez, visa ampliar a cooperação econômica e comercial com o Irã. Nos anos de 2006 e 2007, o Irã foi o principal mercado de exportação do Brasil no Oriente Médio, embora ainda ocupe o segundo lugar no comércio bilateral total com países daquela região. Em 2008 e 2009, houve queda no comércio bilateral, em função principalmente da crise, mas espera-se uma recuperação neste ano (2010).
6. O Irã é o sexto mercado consumidor de exportações decorrentes do agronegócio brasileiro. Assim, o Brasil é o principal fornecedor para o Irã de complexo de soja, milho, açúcar, carne bovina, papel e celulose. Merece ainda destaque a exportação de produtos de confeitaria, resíduos das indústrias alimentares, alimentos para animais e, por fim, veículos aéreos, automóveis, tratores e ciclos. Entre outros, o Brasil importa, principalmente, trióxido de molibdênio, uvas secas, pistaches frescos, couros e tapetes. Para o Irã, as importações de alimentos do Brasil e de outros países são vitais, pois aquele país tem somente cerca de 11% das suas terras com potencial para a agricultura. Assim, o Irã depende de importações de produtos agrícolas para a sua segurança alimentar.
7. No campo energético, cumpre ressaltar que o Irã, apesar de ser grande exportador de petróleo bruto possui reduzida capacidade no desenvolvimento de indústria de refinaria. Além disso, o aumento do consumo de combustíveis, acompanhado das conseqüências econômicas e ambientais, tem estimulado o Governo iraniano a encontrar alternativas energéticas, havendo, assim, espaço para iniciativas de cooperação bilateral nos ramos de biocombustíveis e transportes.
8. A recente visita de Ahmadinejad ao Brasil resultou na celebração de uma série de acordos (na área de energia, cooperação tecnológica, agricultura, educação, etc.) que podem conduzir a um grande estreitamento das relações bilaterais. Face à complementaridade econômica de Brasil e Irã, o potencial é, de fato, imenso. A perspectiva é de que o comércio bilateral, francamente favorável ao Brasil, possa ultrapassar US$ 10 bilhões em cinco anos.
9. Em relação ao programa nuclear iraniano, deve-se mencionar, em primeiro lugar, que o Artigo IV, § 1, do Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares (TNP), estabelece claramente que: Nada no presente Tratado será interpretado de modo a afetar o direito inalienável de todas as Partes do Tratado de desenvolver a investigação, produção e utilização da energia nuclear para fins pacíficos, sem discriminação e em conformidade com os artigos I e II deste Tratado.
10. Desse modo, os países que são signatários do TNP, como o Irã e o Brasil, têm o direito de desenvolverem programas nucleares para fins pacíficos. Saliente-se que, com o necessário combate às mudanças climáticas e os grandes progressos feitos na segurança das usinas nucelares, a geração de energia a partir de centrais nucleares, que não emitem gases do efeito-estufa, passou a ser novamente considerada como uma opção desejável ao uso dos combustíveis fósseis.
11. Contudo, o TNP, através do seu Artigo III, também determina que: Cada Estado não-nuclearmente armado, Parte deste Tratado, compromete-se a aceitar salvaguardas - conforme estabelecidas em um acordo a ser negociado e celebrado com a Agência Internacional de Energia Atômica, de acordo com o Estatuto da Agência Internacional de Energia Atômica e com o sistema de salvaguardas da Agência - com a finalidade exclusiva de verificação do cumprimento das obrigações assumidas sob o presente Tratado, e com vistas a impedir que a energia nuclear destinada a fins pacíficos venha a ser desviada para armas nucleares ou outros artefatos explosivos nucleares. Os métodos de salvaguardas previstos neste Artigo serão aplicados em relação aos materiais fonte ou físseis especiais, tanto na fase de sua produção, quanto nas de processamento ou utilização, em qualquer instalação nuclear principal ou fora de tais instalações. As salvaguardas previstas neste Artigo serão aplicadas a todos os materiais fonte ou físseis especiais usados em todas as atividades nucleares pacíficas que tenham lugar no território de tal Estado, sob sua jurisdição, ou aquelas levadas a efeito sob seu controle, em qualquer outro local.
12. O Irã alega, com certa razão, que vem se submetendo regularmente às inspeções da AIEA. Contudo, o surgimento de informações, a posteriori, sobre instalações antes não reveladas (como a de Qom, por exemplo), vem dando sustentação a certas desconfianças na Europa e nos EUA. Argumenta-se que haveria uma vertente secreta e militar do programa nuclear iraniano, não sujeita às inspeções.
