Texto Base da Consultoria Legislativa

 

MOBILIDADE URBANA

Maria Sílvia Barros Lorenzetti
Consultora Legislativa da Área XIII - Desenvolvimento Urbano, Trânsito e Transportes

Dezembro/2015


 Versão em pdf: Mobilidade urbana

 1. INTRODUÇÃO

O Brasil passou, na última metade do século XX, por um processo de urbanização intenso e acelerado, que se fundamentou, de um lado, na mecanização da atividade agrícola, que liberou um grande contingente de pessoas do campo, e, de outro, na industrialização, que levou um expressivo contingente populacional para o meio urbano. Esse fenômeno levou o País, em apenas trinta anos, de 1940 a 1970, de um cenário agrário-exportador para outro urbano-industrial.

Por outro lado, a urbanização brasileira também teve caráter concentrador, visto que as fábricas de bens de consumo duráveis estavam localizadas, majoritariamente, na região Sudeste e atraiu para lá indivíduos em busca de melhores oportunidades de vida. A construção de Brasília também representou outro foco de atração para as correntes migratórias desse período. O resultado pode ser visto nos números do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Segundo o Censo de 2010, cerca de 160 milhões de pessoas, ou 85% da população do País, viviam em cidades. Em junho de 2015, do total de 204 milhões de brasileiros, mais de 50% de indivíduos residem nas 71 regiões metropolitanas.

Paralelamente, o Poder Público apresentava um modelo de planejamento urbano inadequado, o qual, na prática, fomentava o transporte motorizado individual em detrimento do transporte coletivo e do não motorizado. Historicamente, o setor automotivo sempre ocupou posição de destaque na política industrial brasileira, por meio de favorecimento de crédito, concessão de incentivos fiscais e proteção alfandegária.

Outro fator de impacto nas condições de mobilidade urbana deriva da opção preferencial, no âmbito das políticas governamentais para o setor de transporte público coletivo, pelo modal rodoviário. A partir da instalação da indústria automotora no País, a concepção de modernidade associada ao veículo sobre pneus criaram condições propícias ao predomínio do rodoviarismo no Brasil, levando ao desmonte do transporte de passageiros sobre trilhos realizado em bondes elétricos em nossas maiores cidades, entre 1930 e 1960.

Com papel secundário, o transporte ferroviário urbano não oferece alternativas suficientes e eficientes aos ônibus, enquanto sistemas sobre trilhos subterrâneos, que começaram a ser implantados na década de 1970, ainda estão pouco desenvolvidos na maioria de nossas metrópoles. O transporte aquaviário, por sua vez, embora relevante na região Norte, por causa das grandes bacias hidrográficas ali existentes, mostra-se inexpressivo no restante do País, restringindo-se a breves travessias marítimas interurbanas.

Por outro lado, a ausência recorrente de diretrizes, políticas públicas e planejamento de mobilidade urbana, entre outros aspectos, permitiu que o automóvel e, mais recentemente, a motocicleta, como veículos individuais motorizados, sobrepujassem o transporte público coletivo, que, por deficiências na regulação e, sobretudo, na fiscalização, vem sendo marcado pela baixa qualidade. Veículos velhos, sem manutenção adequada e quase sempre lotados, além de horários irregulares e tarifas elevadas, fizeram prosperar, em meados dos anos 1990, o transporte pirata em vans e motos, aumentando ainda mais a saturação das vias públicas e a situação de imobilidade das grandes cidades.

O Poder Público, ao longo de todo esse processo, não foi capaz de prover a infraestrutura necessária no patamar da demanda sempre crescente. De fato, a insuficiência crônica de investimentos e de gestão resultou na degradação das condições de mobilidade urbana em nossas cidades, caracterizada pelo aumento dos congestionamentos, dos tempos de deslocamento e da poluição do ar e sonora, e da qualidade de vida urbana.

2. A BASE LEGAL DA MOBILIDADE URBANA

O ponto de partida para o exame da base legal é a Constituição Federal de 1988, cujo art. 21, inciso XX, atribui à União a competência para instituir diretrizes gerais para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transportes urbanos. O art. 182, caput, por sua vez, incumbe ao poder público municipal, nos termos das diretrizes fixadas, a tarefa de executar a política de desenvolvimento urbano, cujo objetivo é o de ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.

