Texto Base da Consultoria Legislativa

 

TIPO DE TRABALHO: ESTUDOS E CONSULTAS - OUTROS

SOLICITANTE: CEDI

ASSUNTO: TEXTO BASE PARA O “FIQUE POR DENTRO” – TÍTULO: ECONOMIA DOS CUIDADOS

Autor:     Iuri Gregório de Sousa

                Consultor Legislativo da Área IX

                Política e Planejamento Econômicos, Desenvolvimento Econômico e Economia Internacional

 

                                                                                                                                                                                                                      Versão em PDF: Economia do Cuidado 

 

 

Introdução

 

Economia dos cuidados, de forma abrangente, poderia ser definida como a atividade, remunerada ou não, praticada por pessoas que se dediquem a promover o desenvolvimento, a manutenção de condições adequadas de vida e a recuperação da saúde das pessoas, bem como a assistência a incapazes.

Há uma multiplicidade de atividades que se configurariam como economia dos cuidados, há a atividade dentro das famílias realizadas de forma informal e sem remuneração, como o serviço doméstico, há atividades privadas, como clinicas de reabilitação ou de cuidados com idosos e há também atividades de entidades sem fins lucrativos, bem como do setor público, por meio de hospitais, creches, abrigos, etc.

A literatura acadêmica sobre o assunto convencionou chamar a atividade de cuidados como care, abrangendo a pluralidade de possibilidades de trabalho de cuidados. Portanto, ao longo deste texto, esse será o termo utilizado para se referir ao tema.

Ainda que o conceito de economia dos cuidados abranja atividades remuneradas, portanto, de certa forma visíveis ao mercado, o foco do presente trabalho será orientado ao segmento do care realizado de forma gratuita ou mediante pagamento não monetário, realizado principalmente no ambiente doméstico. Atividades como os cuidados a idosos providenciados por estabelecimentos privados, o tratamento de dependentes químicos em clínicas de recuperação, a atenção a crianças em organizações públicas ou privadas, o tratamento de enfermos em hospitais, são atividades relacionadas ao care, mas não serão o foco deste texto. A atenção será voltada às atividades do care não remunerado, principalmente o trabalho doméstico não remunerado, também conhecido como trabalho reprodutivo.

Não se quer dizer que a questão de atividades do care remuneradas não estejam isentas de pontos críticos, como é o caso da exploração das pessoas que realizam esse trabalho. A alta desigualdade de renda no país propicia a delegação da carga de trabalho reprodutivo dentro de famílias abastadas para mulheres de baixa renda sem qualificação profissional suficiente para assumirem outros postos de trabalho com maiores garantias.  De certa forma, o Brasil mostrou avanço considerável nesse ponto desde 2013 com a aprovação da Emenda Constitucional 72 de 2013, conhecida popularmente como PEC das Domésticas. Essa emenda, juntamente com regulamentações posteriores da matéria, tem permitido a equiparação das condições dos trabalhadores domésticos com outras classes de trabalhadores. O próprio atraso para que se tomassem medidas tão necessárias à equiparação dos empregados domésticos é um sintoma da desvalorização dessa classe.

 

1 – A DESVALORIZAÇÃO DO TRABALHO REPRODUTIVO

 

O trabalho reprodutivo, também conhecido como trabalho de reprodução, tem duas dimensões. A primeira dimensão diria respeito às atividades de reprodução humana propriamente dita, ou seja, as atividades de cunho eminentemente feminino orientadas à geração e desenvolvimento dos estágios iniciais da vida, como seria o caso da gestação, parto e amamentação. Uma segunda dimensão estaria atrelada ao suprimento de condições adequadas de sobrevivência e desenvolvimento de pessoas, como é o caso de manutenção do lar, educação e proteção de crianças e jovens, preparação de alimentos, limpeza de roupas e uniformes e, até mesmo, amparo afetivo e psicológico.

A denominação trabalho reprodutivo é bastante sugestiva, pois o termo reflete a sua relação com o trabalho orientado à produção de mercadorias e serviços disponibilizados ao mercado, ou seja, o trabalho produtivo. O trabalho produtivo, com valor identificável, dado que é realizado mediante pagamento, está intimamente relacionado com o trabalho reprodutivo, pois aquele depende do apoio deste para o seu efetivo desempenho. Ignorar a existência e a importância dessa relação mencionada dá ensejo à baixa valorização do trabalho reprodutivo pela sociedade.