13. Ademais, haveria razões de sobra para que o Irã investisse na chamada “dissuasão nuclear”. O objetivo principal não seria necessariamente Israel, como a imprensa divulga, mas sim outros vizinhos. Persiste, por exemplo, a preocupação com o Iraque, país com o qual o Irã ainda tem pendências de fronteira em sua região Sul. Além disso, há uma grande população xiita no Iraque (justamente no Sul daquele país), que sofre bastante discriminação. Mas a preocupação maior do Irã seria, na verdade, com o Paquistão, país de maioria sunita, aliado dos EUA, que já tem a bomba atômica e mísseis capazes de lançá-la a grande distância. O Afeganistão também incomoda, por ser também vizinho de maioria sunita já muito contaminado pelo fundamentalismo. Lembre-se que diplomatas iranianos foram sequestrados em Cabul há alguns anos atrás. Não bastasse isso, o Irã sofre grande pressão dos EUA desde 1979, quando houve a revolução dos aiatolás. Recorde-se também que o Irã está isolado e submetido a sanções econômicas e políticas desde aquela época. Assim, alguns analistas alegam que a tentação do Irã de construir armas nucleares seria muito grande.
14. O fato concreto, no entanto, é que ainda não há provas reais de que o Irã esteja atualmente empenhado nisso ou que já tenha capacidade técnica para fazê-lo. Alguns especialistas argumentam que as ultra-centrífugas do Irã não seriam ainda capazes de enriquecer o urânio a mais de 90%, que é o imprescindível para se produzir um artefato nuclear. Uma coisa é enriquecer o urânio a 20%, como eles já são capazes de fazê-lo, e outra é enriquecê-lo a mais de 90%, que é bem mais difícil. A menção do presidente Ahmadinejad a que o Irã já pode enriquecer urânio a 70% foi encarada, pela maior parte dos analistas, como mera fanfarronice.
15. Entretanto, persistem as dúvidas. O entendimento anunciado recentemente havia desanuviado o clima. Tal entendimento havia sido fechado entre o Irã, a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) e o chamado grupo P5+1 - formado pelos cinco países do Conselho de Segurança da ONU (Estados Unidos, Rússia, China, Grã-Bretanha e França) mais a Alemanha.
16. Por meio desse acordo informal, o Irã se comprometia a enviar o urânio (enriquecido em apenas 3,5%) a ser utilizado em seu programa para ser enriquecido no exterior (França, Rússia e Canadá) em 20%, de forma a ser utilizado posteriormente em usinas iranianas ou na fabricação de radioisótopos para fins medicinais.
17. A falência desse entendimento, aparentemente ocorrida em função da negativa dos EUA em firmar um pacto de não-agressão com o Irã (mesma exigência feita anos antes pela Coréia do Norte), levou Teerã a anunciar a sua recente de decisão de enriquecer por conta própria o seu urânio em 20%. Pode também ter pesado nesse fracasso a resistência do Irã em aceitar o enriquecimento do urânio na França. É que a França tinha um acordo de cooperação nuclear com o Irã, firmado na época do Xá, que previa instalação de usinas em Teerã. Com a mudança de regime, a França, que já havia recebido dezenas de milhões de dólares dos iranianos, se recusou a instalar os equipamentos e não devolveu o dinheiro.
18. De qualquer forma, retaliações unilaterais dos EUA a essa decisão não contribuirão. Embora os EUA se sintam agora mais motivados a intervir no Irã, alegando razões de segurança, é preciso considerar que tal intervenção também poderia ser motivada por assuntos políticos internos. Obama vem tendo dificuldades para desenvolver seu programa, particularmente seu projeto na saúde pública, e vê cair sua popularidade. Como se sabe, intervenções militares costumam aumentar a popularidade dos governantes norte-americanos e produzir consensos nacionais.
19. Contudo, a capacidade de intervenção dos EUA caiu muito, já que há muitas tropas comprometidas no Iraque e no Afeganistão. Assim, uma invasão por terra, com ocupação do território, não parece fazer parte de um cenário próximo. Não obstante, não se pode descartar uma ação aérea de bombardeio intenso contra instalações nucleares, militares e civis do Irã, além de um endurecimento das sanções, com ou sem aval do Conselho de Segurança.
20. O Brasil, por seu turno, continua a apostar na negociação diplomática e nos mecanismos de decisão multilaterais. Deixamos isso claro para Hillary Clinton. O Brasil considera que novas sanções ou intervenções poderão isolar ainda mais o Irã, levando-o a uma radicalização de consequências imprevisíveis e ao fortalecimento de suas alas políticas mais conservadoras. Ademais, um conflito com o Irã tornaria ainda mais instável o Oriente Médio, região de geopolítica muito sensível. Lembre-se ainda que o nosso país também tem um programa nuclear para fins pacíficos e tecnologia de ultracentrífugas, que precisam ser protegidos e reconhecidos.