No tocante à operação dos serviços, a Carta Magna atribui à União os serviços internacionais e interestaduais, em qualquer modalidade (art. 21, inciso XII, alíneas "c", "d", e "e"), ficando a cargo dos Municípios "organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, inclusive o de transporte coletivo, que tem caráter essencial" (art. 30, inciso V). Por sua vez, o transporte intermunicipal (que inclui os sistemas metropolitanos), não referido explicitamente no texto constitucional, situa-se, a título de competência residual, na esfera estadual (art. 25, § 1º, da Constituição Federal).

Importa frisar o caráter essencial atribuído unicamente ao serviço de transporte coletivo, no art. 30, V, da Carta Magna. Esse dispositivo mostra a importância do serviço de transporte público, indispensável para garantir o acesso do cidadão a vários direitos sociais a ele assegurados, por exemplo, saúde, educação e trabalho. Tanto assim que, recentemente, o direito ao transporte foi inserido no rol desses direitos sociais, nos termos do art. 6º da Carta Magna.

Depois de anos de discussões, veio à luz a Lei nº 12.587, de 3 de janeiro de 2012, para instituir as diretrizes da Política Nacional de Mobilidade Urbana, em resposta ao comando do art. 21, XX, da Carta Magna. Considerado um passo muito positivo para a gestão de políticas públicas de mobilidade nos municípios brasileiros, a referida lei coloca o ordenamento jurídico brasileiro no patamar de primeiro mundo, ao trazer princípios, diretrizes, objetivos e medidas mitigadoras, cujo objetivo é o enfrentamento dos problemas relacionados à (falta de) mobilidade urbana, sobretudo nas grandes cidades brasileiras.

Entre as inovações trazidas pela Lei de Mobilidade Urbana, destacam-se o conceito de mobilidade urbana, que abrange a integração entre o transporte e o espaço urbano; a política tarifária, em especial quanto à diferenciação entre tarifa pública e tarifa de remuneração e à questão de descontos e das gratuidades; a acessibilidade universal; os instrumentos para efetivar a priorização dos modos de transporte não motorizados sobre os motorizados e dos serviços de transporte público coletivo sobre o individual motorizado; os direitos dos usuários; e o plano de mobilidade urbana como instrumento de efetivação da Política Nacional de Mobilidade Urbana.

A Lei de Mobilidade incorporou, no § 1º do art. 24, os critérios adotados na legislação do plano diretor, que constam do art. 41 da Lei nº 10.257/2001 (Estatuto da Cidade), como exigências para a elaboração do plano de mobilidade, o que, na prática, vincula os dois planos. No caso das regiões metropolitanas e das aglomerações urbanas, a Lei nº 13.089/2015 (Estatuto da Metrópole) prevê o compartilhamento de responsabilidades e ações entre os entes federados, em termos de organização, planejamento e execução do transporte público coletivo, caso essa função pública seja de interesse comum dos entes ali reunidos. Mais adiante, o Estatuto da Metrópole obriga as regiões metropolitanas e as aglomerações urbanas a elaborarem plano de desenvolvimento urbano integrado, aprovado por lei estadual.

A propósito, cabe registrar que o Estatuto da Cidade, no § 2º do art. 41, já obriga a elaboração de plano de transporte urbano integrado para municípios com mais de 500 mil habitantes, compatível com o plano diretor municipal ou nele inserido. Note-se que a preocupação com o transporte urbano era predominante naquela época, dando lugar, hoje, a uma visão mais ampla, que privilegia o deslocamento das pessoas no espaço urbano.

Por outro lado, ao disciplinar o estudo prévio de impacto de vizinhança (EIV), instrumento de que dispõe o Poder Público municipal para avaliar os efeitos das normas de uso, parcelamento e ocupação do solo no trânsito e no transporte urbano, e exigir a análise dos efeitos dos empreendimentos geradores de tráfego no âmbito do EIV, o Estatuto da Cidade mostrava a consciência da necessidade de consideração de questões de mobilidade no campo das políticas de desenvolvimento urbano.

