A questão do algodão

11/03/2010 10h30

                                                              Foto: Agrocim 

I. Os acordos que resultaram da Rodada do Uruguai da OMC criaram uma grave assimetria. De um lado, permitiu-se que os países-membros daquela organização questionassem subsídios concedidos a produtos industrializados. Mas, de outro, decidiu-se que, ao longo de 10 anos após a conclusão da rodada, os subsídios concedidos a produtos agrícolas seriam considerados “irrecorríveis”.

 II. Pois bem, o término desse dispositivo que impedia questionamentos sobre subsídios agrícolas, o qual ficou conhecido como a “Cláusula da Paz” (artigo 13 do Acordo sobre Agricultura), permitiu que o Brasil formulasse, em 2005, reclamação formal naquela organização contra os escandalosos subsídios que o governo dos EUA confere a cerca de 25.000 plantadores de algodão.

 III. Com efeito, entre 1999 e 2003, os produtores norte-americanos de algodão receberam do governo ao redor de US$ 12,4 bilhões em subsídios, sendo que valor total da produção algodoeira dos EUA mal chegou, no período, a US$ 13, 9 bilhões. Isto representa uma taxa de subsídio de 89,5%.

 IV. Tais subsídios distorcem inteiramente o mercado internacional de algodão, prejudicando países como o Brasil e, muito especialmente, as nações paupérrimas da África Subsaariana, várias das quais dependem da exportação dessa fibra para obter as suas parcas divisas.

 V. De fato, no interregno acima mencionado, o preço mundial do algodão caiu de 72 para 29 centavos de dólar de dólar pela libra-peso. Nações como Burquina Faso, por exemplo, que depende quase que inteiramente da exportação de algodão, foram à falência.

 VI. A decisão inicial do painel da OMC, que foi mantida, em definitivo, pelo Órgão de Apelação, instância máxima daquele organismo internacional, representa a primeira grande vitória de um país em desenvolvimento contra as políticas de subsídios agrícolas praticadas pelos países desenvolvidos. Ela permite, sem contestação possível, retaliações da ordem de US$ 900 milhões contra produtos e serviços dos EUA.

 VII. Ela representa um marco histórico. A partir dela, as políticas agrícolas da União Européia, EUA, Japão, etc. puderam ser regularmente contestadas na OMC, o que deverá, no médio e longo prazo, abrir espaço para que os países em desenvolvimento possam aproveitar a sua produtividade na agricultura com a finalidade de ampliar a sua participação no comércio internacional.

 VIII. Para se ter uma idéia das distorções provocadas pelos subsídios agrícolas, basta mencionar que as vacas européias e norte-americanas, esses simpáticos e abnegados quadrúpedes, recebem dos governos da União Européia e dos EUA cerca de US$ 2 por dia para a sua subsistência. Por outro lado, há ao redor de 1,2 bilhão de “bípedes implumes”, como Platão e Aristóteles definiam o ser humano, que sobrevivem nos países em desenvolvimento com US$ 1 ou menos por dia. Esta notável desigualdade nos rendimentos de quadrúpedes e bípedes não se deve, como poderiam pensar os mais afoitos, ao maior número de membros dos primeiros, o que equalizaria a renda per membrum de uns e outros, mas sim à essa escandalosa política de subsídios à agricultura que os países desenvolvidos praticam.

 IX. Com efeito, o protecionismo dos países desenvolvidos, especialmente na área agrícola, causa prejuízos enormes à população das nações em desenvolvimento. Alicerçadas em picos tarifários, barreiras sanitárias e fitossanitárias, quotas e em cerca de US$ 360 bilhões ao ano de subsídios de todo tipo, as políticas agrícolas dos países desenvolvidos criam obstáculos muitas vezes intransponíveis para as exportações de commodities da agricultura, as quais são vitais para as economias de muitos países em desenvolvimento, notadamente os mais pobres. Mesmo para o Brasil, país que tem a nona economia mundial e pauta exportadora bastante diversificada, as exportações do chamado agronegócio são essenciais para a realização dos nossos grandes superávits comerciais.

 X. Com a vitória no caso do algodão, o Brasil pode, agora, de forma irrecorrível, retaliar impondo sobretaxas contra produtos de origem norte-americana.

 XI. A lista já anunciada é bastante criteriosa e incide sobre produtos supérfluos (cosméticos, por exemplo), ou sobre produtos que podem ser importados de outros países (trigo). Saliente-se que o governo já editou a Medida Provisória nº 482, de 2010, pela qual o Brasil pode também impor retaliação cruzada contra países que ferirem os direitos comerciais do Brasil.

 XII. A retaliação cruzada é um mecanismo, admitido explicitamente nas regras da OMC, pelo qual um país pode retaliar comercialmente outro em áreas temáticas não diretamente vinculadas à disputa. Assim, prejuízos suscitados na comercialização de bens agrícolas podem, por exemplo, ser legalmente compensadas em áreas como propriedade intelectual e serviços.

 XIII. Isso é o que Brasil pretende fazer com os EUA.

 XIV. Mas por que o Brasil não optou, no caso do algodão, por retaliar apenas na importação dos produtos provenientes dos EUA, como se faz normalmente?

 XV. É porque os países em desenvolvimento, como o Brasil, têm dificuldades em limitar importações sem prejudicar suas economias. Importamos dos EUA bens de capitais, maquinários e outros insumos que são vitais para o crescimento da nossa economia. A lista já anunciada, diga-se de passagem, não gera prejuízos sensíveis aos EUA.

 XVI. A retaliação cruzada, que poderá incidir principalmente sobre direitos de propriedade intelectual e serviços de audiovisuais, não tem esse efeito negativo. Além disso, esse tipo de retaliação afeta mais os interesses de empresas norte-americanas, principalmente das grandes empresas farmacêuticas, de informática e de entretenimento, as quais poderão pressionar o governo dos EUA a rever sua política de subsídios agrícolas, pelo menos até certo ponto.

 XVII. Em outras palavras, a retaliação cruzada não afeta nossos interesses, mas afeta bastante os interesses dos EUA. É uma escolha inteligente, feita com autorização da OMC.

 XVIII. Isso não significa, entretanto que o Brasil necessariamente imporá a retaliação cruzada, ou ainda que a lista anunciada entrará em vigor. Podem e devem ser feitas negociações bilaterais a esse respeito. Numa conjuntura internacional ainda marcada pela queda do comércio mundial, não convém a nenhum dos dois países uma guerra comercial.
 
 XIX. Em relação à possibilidade de “contrarretaliações” por parte dos EUA, devemos reafirmar que a decisão da OMC foi definitiva e contra ela não cabem mais quaisquer recursos. Assim, eventuais “contramedidas” dos EUA não teriam nenhum amparo no Direito Internacional Público, e se constituiriam, caso fossem implementadas, em medidas unilaterais que afrontariam os Acordos da OMC e a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, instrumentos ratificados pelo governo norte-americano. 

 XX. Não podemos deixar de enfatizar, mais uma vez, a extrema importância dessas medidas de retaliação para os interesses do Brasil e dos demais países em desenvolvimento que são exportadores agrícolas. Elas são fruto de uma vitória histórica de nosso país, que quebrou um paradigma sobre os subsídios à agricultura, que tanto prejuízo nos causam. Cabe a todos apoiá-las.


Marcelo Zero//Assessor da Liderança do PT na Câmara dos Deputados

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