21. O recente fortalecimento do protagonismo internacional do Brasil e sua atitude insofismável em prol do desarmamento (assegurado constitucionalmente e em vários tratados internacionais), o qualifica para intervir positivamente no assunto.
Brasília, em 02/03/2010
Marcelo Zero // Assessor da Liderança do PV na Câmara dos Deputados
A questão do algodão

I. Os acordos que resultaram da Rodada do Uruguai da OMC criaram uma grave assimetria. De um lado, permitiu-se que os países-membros daquela organização questionassem subsídios concedidos a produtos industrializados. Mas, de outro, decidiu-se que, ao longo de 10 anos após a conclusão da rodada, os subsídios concedidos a produtos agrícolas seriam considerados “irrecorríveis”.
II. Pois bem, o término desse dispositivo que impedia questionamentos sobre subsídios agrícolas, o qual ficou conhecido como a “Cláusula da Paz” (artigo 13 do Acordo sobre Agricultura), permitiu que o Brasil formulasse, em 2005, reclamação formal naquela organização contra os escandalosos subsídios que o governo dos EUA confere a cerca de 25.000 plantadores de algodão.
III. Com efeito, entre 1999 e 2003, os produtores norte-americanos de algodão receberam do governo ao redor de US$ 12,4 bilhões em subsídios, sendo que valor total da produção algodoeira dos EUA mal chegou, no período, a US$ 13, 9 bilhões. Isto representa uma taxa de subsídio de 89,5%.
IV. Tais subsídios distorcem inteiramente o mercado internacional de algodão, prejudicando países como o Brasil e, muito especialmente, as nações paupérrimas da África Subsaariana, várias das quais dependem da exportação dessa fibra para obter as suas parcas divisas.
V. De fato, no interregno acima mencionado, o preço mundial do algodão caiu de 72 para 29 centavos de dólar de dólar pela libra-peso. Nações como Burquina Faso, por exemplo, que depende quase que inteiramente da exportação de algodão, foram à falência.
VI. A decisão inicial do painel da OMC, que foi mantida, em definitivo, pelo Órgão de Apelação, instância máxima daquele organismo internacional, representa a primeira grande vitória de um país em desenvolvimento contra as políticas de subsídios agrícolas praticadas pelos países desenvolvidos. Ela permite, sem contestação possível, retaliações da ordem de US$ 900 milhões contra produtos e serviços dos EUA.
VII. Ela representa um marco histórico. A partir dela, as políticas agrícolas da União Européia, EUA, Japão, etc. puderam ser regularmente contestadas na OMC, o que deverá, no médio e longo prazo, abrir espaço para que os países em desenvolvimento possam aproveitar a sua produtividade na agricultura com a finalidade de ampliar a sua participação no comércio internacional.
VIII. Para se ter uma idéia das distorções provocadas pelos subsídios agrícolas, basta mencionar que as vacas européias e norte-americanas, esses simpáticos e abnegados quadrúpedes, recebem dos governos da União Européia e dos EUA cerca de US$ 2 por dia para a sua subsistência. Por outro lado, há ao redor de 1,2 bilhão de “bípedes implumes”, como Platão e Aristóteles definiam o ser humano, que sobrevivem nos países em desenvolvimento com US$ 1 ou menos por dia. Esta notável desigualdade nos rendimentos de quadrúpedes e bípedes não se deve, como poderiam pensar os mais afoitos, ao maior número de membros dos primeiros, o que equalizaria a renda per membrum de uns e outros, mas sim à essa escandalosa política de subsídios à agricultura que os países desenvolvidos praticam.
IX. Com efeito, o protecionismo dos países desenvolvidos, especialmente na área agrícola, causa prejuízos enormes à população das nações em desenvolvimento. Alicerçadas em picos tarifários, barreiras sanitárias e fitossanitárias, quotas e em cerca de US$ 360 bilhões ao ano de subsídios de todo tipo, as políticas agrícolas dos países desenvolvidos criam obstáculos muitas vezes intransponíveis para as exportações de commodities da agricultura, as quais são vitais para as economias de muitos países em desenvolvimento, notadamente os mais pobres. Mesmo para o Brasil, país que tem a nona economia mundial e pauta exportadora bastante diversificada, as exportações do chamado agronegócio são essenciais para a realização dos nossos grandes superávits comerciais.