A Lei da Mobilidade Urbana consolida esse entendimento, ao trazer, entre os princípios que a fundamentam, a equidade no uso do espaço público e a justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes desse uso, bem como a segurança nos deslocamentos das pessoas e a eficiência, a eficácia e a efetividade na circulação urbana. A visão abrangente é reafirmada nos objetivos da Lei, entre os quais destacam-se: proporcionar melhoria nas condições urbanas da população no que se refere à acessibilidade e à mobilidade; promover o desenvolvimento sustentável com a mitigação dos custos ambientais e socioeconômicos dos deslocamentos de pessoas e cargas nas cidades; e consolidar a gestão democrática como instrumento e garantia da construção contínua do aprimoramento da mobilidade urbana.

Não obstante esses marcos na legislação federal, cabe reforçar que, por força de competência conferida pela Constituição Federal, é na esfera da legislação municipal que a mobilidade urbana e a prestação de serviços de transporte público coletivo serão, de fato, reguladas. Os planos de mobilidade urbana devem ser aprovados por leis municipais, assim como o estabelecimento dos instrumentos de gestão do sistema de transporte e da mobilidade urbana, a que se refere o art. 23 da Lei nº 12.587/2012.

3. OS MODOS DE TRANSPORTE E SUA INTEGRAÇÃO

As diferentes modalidades de transporte são definidas com base em diversos fatores, como o tipo de tração do veículo, que pode ser motorizado ou não, a sua natureza, que pode ser pública ou privada, a quantidade de passageiros transportada, configurando o modo individual ou coletivo. No que concerne ao sistema viário utilizado, o transporte urbano ou de caráter urbano pode ser classificado em terrestre (rodoviário e ferroviário), aquaviário (fluvial, lacustre e marítimo), este último pouco relevante no Brasil.

Considerando apenas o transporte público coletivo, os diversos modelos de ônibus e suas formas de utilização (linhas convencionais, corredor de ônibus ou BRT) correspondem ao transporte rodoviário ou sobre pneus. A modalidade ferroviária, por sua vez, também pode contemplar veículos diversos, como o trem convencional, o Veículo Leve sobre Trilhos – VLT –, o metrô e o monotrilho.

Embora seja a modalidade de menor capacidade e mais baixa velocidade, o transporte rodoviário feito em ônibus convencional tem sido predominante na matriz de transporte público coletivo das cidades brasileiras. Como ponto positivo, há que se destacar o menor custo de implantação da modalidade e a maior flexibilidade para cobrir diferentes itinerários. Por outro lado, os sistemas de trens e metrôs, de alto custo de implantação, apresentam maior velocidade de deslocamento, mais conforto e segurança aos usuários, além da alta capacidade de transporte. Como sistemas intermediários, o BRT, sobre pneus, bem como o monotrilho e o VLT, têm crescido na preferência dos gestores públicos.

Na outra ponta, temos o transporte individual, que pode ser uma modalidade privada ou pública (serviço de táxi), representado, essencialmente, pelos automóveis, cujo maior apelo é a autonomia, a flexibilidade e o conforto para o usuário. Considerando que um carro médio transporta, no máximo, cinco passageiros por viagem, fica claro, portanto, o papel deletério que o uso excessivo do transporte privado tem nas condições de mobilidade urbana.

O crescimento da frota privada traz problemas, como: o aumento da poluição atmosférica e das doenças dela decorrentes; dos congestionamentos, da perda de tempo e do stress no trânsito; a carência crônica de estacionamentos; a diminuição da segurança para pedestres e ocupantes de veículos, com a elevação dos acidentes de trânsito; a ampliação do sistema viário, que é usado de modo desigual, pela prevalência do automóvel; e a consequente queda da qualidade de vida da população.

Não obstante, a crônica insuficiência de investimentos no serviço de transporte público coletivo, que resulta em baixa qualidade do serviço prestado, dificulta a migração de usuários do transporte individual para as modalidades de maior capacidade. Como alternativa para driblar os congestionamentos, sem perder as vantagens do automóvel, muitas pessoas, em anos recentes, passaram a adotar os veículos de duas rodas em seu cotidiano.

