Texto Base da Consultoria Legislativa

DIRETORIA LEGISLATIVA
CONSULTORIA LEGISLATIVA
ASSUNTO: O STF E A LEI DA FICHA LIMPA

CONSULTOR: Alexandre Sankievicz
DATA: 25 novembro de 2010

Ficha Limpa: debatendo o julgamento do STF

Em duas ocasiões, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou a validade da lei da ficha limpa. No Recurso Extraordinário interposto por Joaquim Domingos Roriz, os Ministros empataram em 5 a 5 tanto em relação à possibilidade de aplicar a lei nestas eleições quanto em relação ao procedimento previsto no Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal (RISTF) para proceder ao desempate. Consolidado o impasse, o julgamento foi suspenso e a sessão adiada.

No julgamento do Recurso Extraordinário interposto por Jader Barbalho, a solução foi distinta. Houve novo empate quanto ao mérito, mas a maioria dos Ministros decidiu aplicar por analogia o inciso II do parágrafo único do art. 205 do RISTF, para manter a decisão proferida pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Votaram a favor da aplicação do artigo que acabou com o impasse os ministros Carlos Ayres Britto, Cármem Lúcia, Celso de Mello, Cezar Peluso, Ellen Gracie e Ricardo Lewandowski. O dispositivo regimental assim dispõe:

"O julgamento de mandado de segurança contra ato do Presidente do Supremo Tribunal Federal ou do Conselho Nacional da Magistratura será presidido pelo Vice-Presidente ou, no caso de ausência ou impedimento, pelo Ministro mais antigo dentre os presentes à sessão. Se lhe couber votar, nos termos do art. 146, I a III, e seu voto produzir empate, observar-se-á o seguinte: havendo votado todos os Ministros, salvo os impedidos ou licenciados por período remanescente superior a três meses, prevalecerá o ato impugnado".

O objetivo deste texto não é discutir sobre a validade da lei da Ficha Limpa, mas tratar das polêmicas processuais surgidas durante o julgamento e debater como a criação de institutos como a repercussão geral e a súmula vinculante podem influenciar a interpretação do Regimento Interno do STF.

No Recurso Extraordinário interposto por Joaquim Domingos Roriz, uma das primeiras questões referiu-se a constitucionalidade formal da lei da Ficha Limpa, haja vista o projeto não ter retornado à Câmara dos Deputados após emenda de redação efetuada pelo Senado Federal. A questão foi suscitada de ofício pelo presidente do STF, pois não havia sido alegada pelo Recorrente. Contra os votos dos ministros Cezar Peluso e Marco Aurélio, a maioria rejeitou a questão de ordem quanto à existência inconstitucionalidade formal.

Resolvido este tema, um das questões de mérito debatidas disse respeito à possibilidade de aplicar a lei nestas eleições ou se isto acarretaria violação ao artigo 16 da Constituição Federal. De acordo com o dispositivo, "a lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência". Aqui, os Ministros empataram em 5 a 5, dando início ao debate sobre o procedimento previsto no RISTF para situações como essa.

A defesa da prevalência da decisão do TSE pode ser amparada em alguns argumentos. De início, o artigo 97 da Constituição Federal determina que "somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público." Para dirimir dúvidas a respeito da interpretação deste artigo, o STF editou a súmula vinculante n° 10, segundo a qual "viola a cláusula de reserva de plenário (cf, artigo 97) a decisão de órgão fracionário de tribunal que, embora não declare expressamente a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do poder público, afasta sua incidência, no todo ou em parte".

Com base nestes artigos, os Ministros defenderam que a inconstitucionalidade da lei somente poderia ser declarada por maioria absoluta, devendo prevalecer em caso de empate a presunção de constitucionalidade da lei. Nos termos do artigo 146 do RISTF, "Havendo, por ausência ou falta de um Ministro, nos termos do art. 13, IX, empate na votação de matéria cuja solução dependa de maioria absoluta, considerar-se-á julgada a questão proclamando-se a solução contrária à pretendida ou à proposta". Também na forma do art. 173 do Regimento, "efetuado o julgamento, com o quorum do art. 143, parágrafo único, proclamar-se-á a inconstitucionalidade ou a constitucionalidade do preceito ou do ato impugnados, se num ou noutro sentido se tiverem manifestado seis Ministros".