X. Com a vitória no caso do algodão, o Brasil pode, agora, de forma irrecorrível, retaliar impondo sobretaxas contra produtos de origem norte-americana.
XI. A lista já anunciada é bastante criteriosa e incide sobre produtos supérfluos (cosméticos, por exemplo), ou sobre produtos que podem ser importados de outros países (trigo). Saliente-se que o governo já editou a Medida Provisória nº 482, de 2010, pela qual o Brasil pode também impor retaliação cruzada contra países que ferirem os direitos comerciais do Brasil.
XII. A retaliação cruzada é um mecanismo, admitido explicitamente nas regras da OMC, pelo qual um país pode retaliar comercialmente outro em áreas temáticas não diretamente vinculadas à disputa. Assim, prejuízos suscitados na comercialização de bens agrícolas podem, por exemplo, ser legalmente compensadas em áreas como propriedade intelectual e serviços.
XIII. Isso é o que Brasil pretende fazer com os EUA.
XIV. Mas por que o Brasil não optou, no caso do algodão, por retaliar apenas na importação dos produtos provenientes dos EUA, como se faz normalmente?
XV. É porque os países em desenvolvimento, como o Brasil, têm dificuldades em limitar importações sem prejudicar suas economias. Importamos dos EUA bens de capitais, maquinários e outros insumos que são vitais para o crescimento da nossa economia. A lista já anunciada, diga-se de passagem, não gera prejuízos sensíveis aos EUA.
XVI. A retaliação cruzada, que poderá incidir principalmente sobre direitos de propriedade intelectual e serviços de audiovisuais, não tem esse efeito negativo. Além disso, esse tipo de retaliação afeta mais os interesses de empresas norte-americanas, principalmente das grandes empresas farmacêuticas, de informática e de entretenimento, as quais poderão pressionar o governo dos EUA a rever sua política de subsídios agrícolas, pelo menos até certo ponto.
XVII. Em outras palavras, a retaliação cruzada não afeta nossos interesses, mas afeta bastante os interesses dos EUA. É uma escolha inteligente, feita com autorização da OMC.
XVIII. Isso não significa, entretanto que o Brasil necessariamente imporá a retaliação cruzada, ou ainda que a lista anunciada entrará em vigor. Podem e devem ser feitas negociações bilaterais a esse respeito. Numa conjuntura internacional ainda marcada pela queda do comércio mundial, não convém a nenhum dos dois países uma guerra comercial.
XIX. Em relação à possibilidade de “contrarretaliações” por parte dos EUA, devemos reafirmar que a decisão da OMC foi definitiva e contra ela não cabem mais quaisquer recursos. Assim, eventuais “contramedidas” dos EUA não teriam nenhum amparo no Direito Internacional Público, e se constituiriam, caso fossem implementadas, em medidas unilaterais que afrontariam os Acordos da OMC e a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, instrumentos ratificados pelo governo norte-americano.
XX. Não podemos deixar de enfatizar, mais uma vez, a extrema importância dessas medidas de retaliação para os interesses do Brasil e dos demais países em desenvolvimento que são exportadores agrícolas. Elas são fruto de uma vitória histórica de nosso país, que quebrou um paradigma sobre os subsídios à agricultura, que tanto prejuízo nos causam. Cabe a todos apoiá-las.
Marcelo Zero//Assessor da Liderança do PT na Câmara dos Deputados
CELAC, a nova instituição multilateral latino-americana
Reunidos em Cancún, no México, os governantes de 32 países latino-americanos resolveram criar a Comunidade dos Estados Latino-americanos e do Caribe, CELAC, que poderá ser presidida pelo Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, conforme sugestão do presidente venezuelano, Hugo Chávez. Apenas Honduras não participou do encontro de criação da CELAC, mas, no futuro será convidada a se integrar à nova organização regional.
A mais nova entidade multilateral latinoamericana, diferentemente da Organização dos Estados americanos, a OEA, não abrigará os EUA e o Canadá. A CELAC tem a integração regional como um dos seus principais objetivos.
Ainda sem um estatuto e sede comunitária, a CELAC atendeu a um desejo do presidente Felipe Calderón, do México, com o apoio irrestrito dos presidentes Hugo Chaves, da Venezuela, Raul Castro, de Cuba e Luiz Inácio Lula da Silva, do Brasil. A próxima reunião do novo ente multilateral está marcada para acontecer no mês de julho de 2011, na capital venezuelana, Caracas.
José Everaldo Ramalho // Assessor Técnico da Representação Brasileira no Parlamento do Mercosul
Outras Postagens