Esse fato pode ser facilmente visualizado nas ruas de nossas principais cidades, onde a frota de motocicletas em circulação, até os anos 1990, restringia-se a 1,5 milhão, do total de 20,6 milhões de veículo automotores (VASCONCELLOS, 2013, p. 80). Em 2004, segundo dados do Denatran , a frota em circulação alcançou 6 milhões de motocicletas, atingindo 19,3 milhões em 2014, ou seja, um incremento de 221,6%. Por outro lado, a participação das motos na frota total, que era de 86,7 milhões de veículos, passou a ser de pouco mais de 20%.

Também cresceu a utilização da bicicleta, que até há pouco tempo era vista como um veículo de lazer, cujo uso cotidiano como meio de transporte limitava-se às pessoas que não dispunham de acesso a outros meios de deslocamento. Levando-se em conta que as bicicletas podem cobrir de maneira confortável até dez quilômetros (ou o dobro disso, no caso das elétricas), o que corresponde a um percentual significativo dos deslocamentos urbanos diários, sua utilização poderia ter um incremento ainda maior. Entretanto, fatores como a carência de infraestrutura compatível, as dificuldades de integração com os modais públicos coletivos e, até mesmo, a falta de segurança pública inibem seu uso.

Assim, para garantir mobilidade e acessibilidade aos cidadãos, o Poder Público deve prover, além dos modais compatíveis com a realidade a ser atendida, cuja implantação depende do equacionamento entre demanda por transporte, delimitação orçamentária e oportunidades de financiamento, a integração desses modais, que é determinante à qualidade do serviço prestado. Dessa forma, fica assegurada ao usuário oportunidade de escolher trajetos e modalidades, como também transbordos feitos em terminais seguros e confortáveis, com o menor custo possível.

4. OS IMPACTOS DA IMOBILIDADE

A deterioração das condições de mobilidade urbana, representada pelo aumento dos congestionamentos e pela redução da qualidade dos serviços e da infraestrutura, tem levado ao aumento das deseconomias relacionadas ao setor, gerando significativo impacto para as economias das cidades e, consequentemente, para o desenvolvimento sustentável dos países.

Os custos relacionados à mobilidade podem ser de dois tipos: os internos ou privados, pagos pelo próprio usuário, e os externos. Os custos internos, representados pela aquisição, manutenção e operação do veículo, os impostos, as tarifas de transporte público, os seguros, o tempo de viagem e outros que afetam diretamente usuário, são sempre preponderantes na escolha de um modo de transporte para os deslocamentos. Os custos externos, que envolvem implantação de infraestrutura, acidentes, poluição, mudanças climáticas e outros, que afetam indiretamente o usuário, nem sempre são devidamente equacionados.

Estudo da Associação Nacional de Transportes Públicos – ANTP (2014) estimou alguns custos diretos e indiretos do transporte no Brasil, obtendo o que denominou de "custo total da mobilidade". Foram calculados dois custos externos (acidentes de trânsito e emissão de poluentes) e custos diretos, enquadrados como custos pessoais (recursos gastos pelos usuários para a utilização do transporte) e custos públicos (recursos gastos pelo Poder Público para o funcionamento do sistema). Nos termos desse estudo, os custos totais da mobilidade no Brasil, em 2012, foram de R$ 205,8 bilhões, dos quais R$ 163 bilhões foram atribuídos ao transporte individual e R$ 42,9 bilhões ao transporte coletivo. O custo por viagem que, em 2003, era de R$ 1,35 para o transporte coletivo e de R$ 4,65, para o transporte individual, subiu para R$ 2,11 e R$ 7,51, respectivamente, em 2012.

É importante observar, considerando a prevalência da modalidade rodoviária e, mais ainda, pelo automóvel privado no Brasil, que o transporte sobre pneus produz os mais elevados custos de externalidades negativas. Tal fato se dá pela alto gasto energético (mormente em combustível não renováveis) dos deslocamentos rodoviários, bem como pela grande proximidade do veículo com as pessoas, que resulta em muitos acidentes.