Do outro lado, estavam os Ministros que acreditavam ser o caso hipótese de aplicação do art. 13, IX, do RISFT, de acordo com o qual "proferir voto de qualidade nas decisões do Plenário, para as quais o Regimento Interno não preveja solução diversa, quando o empate na votação decorra de ausência de Ministro em virtude de: a) impedimento ou suspeição ou b) vaga ou licença médica superior a 30 (trinta) dias, quando seja urgente a matéria e não se possa convocar o Ministro licenciado." Para esta corrente, não se tratava de hipótese de declaração de inconstitucionalidade da lei da Ficha Limpa, mas caso de decisão judicial que contraria a constituição.

Segundo os defensores desta tese, nos casos de decisão judicial que contraria a constituição, o resultado, em caso de provimento do recurso, é a declaração de inconstitucionalidade da aplicação da lei, e não a declaração de inconstitucionalidade da norma. Tal fato dispensaria a necessidade da maioria absoluta exigida pelo artigo 97 da Constituição para os casos de declaração de inconstitucionalidade e, consequentemente, autorizaria a incidência do artigo 13, IX, do RISTF.

O impasse quanto à interpretação do RISTF somente foi resolvido no julgamento do Recurso Extraordinário interposto por Jader Barbalho, quando a maioria decidiu que deve haver uma decisão judicial em sentido oposto para reformar o acórdão que é objeto do recurso. Não existindo decisão de mérito em sentido contrário, em razão do empate em 5 a 5, prevaleceu a decisão do TSE, de acordo com a aplicação analógica do artigo 205, parágrafo único, inciso II, do STF.

A solução dada pelo Supremo é eminentemente temporária, na medida em que pode haver verdadeira reviravolta se a posição do Ministro que vier a ocupar a cadeira deixada por Eros Grau for contrária à aplicação da lei da Ficha Limpa para estas eleições. Eventual formação de maioria em sentido contrário à constitucionalidade da lei, por sua vez, daria ensejo ao ajuizamento de ações rescisórias pelos eventuais prejudicados e azo a novas mudanças no resultado das eleições.

O futuro indicado pelo Presidente da República ao cargo de Ministro do STF, desse modo, irá se deparar com uma sociedade curiosa a respeito de suas posições sobre o princípio constitucional da irretroatividade, presunção da inocência e aplicabilidade da lei da Ficha Limpa para as eleições de 2010.

Vale também levantar algumas questões processuais que, por certo irá se deparar o Supremo Tribunal Federal no futuro. A promulgação de institutos como a repercussão geral e a súmula vinculante bem como a possibilidade de intervenção de terceiros e julgamento com causa de pedir aberta vem progressivamente dando feição objetiva ao Recurso Extraordinário e aproximando-o do sistema constitucional de controle concentrado.

Tais institutos vêm diluindo as diferenças entre controle difuso e concentrado bem como a distinção entre julgamentos sobre decisões que contrariam a constituição de decisões que declaram de maneira incidental a inconstitucionalidade da lei. A concessão de repercussão geral e a possibilidade de efeito vinculante às decisões oriundas de recurso extraordinário vem aproximando o instituto das ações que objetivam a declaração de inconstitucionalidade da lei. Tais institutos, afinal, conferem caráter geral e abstrato à interpretação judicial feita pelo Supremo Tribunal Federal, que, consequentemente, exclui a possibilidade de outras interpretações judiciais possíveis - feitas pelos tribunais a quo - em razão de sua inconstitucionalidade.

Neste ponto, portanto, a pergunta que fica para o Supremo é qual o critério do critério. Por que em algumas situações defende-se a feição eminentemente objetiva que vem adquirindo o RE e julga-se com causa de pedir aberta e em outras aplica-se a jurisprudência consolidada que defende ser o prequestionamento e a alegação do recorrente requisitos de análise intransponíveis ao exame do mérito no Recurso Extraordinário?

Vale também questionar sobre a diferenciação feita por parte dos Ministros entre interpretação conforme a constituição e declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto, haja vista a interpretação conforme apenas significar a exclusão do ordenamento jurídico de interpretações possíveis da norma, mas inconstitucionais. O questionamento é essencial porque a conseqüência política prática desta diferenciação é o aumento de poder do Supremo Tribunal Federal em relação ao Congresso, que adquire a competência para declarar a invalidade de interpretações possíveis de uma lei sem a necessidade de maioria absoluta.

Uma das primeiras tarefas do futuro Ministro do STF será resolver o impasse criado sobre a aplicação da lei da Ficha Limpa. Ficarão em aberto, no entanto, as questões processuais essenciais para o julgamento de todos os outros Recursos Extraordinários que chegarem à Corte Constitucional.

 

Consultoria Legislativa, em 25 de novembro de 2010.

Alexandre Sankievicz
Consultor Legislativo 

 

Material atualizado até a data da publicação (25/11/2010).