O trabalho produtivo extrai suas forças, sua sustentação e estabilidade do trabalho reprodutivo. Tal como uma máquina que, para trabalhar em condições ótimas, necessita da adequada configuração, da constante lubrificação, de manutenção preventiva e corretiva, de energia e de outros insumos, o trabalhador produtivo não aparece de repente no chão de fábrica ou nos escritórios todos os dias de manhã por passe de mágica. Faz-se necessário um trabalho lateral que mantenha suas forças físicas e psicológicas. O homem ou a mulher que rotineiramente batem ponto em seus ofícios necessitam de um lar que providencie descanso, alimentação, higienização e sanidade mental para dar cabo de suas atividades laborais.

Compare-se a vida de um trabalhador solteiro ou divorciado com a vida de um trabalhador com companheiro em casa. O trabalhador que não tem um apoio em casa, tem custos relevantes para garantir condições físicas e psicológicas adequadas ao desempenho de suas funções. O trabalhador com cônjuge, nesse sentido, tem gastos consideravelmente menores, pois o trabalho reprodutivo realizado pelo cônjuge já satisfaz a maioria das necessidades do parceiro.

O trabalhador solteiro gasta seu auxílio alimentação em restaurantes, leva suas roupas para lavanderias, contrata diaristas para faxinas em seu lar, precisa eventualmente se ausentar do trabalho para resolver problemas domésticos que requeiram a presença de alguém na casa em horário comercial, contrata transporte para seus filhos, consulta-se com psicólogos para aliviar suas questões psicológicas, etc. Essas e outras questões são resolvidas mediante pagamento por serviços e bens a terceiros ou mesmo mediante a ausência forçada do trabalho, que, neste caso, significa perda de horas trabalhadas. Todos esses desembolsos ou ausências ao trabalho são contabilizados pelas estatísticas oficiais quando levantam o PIB e, portanto, têm significância econômica palpável.

O trabalhador que tem um cônjuge em casa pode levar comida de casa para o trabalho, tem suas roupas lavadas no ambiente doméstico, tem limpeza de seu lar realizada pelo companheiro ou companheira, não precisa se ausentar do trabalho para resolver assuntos domésticos, pode desvencilhar-se da tarefa de levar crianças a médicos ou escolas e pode encontrar apoio psicológico na própria residência.

De uma forma ou de outra, ambos trabalhadores têm suas necessidades físicas e psicológicas satisfeitas, entretanto aquela pessoa que ficou em casa e realizou um trabalho doméstico não recebeu pagamento efetivo por seus serviços, apesar de terem sido executados. Note-se, são trabalhos com evidente valor econômico, dado que pessoas solteiras pagariam por eles, mas que não são computados nas estatísticas oficiais. Essa realidade dá origem a uma curiosa e constrangedora frase: quando o patrão ou a patroa casa com seu empregado doméstico, diminui o PIB nacional!

O trabalho reprodutivo dedicado ao desenvolvimento de crianças e jovens tem, também, valor inestimável para a sociedade, dado que um trabalho bem desempenhado nesse aspecto resultará em pessoas mais bem capacitadas para futuramente mover as engrenagens socioeconômicas do país. Nesse caso, mais uma vez, há inegavelmente um grande valor na educação de crianças e jovens no ambiente doméstico, no entanto a falta de desembolso monetário pela atividade torna economicamente invisíveis seus benefícios.

 

2 – A DIMENSÃO AFETIVA DO CARE

 

Há um ponto de distinção relevante entre a maioria dos trabalhos do care e trabalhos de outra natureza - o care muitas vezes implica necessariamente uma relação olhos nos olhos. Há, assim, uma dimensão de afetividade que transcende as relações puras de mercado, essa afetividade amplifica o valor do trabalho tanto para quem dá quanto para quem o recebe. Para alguém que contrata serviços não relacionados ao care, por exemplo, os serviços de um pedreiro, não faz tanta diferença que o trabalho seja executado por uma pessoa com personalidade expansiva ou introspectiva, o importante é que o trabalho seja honesto e a obra final seja segura. Diferentemente, ao se contratar um serviço de uma babá, a mãe contratante almeja que a babá, além de cuidar objetivamente de todas as necessidades físicas dos filhos, também tenha uma afetividade sincera pelas crianças. Essa afetividade ultrapassa a relação financeira e torna a precificação monetária do trabalho insuficiente para dimensionar o real valor desse trabalho. Há ganhos não expressos em moeda por parte da mãe e também por parte da babá que acaba por criar laços afetivos com seus protegidos.