5. OS DILEMAS DO FINANCIAMENTO

A questão do financiamento da mobilidade urbana é, sem dúvida, um dos grandes entraves a serem resolvidos para a melhoria da situação hoje vivenciada. De um lado, os custos decorrentes da implantação e manutenção da infraestrutura crescem com o aumento da demanda por meios de transporte; de outro, as fontes tradicionais de financiamento vêm minguando consideravelmente. Além disso, os preços pagos pelo uso dos transportes públicos são inferiores aos custos totais e o sistema convive com um grande número de benefícios tarifários, o que leva a um aumento no número de viagens, a distorções nas escolhas de modais e na sobreutilização da infraestrutura.

Estudos nacionais e internacionais sobre mobilidade urbana (BANCO MUNDIAL, 2003) apontam no sentido de que as tarifas dos transportes urbanos devem refletir a totalidade dos custos sociais de todos os modais, isto é, aqueles associados às externalidades negativas dos deslocamentos. Não sendo assim, as vantagens auferidas pelos usuários em suas viagens viárias serão maiores do que o custo total adicional imposto à sociedade, gerando sobreutilização desses serviços. Defende-se, em tais estudos, que o preço pago pelo uso do transporte deve cobrir a prestação adequada e suficiente do serviço, a par de induzir a redução do impacto ambiental e da pobreza.

Considerando essa expectativa, fica claro que o financiamento por meio da tarifa é insuficiente, demandando o aporte de algum tipo de subsídio, saída que tem sido adotada por diversos países. Um dos argumentos para a participação pública no financiamento do transporte coletivo reside na constatação de que esse serviço, do ponto de vista de toda a sociedade, é um bem público, capaz de trazer benefícios mesmo para quem não o utiliza diretamente, o que permitiria seu financiamento também por tributos, e não somente por meio das tarifas cobradas.

Nesse contexto, o grande desafio é fazer com que os subsídios sejam traduzidos em redução de preços ou melhoria da qualidade dos serviços. Caso contrário, os subsídios podem resultar em benefícios à administração ou aos trabalhadores do setor, bem como em aumento das margens de lucro de operadores, sem produzir resultados positivos para os usuários. Portanto, há que se considerar não apenas o impacto fiscal da concessão de subsídios, como também seus reflexos sobre a eficiência do sistema.

Por outro lado, o modelo de cálculo das tarifas dos transportes coletivos no modal rodoviário segue metodologia proposta, em 1982, pela Empresa Brasileira de Planejamento de Transportes (Geipot) e por outras entidades, que foi revista em 1993, sem, no entanto, alterar sua lógica. Esse modelo, que considera os custos fixos do sistema e garante que eles serão repassados para os preços e, por isso, serão equivalentes à receita do operador, não estimula o aumento da eficiência do sistema. Faz-se necessário mudar essa sistemática de cálculo, objetivo pelo qual a Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU), a Frente Nacional de Prefeitos (FNP), a Associação Nacional de Transporte Público (ANTP) e o Fórum Nacional de Secretários e Dirigentes de Transporte Urbano e Trânsito têm envidado esforços.

Finalmente, outro aspecto que não pode deixar de ser considerado é o dos benefícios tarifários, como o que está previsto na Constituição Federal em favor das pessoas com idade superior a 65 anos. Em muitos Municípios, benefícios semelhantes são concedidos a estudantes, professores, pessoas com deficiência, policiais e bombeiros militares, entre outras categorias. Essas gratuidades não são, via de regra, financiadas com recursos orçamentários dos entes federados, sendo, portanto, repassadas para o preço das passagens. Além disso, os referidos benefícios impactam o número de viagens realizadas, seja pelo aumento dos deslocamentos seja pelo acréscimo de usuários, gerando fortes pressões orçamentárias.

Quanto ao financiamento da infraestrutura urbana no Brasil, as despesas têm sido custeadas, em essência, com recursos governamentais, que cobrem não apenas a construção de vias, como sua manutenção e operação e toda sorte de melhorias urbanas. Em regra, os usuários da mobilidade urbana não pagam pela utilização da infraestrutura, nem tampouco pelas externalidades produzidas por seus deslocamentos, arcando, apenas, com uma parte do custo total da utilização do transporte. Isso é particularmente verdadeiro em relação aos usuários do transporte individual, que contribuem decisivamente para as externalidades negativas – congestionamentos, poluição etc – sem concorrer para a redução desses impactos.

Esses custos de implantação e manutenção da infraestrutura urbana, entretanto, têm crescido exponencialmente, tendo em vista a expansão da demanda e a rapidez da incorporação de novos usuários aos sistemas de transportes. Além disso, a expansão horizontal das cidades leva a um aumento das necessidades de deslocamentos, bem como à elevação dos custos do transporte em decorrência do aumento da distância percorrida e da baixa renovação de passageiros ao longo do trajeto. Somem-se a esses custos elevados a escassez de recursos orçamentários no Brasil e a falta de políticas perenes de financiamento e investimento, para se chegar à situação de subfinanciamento dos investimentos hoje observada.

 

6. O PROBLEMA DA COOPERAÇÃO

A mobilidade urbana mostra-se como um desafio para União, Estados, Distrito Federal e Municípios, que necessitam atuar nesse campo interdisciplinar de políticas públicas de forma coordenada e cooperativa. Esse compartilhamento de responsabilidades tem sua base na própria Constituição Federal, que confere à União o papel de traçar diretrizes gerais, que irão nortear a atuação pública nesse campo.

Ao trazer para a norma legal tais diretrizes gerais, a União reservou para si papel central da Política Naciona de Mobilidade Urbana, como se pode depreender do art. 16 da Lei nº 12.587/2012 (Lei de Mobilidade Urbana), no qual estão listadas como suas atribuições: prestar assistência técnica e financeira aos Estados, Distrito Federal e Municípios, nos termos da Lei; contribuir para a capacitação continuada de pessoas e para o desenvolvimento das instituições vinculadas à Política Nacional de Mobilidade Urbana; organizar e disponibilizar informações sobre o Sistema Nacional de Mobilidade Urbana e a qualidade e produtividade dos serviços de transporte público coletivo; fomentar a implantação de projetos de transporte público coletivo de grande e média capacidade nas aglomerações urbanas e nas regiões metropolitanas; fomentar o desenvolvimento tecnológico e científico no campo da mobilidade urbana. Além disso, a União se impõe apoiar e estimular ações coordenadas e integradas entre Municípios e Estados em áreas conurbadas, aglomerações urbanas e regiões metropolitanas destinadas a políticas comuns de mobilidade urbana.

Não obstante, o Tribunal de Contas da União, em auditoria realizada em 2014, visando avaliar a governança da política pública de mobilidade urbana no tocante à coordenação e à coerência, entre outros aspectos, considerou que "o esforço cooperativo entre as esferas de governo é insuficiente para a adequada implementação dessa política" (TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO, 2015). O TCU indicou problemas quanto ao alinhamento entre as estratégias e as operações dos entes federados na política de mobilidade urbana e a articulação na elaboração dos planos e projetos, além de falta de coordenação na gestão da política local de mobilidade urbana, especialmente nas regiões metropolitanas.

Considerando as constantes mudanças na estrutura institucional do Governo Federal, com a criação, substituição e extinção de órgãos ligados ao desenvolvimento urbano, nota-se que a União tem-se eximido de estabelecer, como dela se espera, mecanismos efetivos de coordenação, cooperação, comunicação e cooperação.

Os Municípios, por sua vez, são chamados a assumir responsabilidades quanto ao planejamento, à execução e à avaliação da política de mobilidade urbana, bem como quanto à regulamentação e operação, diretamente ou mediante concessão, dos serviços de transporte urbano. Note-se que, dos mais de 5,5 mil Municípios brasileiros, 31% têm mais de 20 mil habitantes e, portanto, são obrigados legalmente a elaborar o plano diretor (conforme o Estatuto da Cidade) e o plano de mobilidade urbana (conforme a Lei de Mobilidade Urbana). Além desses, outros tantos enquadram-se nos demais critérios previstos pelo Estatuto da Cidade para exigibilidade do plano diretor, perfazendo um total de aproximadamente 3 mil Municípios legalmente obrigados a planejar a política de mobilidade urbana.