Numa abordagem estrutural, a parcela de trabalho do care que não demanda necessariamente uma relação direta entre quem dá e quem recebe o serviço, como, por exemplo, a limpeza de ambientes, lavagem de roupas e preparação de alimentos, tende a se tornar menos representativa no longo prazo, pois o avanço da tecnologia caminha no sentido de automatizar essas tarefas. Comprovam essa tendência a existência, em alguns lares, de robôs que aspiram pó e passam pano de chão automaticamente por toda casa.

Por sua vez, os trabalhos do care que impliquem uma relação frente a frente, justamente por não serem robotizáveis, não estariam sujeitos a essa tendência de queda. Em verdade, no que diz respeito a cuidados com idosos, por obra do envelhecimento da população, espera-se uma curva crescente da demanda desse tipo de cuidado. O governo do Japão, cuja população com mais de 65 anos perfaz cerca de 30% da população, já conta com programas para atrair estagiários asiáticos para suprir a carência de cuidadores de idosos.

A dimensão afetiva acaba por implicar tanto a preferência por trabalhadoras femininas quanto a maior disposição de trabalhadoras femininas para executar tais serviços, pois, com razão ou não, há certamente uma visão social de que as mulheres são dotadas de maior instinto protetor e afetivo. Ocorre que alguns trabalhos do care, conforme mencionado anteriormente, não estão sujeitos necessariamente a relações de afetividade, por exemplo a atividade de limpeza de uma casa. Entretanto há um cruzamento entre trabalhos que impliquem afetividade e aqueles que não têm essa implicação, pois, em muitos casos, por uma questão de economia de recursos, os dois trabalhos são executados pela mesma pessoa. Por esse prisma, pode-se argumentar que existe uma tendência natural à prevalência de mulheres nesse tipo de atividade.

Em outro prisma, a abordagem feminista sobre assunto, com razão, entende que a herança ideológica de uma sociedade que tinha como visão de mundo o papel do homem como trabalhador/provedor da casa e da mulher como administradora do lar causa impactos negativos na liberdade da mulher quanto a sua capacidade de escolha de seu ofício. Certamente a sociedade brasileira ainda é permeada por tal tipo de preconceito, a baixa representatividade feminina nesta Casa (em torno de 10% da totalidade dos deputados) deixa patente o quanto ainda há de divisão dos trabalhos na sociedade. Entretanto não se pode negar que, pelas razões arguidas no parágrafo anterior, ainda haveria naturalmente, em algum nível, predominância de mulheres no trabalho do care - uma questão exclusiva de oferta e demanda

 

3 – A DESIGUALDADE DE GÊNERO NOS TRABALHOS PRODUTIVOS E REPRODUTIVOS

 

Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD) trimestral para o primeiro trimestre do ano de 2017 indicam que 48% das mulheres com 14 anos ou mais de idade estavam fora da força de trabalho, enquanto apenas 28% dos homens com 14 anos ou mais de idade estavam fora da força de trabalho. A força de trabalho é composta pelas pessoas ocupadas em trabalhos remunerados ou que estejam à procura de trabalho remunerado. Note-se que fazer parte da força de trabalho parte de uma decisão individual, e se um percentual relevante de mulher não se propõe a oferecer seu trabalho, é razoável se pensar que uma parcela relevante já estaria ocupada em trabalhos domésticos não remunerados.

Ainda em análise das estatísticas do PNAD do mesmo período, os dados de horas habitualmente trabalhadas por semana no trabalho principal e em todos os trabalhos, das pessoas de 14 anos ou mais de idade, revelam que os homens trabalharam em média 41,1 horas semanais e as mulheres 36,8 horas semanais.