Esses Municípios apresentam realidades particulares, em termos de estrutura econômica e social, e nem sempre possuem condições de custear as despesas e os investimentos na área de mobilidade urbana. Em especial no caso de Municípios integrantes de regiões metropolitanas, onde uso do solo, transporte e sistema viário são temas de inequívoco interesse comum, é fundamental o estabelecimento de instrumentos de planejamento integrado, tanto no que concerne à gestão do território urbano como em relação à mobilidade.

Nesse quadro, destaca-se a recente edição da Lei nº 13.089, de 2015, conhecida como Estatuto da Metrópole, que veio complementar a legislação urbanística federal no que tange ao ordenamento de regiões metropolitanas e aglomerações urbanas. Apesar de não trazer disposições específicas no campo da mobilidade urbana, essa norma certamente terá repercussões nesse campo, uma vez que, entre outros temas, introduz o conceito de governança interfederativa, entendido como o compartilhamento de responsabilidades e ações entre entes da Federação em termos de organização, planejamento e execução de funções públicas de interesse comum, definindo uma estrutura institucional mínima para que isso aconteça.

No que respeita ao planejamento, o Estatuto da Metrópole obriga a elaboração do plano de desenvolvimento urbano integrado, instrumento que estabelece, com base em processo permanente de planejamento, as diretrizes para o desenvolvimento urbano da região metropolitana ou da aglomeração urbana. Embora ainda seja cedo para avaliar os efeitos do Estatuto da Metrópole, é indubitável que o sucesso da política de mobilidade depende da boa relação entre o plano de desenvolvimento urbano integrado da região metropolitana, o plano diretor de desenvolvimento urbano do município e o plano de mobilidade urbana.

De forma geral, a questão metropolitana desloca os processos decisórios em várias políticas públicas dos governos municipais para uma esfera em que estados e municípios necessariamente têm de atuar juntos. Nesse contexto, aparece a esfera estadual do poder público, que tem sido pouco atuante no que concerne à mobilidade urbana e cuja atuação como propulsor de políticas públicas nessa área deve ser resgatada.


7. DESAFIOS E PERSPECTIVAS

A evolução de um modelo de política pública setorial de transporte urbano, com suas evidentes limitações, para o conceito mais amplo da política de mobilidade urbana deixa claro que a atuação governamental deve considerar os diferentes modais de transporte com interação entre si e conectá-los com as decisões referentes ao ordenamento territorial urbano, sob pena de não conseguir alcançar eficácia, eficiência e efetividade. Importa compreender que a mobilidade urbana tem caráter transdisciplinar, a ponto de a Lei nº 12.587/2012 apontar, como a primeira das diretrizes da Política Nacional de Mobilidade Urbana, a integração desta com a política de desenvolvimento urbano. Sem essa integração, torna-se difícil avançar em soluções reais para a mobilidade e assegurar a consecução do objetivo principal da Lei de Mobilidade Urbana, de contribuir para o acesso universal à cidade.

A mudança no conceito implica mudança no foco, de uma preocupação quase exclusiva com a gestão dos deslocamentos das pessoas para as perspectivas da acessibilidade e do planejamento urbano. Mais do que geridos, os deslocamentos devem ser evitados, com a desconcentração dos polos de emprego, a adoção de medidas como o teletrabalho, o ensino à distância e outras que são viabilizadas pelas novas tecnologias de informação e comunicação.

Outra diretriz importante da Lei de Mobilidade Urbana é a priorização do transporte não motorizado sobre o motorizado e do transporte público coletivo sobre a modalidade individual. Trata-se de um desafio que precisa ser enfrentado para que as nossas cidades possam proporcionar às pessoas o acesso amplo e democrático ao espaço urbano, de forma segura, sustentável e socialmente inclusiva.

Entretanto, a despeito do discurso e de inúmeros programas e ações empreendidos pelo Governo Federal para concretizar essa diretriz, a já mencionada auditoria operacional do TCU (TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO, 2015) mostrou que esses programas e ações não têm obtido o êxito esperado. Cita-se, por exemplo, a política de incentivos fiscais para a aquisição de automóveis (IPI reduzido para aquisição de automóveis), que levou ao aumento da frota de automóveis e motocicletas. O relatório apresentado indica que a presença da União na política da mobilidade urbana deveria ser ampliada, pois os investimentos necessários em obras de infraestrutura são elevados para a maioria dos municípios brasileiros.

A esperada priorização do transporte coletivo e do não motorizado não se resolve com uma ação, mas com um conjunto de ações integradas, de diversos órgãos, que devem acontecer de forma simultânea e efetiva. Nesse contexto, a União pode participar subsidiando Estados e Municípios nas questões técnicas para a construção de adequado e sustentável desenvolvimento, o que inclui o treinamento das prefeituras e outros entes governamentais.

Além disso, verifica-se que, embora os desafios que se apresentam tenham mudado em decorrência das dificuldades crescentes de deslocamento no espaço urbano, a visão quanto à solução para os problemas de mobilidade ainda se mantém focada na ampliação da oferta de infraestrutura. Pouca atenção tem sido voltada para medidas de gestão da demanda e operação, que podem ir desde ações de engenharia de tráfego, passando pela restrição de circulação de determinados tipos de veículos até a taxação de usuários do transporte individual em favor de quem opta pelo transporte coletivo.

Do ponto de vista financeiro, há que se buscar o incremento das fontes de financiamento para a mobilidade urbana, que, atualmente, são poucas e escassas. Constituem-se, basicamente, de recursos federais inscritos no OGU e de fontes onerosas de financiamento com recursos majoritários do FGTS e do FAT. Além disso, a execução orçamentária tem sido, historicamente, aquém do montante previsto, fato que, muitas vezes, ocorre pela dificuldade que Estados e Municípios têm para cumprir os requisitos de acesso aos recursos disponíveis.

Entre as possibilidades em debate, tem-se discutido o aumento da participação dos usuários do transporte individual e do setor produtivo no no financiamento da mobilidade urbana no Brasil, seja por meio do aproveitamento do potencial arrecadatório do setor, seja por meio das parcerias público-privadas (PPPs). Apesar das resistências que deverá encontrar, a cobrança pelo uso de vias públicas, que já é adotada em outros países, além de constituir fonte de recursos, contribui para o aumento do uso do transporte público e para a redução do uso do transporte individual, aumentando a velocidade nas vias e, reduzindo, assim, os congestionamentos.

Finalmente, cabe registrar que o Centro de Estudos e Debates Estratégicos (Cedes) da Câmara dos Deputados, desenvolveu, com apoio de equipe técnica da Consultoria Legislativa (Conle), entre outubro de 2013 e agosto de 2015, um abrangente estudo sobre mobilidade urbana, cujos resultados estão reunidos em uma publicação, disponível, na íntegra, em: https://bd.camara.leg.br/bd/handle/bdcamara/25220.


REFERÊNCIAS

ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE TRANSPORTES PÚBLICOS. Sistema de Informações da Mobilidade Urbana. Relatório Comparativo 2003-2012. São Paulo: ANTP, jul. 2014. Disponível na página: https://www.antp.org.br/_5dotSystem/userFiles/SIMOB/Comp_Sum%20Exe_03_12_V1.pdf  Acesso em: 26 nov. 2015.

BANCO MUNDIAL. Cidades em Movimento: Estratégia de Transporte Urbano do Banco Mundial. São Paulo: Sumatra Editorial, 2003.

CÂMARA DOS DEPUTADOS. Notas Taquigráficas. II Seminário Internacional Mobilidade e Transportes: Mobilidade para Cidades Sustentáveis. Brasília: Câmara dos Deputados, 2014.

INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. A nova lei de diretrizes da Política Nacional de Mobilidade Urbana. Brasília: Ipea, 2012. Comunicados do Ipea n. 128. Disponível na página: https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/comunicado/120106_comunicadoipea128.pdf. Acesso em: 24 nov. 2015.

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TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. Relatório de Auditoria Operacional – Mobilidade Urbana. Brasília: TCU, 2015. Disponível em: https://portal3.tcu.gov.br/portal/page/portal/TCU/imprensa/noticias/noticias_arquivos/TC%20018%20005_2010-1.pdf. Acesso em: 30 nov. 2015.

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VASCONCELLOS, Eduardo A. Políticas de Transporte no Brasil: a construção da mobilidade excludente. Barueri, SP: Manole, 2013.

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