O reverso dessa moeda é justamente quanto tempo cada gênero se dedica semanalmente a afazeres domésticos. Os dados da PNAD de 2015 expõem de forma bastante clara a desproporção entre os sexos. A média no Brasil de horas semanais gastas em afazeres domésticos das pessoas de 16 anos ou mais de idade ocupadas era a seguinte: 10 horas semanais para os homens e 20,5 horas semanais para as mulheres. Os dados são claros, apesar de os homens passarem mais tempo em média em seu trabalho principal, as mulheres dedicam mais tempo aos afazeres domésticos. O resultado líquido desta conta mostra que a jornada total de trabalho, ou seja, trabalho principal mais afazeres domésticos, exige mais tempo de dedicação das mulheres do que dos homens.

É importante frisar que as estatísticas do parágrafo anterior dizem respeito a pessoas que têm alguma ocupação principal. Sendo assim, não foram computadas na média de horas de afazeres domésticos, portanto, as horas dedicadas por pessoas desocupadas. Em lares onde há um cônjuge com trabalho produtivo e outro com trabalho apenas reprodutivo, há certamente uma compensação em que o cônjuge com trabalho produtivo repassa a carga dos afazeres domésticos a seu parceiro. Nesse sentido, devido à maior incidência de famílias cujo homem é o único trabalhador produtivo do que de famílias cuja mulher é a única trabalhadora produtiva, há de se levantar a hipótese de que tais estatísticas estejam superestimando em algum nível a diferença de horas gastas em afazeres domésticos pelo homem ou mulher ocupados.

Os dados trazidos pelo Pnad sobre horas gastas em afazeres domésticos possivelmente mascaram uma realidade mais penosa para mulheres de baixa renda, pois, inegavelmente, famílias com poder aquisitivo para contratar serviços domésticos de terceiros acabam por diminuir a carga horária de afazeres domésticos das mulheres de tais famílias. Supõe-se então que caso as estatísticas fossem segmentadas por renda, muito possivelmente haveria uma forte associação entre baixa renda e mais quantidade de horas dedicadas a afazeres domésticos.

 

4 - A importância da quantificação e valorização dos trabalhos do care

 

Uma efetiva abordagem sobre a questão da economia dos cuidados poderia dar ensejo a políticas públicas que trariam ganhos relevantes à sociedade como um todo. Uma compreensão completa da estrutura e dos desdobramentos dos trabalhos do care orientariam ações governamentais no sentido de tornar mais eficiente o care, ao mesmo tempo que promoveria maior justiça social.

Veja-se o caso das famílias com crianças, que, obviamente, demandam a constante presença de um adulto para a sua guarda. Em famílias de baixa renda, o orçamento não comporta o pagamento de uma pessoa para cuidar das crianças, sendo assim, uma pessoa da família precisa estar em casa para executar a tarefa, ou seja, menos uma pessoa pode oferecer sua mão-de-obra no mercado para aumentar a receita do lar. É fato que muitas vezes irmãos mais velhos se encarregam de tais tipos de cuidados, mas a configuração da família moderna, cada vez mais enxuta, tende a reduzir essa possibilidade. Em pior situação estão mães solteiras, que inevitavelmente precisam providenciar o sustento da família. Essa é uma questão de grande relevância para muitas famílias brasileiras, mas que talvez não tenha tanta visibilidade para o poder público, pois há, no Brasil, um déficit generalizado de vagas em creches públicas. Construir vagas suficientes em creches tem um alcance muito maior do que facilitar a vida das famílias de baixa renda, tal ação possibilitaria em grande medida liberar a força produtiva retesada no domicílio. É um contrassenso que cada lar tenha de reter um adulto para cuidar de crianças, pois haveria uma economia de recursos da sociedade muito grande quando essas crianças são reunidas em creches onde um só adulto consegue dar atenção a dezenas de crianças.

No outro extremo do care, estão os cuidados com idosos. Nesse caso, a carga de trabalho dos cuidadores em média é maior do que aquela dedicada ao cuidado de crianças, pois a motricidade e autonomia para a satisfação das necessidades fisiológicas dos idosos são mais limitadas. Ademais, eventuais acidentes tomam proporções mais graves devido à menor tenacidade do corpo, o que exige atenção redobrada dos cuidadores. Mais uma vez, existe a possibilidade de liberar uma grande força de trabalho produtiva atualmente dedicada aos cuidados com idosos. Entretanto não é o caso de apenas ampliar asilos públicos, mas de garantir um ambiente digno e agradável o suficiente para que os familiares da pessoa idosa concluam que o nível de satisfação obtido num asilo poderia ser igual ou maior que os cuidados recebidos em casa.

Outros exemplos poderiam ser listados como a falta de transporte público escolar, falta de alimentação nas escolas e a falha de otimização das matrículas em escolas públicas que garantam a maior proximidade possível entre o lar e a escola. Todas são questões cujos desdobramentos vão muito além do aumento do bem-estar proporcionado às famílias pobres, pois a abordagem responsável do assunto diminuiria a carga de trabalho reprodutivo que poderia ser convertido em trabalho produtivo para a sociedade e maior renda para as famílias. Corrobora-se essa ideia a suposição de que o crescimento acelerado dos países industrializados após a Segunda Guerra deve-se, em grande parte, à entrada da mulher no mercado de trabalho, ou seja, a força outrora represada no trabalho reprodutivo transmudou-se em força produtiva relevante para tais países.

No campo legislativo, o adequado dimensionamento do valor do trabalho reprodutivo e das horas médias gastas em tais tipos de trabalhos diferenciadas por gênero possibilitariam discussões mais realistas, bem como proposições legislativas promotoras de adequada justiça social.

A atual discussão em torno da reforma previdenciária demonstra o quanto a falta de informação sobre o trabalho doméstico não remunerado pode levar a proposições legislativas descoladas da realidade. Inicialmente o governo tinha como meta a equiparação do tempo de aposentadoria entre homem e mulher, o que seria socialmente injusto caso a jornada da mulher seja maior por decorrência da extensão de seu tempo de trabalho em casa que, como já discutido nesse trabalho, é fundamental para a realização do próprio trabalho produtivo. Conforme já mencionado em parágrafo anterior, a média brasileira das horas gastas em trabalho reprodutivo para os homens foi de 10 horas semanais e, para as mulheres, foi de 20,5 horas semanais. Obviamente uma grande diferença que deveria ser levada à mesa de debates.

Ressalva-se um risco que existe em olhar cegamente esses números. Um erro tão grave quanto a desconsideração da diferenciação do trabalho reprodutivo feminino ou masculino é o oferecimento de propostas legislativas que tratem todas as mulheres de forma semelhante. Há claramente uma grande desproporção entre os tempos gastos em atividades domésticas por mulheres de baixa renda e mulheres de alta renda. As mulheres de alta renda podem contratar diaristas ou mensalistas para realizarem a maioria dos deveres da casa, além do mais podem contar com equipamentos domésticos modernos que diminuam sensivelmente a necessidade de trabalho, como é o caso dos robôs que limpam o chão sem intervenção humana. Nesse sentido, dar a uma trabalhadora com remuneração de vinte salários mínimos os mesmos benefícios previdenciários dados a uma trabalhadora de um salário mínimo é definitivamente descolado de critérios de justiça social. Medida mais adequada seria estimar o tempo gasto em atividades domésticas por homens e mulheres parametrizado por renda e, por meio dessa medida, escalonar a concessão de benefícios.

 

5- Levantamento do PIB do trabalho reprodutivo

 

A quantificação do valor agregado à economia do Brasil decorrente do trabalho reprodutivo seria essencial a seu processo de valorização do care no país. Apesar da importância dessa quantificação, ainda hoje o país não conta com estimativas oficiais desse valor coletadas periodicamente.

A Organização das Nações Unidas dispõe de um órgão técnico dedicado a preparar um modelo de sistema de contas nacionais. Esse modelo serviria de padronização a todos os países, de forma a haver comparabilidade e homogeneidade dentre as informações sobre as contas econômicas de cada país. O sistema proposto pela ONU, System of National Accounts (SNA), fornece orientações para a mensuração de indicadores econômicos, como o PIB, balanço de pagamentos, formação de poupança, etc. Acontece que informações relevantes para determinados países nem sempre estão definidos nos padrões do SNA. Nesse sentido cada país poderia levantar contas satélites, ou seja, contas não definidas pelo padrão SNA, mas que, por sua relevância, seriam levantadas e incorporariam as estatísticas daquele país em especial.

O valor da produção do trabalho reprodutivo não está previsto no SNA e, portanto, a sua estimação deveria ser feita por meio de uma conta satélite. A não inclusão do trabalho reprodutivo nas contas padronizadas do SNA não se trata de mero desapreço da ONU, explica-se a omissão pela grande dificuldade técnica para estimar tal tipo de trabalho.

Obviamente não se pode quantificar diretamente o trabalho reprodutivo pois a ele não está atrelado um pagamento monetário. A precificação precisa ser feita de forma indireta e aí residem enormes imprecisões. Os próximos parágrafos apresentam algumas dificuldades da precificação do PIB do trabalho reprodutivo.

Quando se come em restaurantes de qualidades diferentes os preços dos pratos revelam a diferença de qualidade e, portanto, são facilmente precificados para formar o PIB, mas que valor teria o prato preparado por um lar ou outro? Seria adequado dizer que a refeição preparada em casa por uma exímia cozinheira tem o mesmo valor daquela preparada por um cozinheiro sem talento?

Haveria fronteiras indefinidas entre trabalho remunerado e lazer. Há pessoas que praticam a jardinagem como atividade de lazer, ainda que seja evidentemente um trabalho doméstico. Da mesma forma, como dizer que todo o tempo que os pais passam com filhos seja trabalho de cuidado se para alguns pais o pouco tempo que têm com os filhos é de extremo valor?

A abordagem do tempo gasto com serviços domésticos talvez seja a mais adequada, mas ainda assim encontra dificuldades para determinar o valor desse tempo, seja porque pessoas podem realizar as mesmas tarefas em tempos diferentes, seja porque as pessoas que as executam têm diferentes salários. Nesse último caso, um alto executivo quando passa dez minutos lavando louça, criaria o mesmo valor reprodutivo que um estagiário que fizesse a mesma tarefa em sua casa? O tempo e a tarefa foram os mesmos, ou seja, o mesmo serviço foi entregue, mas os custos de oportunidade foram bem diferentes, naqueles dez minutos o executivo poderia ter auferido muito mais renda caso fizesse trabalho produtivo do que o estagiário.

Apesar das dificuldades, é desejável que o IBGE, órgão oficial de levantamentos estatísticos, se debruce sobre o tema e torne objeto de levantamento periódico a estimativa para o valor da produção gerada dentro da economia dos cuidados em todas as suas vertentes por meio de contas satélites do sistema de contas nacionais. Alguns países, como Peru e Colômbia, criaram leis para obrigar o levantamento de tais contas satélites, no Brasil o Projeto de Lei 7.815/2017 pretende impor a mesma obrigação.

 

6- Conclusão

 

Há claramente valor econômico no trabalho reprodutivo, entretanto, a sua estimação não tem sido objeto de atenção efetiva pelo IBGE. A falta de informações sobre o peso econômico desse trabalho dá ensejo a uma baixa valorização tanto social como econômica de seus trabalhadores. Como políticas e leis são feitas a partir de valorações da realidade, o não reconhecimento da importância do trabalho reprodutivo tem redundado em leis e políticas públicas negligentes com os trabalhadores reprodutivos.

A abordagem do tema trabalho reprodutivo revela uma inequívoca desigualdade na distribuição do tempo gasto com afazeres domésticos, não apenas entre sexos, mas também entre classes sociais. Se o Estado, conforme mandamento constitucional, tem por objetivo reduzir desigualdades sociais, então deveria mover-se no sentido de reparar as desigualdades que ocorrem na execução dos trabalhos reprodutivos. Seja na forma de construção de creches e outros estabelecimentos que reduziriam de forma eficiente a carga de trabalho reprodutivo, seja elaborando leis mais sintonizadas com a realidade. Entretanto, para bem operar, é preciso bem conhecer, portanto, mais uma vez, é fundamental a ampliação das estatísticas que revelem fidedignamente e de forma segmentada, como ocorrem os trabalhos do care não remunerado.

 

Consultoria Legislativa, em 14 de agosto de 2017.

Iuri Gregório de Sousa