Estádios Sustentáveis e ecoarenas

18/11/2009 05h00

Fernando Serapião

                           Estádio Nacional de Brasília (Mané Garrincha)

Com os projetos de estádios da Copa de 2014 andando a todo vapor, Fifa e arquitetos propõem a construção das chamadas ecoarenas. Esse momento único pode marcar o Brasil como o primeiro país do mundo a ter feito todo o campeonato mundial de futebol em estádios sustentáveis.

"Completa?", pergunta José, frentista do enorme posto de gasolina na esquina das avenidas Faria Lima e Cidade Jardim, na zona sul de São Paulo. O posto está ali há 25 anos. Antes dele, no terreno havia um grande sobrado, que abrigou por mais de 15 anos o escritório de arquitetura de Ícaro de Castro Mello. Engenheiro-arquiteto pela Escola Politécnica, Ícaro foi um caso raro de especialista em projetos de edifícios esportivos. Curiosamente, ele se interessou pelo tema porque era esportista nato.

Com 23 anos, 1,86 metro de altura e um ano de formado, ele representou o Brasil no salto em altura, na Olimpíada de Berlim, em 1936. Mas seu desempenho na competição foi ruim: por causa de uma contusão no tornozelo, não chegou nem perto da sua marca de 1,92 metro. A derrota abriu uma oportunidade profissional: como tinha que esperar o fim dos jogos para voltar com os outros atletas brasileiros na mesma embarcação, aproveitou para fazer um estágio com Werner March, arquiteto que desenhou o estádio olímpico da cidade.

A paixão de Ícaro pelo ofício era tamanha que contagiou os três filhos: Cristina e Eduardo se formaram arquitetos; Roberto é economista e administra o escritório Botti Rubin. O estúdio de Ícaro na Cidade Jardim era generoso: tinha um grande jardim e muitas pranchetas, que no início dos anos 1980 estavam repletas de projetos.

Com 12 anos de idade, um dos netos do arquiteto passava a tarde no escritório. Hoje, com 33 anos e formado há dez em arquitetura pela Belas Artes, Vicente de Castro Mello dirige juntamente com seu pai, Eduardo, o escritório que leva o nome da família, em São Paulo.

Time de Arquitetos

No dia 3 de junho passado, em encontro ocorrido no centro de convenções do hotel Renaissance, em São Paulo, Vicente foi eleito, pelos colegas projetistas, coordenador do Time de Arquitetos, uma associação integrada por todos os profissionais da área responsáveis pelos projetos dos estádios da Copa de 2014, que se realizará no Brasil. A ideia partiu do Sindicato Nacional das Empresas de Arquitetura e Engenharia Consultiva (Sinaenco) e tem como objetivo a troca de experiências e o fortalecimento do papel dos arquitetos nesse conturbado processo. A fragilidade dos projetistas é gritante. Primeiro vêm políticos, empresários e cartolas. Depois, os intermediários. Lá no final da fila, os arquitetos. "Somos o elo mais fraco da corrente", repetia no encontro Gustavo Penna, responsável pela urbanização do entorno do Mineirão.

Quase todos os autores dos 17 projetos para estádios que se candidataram aos jogos da Copa compareceram ao encontro. As únicas baixas foram justamente as estrelas do grupo: Paulo Mendes da Rocha e Ruy Ohtake, responsáveis pelas propostas dos estádios de Goiânia e São Paulo, respectivamente. A capital de Goiás foi desclassificada. Mas a imprensa estava ávida por ouvir Ohtake.

A indefinição sobre o estádio que sediará os jogos na capital econômica do Brasil pode ter motivado a ausência. "A pressão está muito grande", confidenciou Ohtake. Nos bastidores ninguém dá como certa a escolha do Morumbi, e a cada semana que passa a gangorra pende para um lado. Fala-se em um estádio a ser construído em Pirituba, junto com um grande empreendimento imobiliário, projetado por um escritório norte-americano com sede em São Paulo. Aventa-se ainda a possibilidade de usar o Campo de Marte e de a cidade ter dois estádios para a Copa.

Depois do almoço no Renaissance, os arquitetos foram convocados a falar com a imprensa. A entrevista de Vicente, como coordenador do Time de Arquitetos, foi a mais concorrida. De terno preto risca de giz, camisa e gravata pretos, ele respondia com calma a respeito das ecoarenas, os estádios com princípios sustentáveis.

Cartões-postais

"Às vezes a imprensa se confunde: acha que Copa verde é aquela que acontece na floresta, na Amazônia ou no Pantanal", diz Vicente, sentado a uma mesa, em seu escritório, dividido em dois pequenos conjuntos em andares diferentes do prédio de vidros azuis espelhados e revestimento de cerâmica branca, na Chácara Santo Antônio. Ele acredita na competição como uma oportunidade de transformar a imagem do país. "É um momento único: o Brasil pode ser lembrado por todo mundo por ter feito a primeira Copa com estádios sustentáveis", diz. "Os estádios serão nossos cartões-postais."

Há muitos anos o boom de edifícios esportivos passou. No período recente, os maiores trabalhos que o escritório Castro Mello realizou para o setor foram academias de esportes e reformas em projetos antigos. Com a sinalização de que o Brasil poderia sediar a Copa, em 2007 Vicente começou a se envolver com afinco no assunto. "Não poderíamos ficar de fora: durante 70 anos nosso foco foi o esporte", diz.

Foi em 2007 que o Sinaenco pensou em elaborar um documento a respeito da condição dos estádios brasileiros, chamando a atenção da imprensa e da população para os problemas de conservação.

A possibilidade de fazer o relatório estava em discussão numa reunião da qual participava Roberto de Castro Mello, tio de Vicente, representando o escritório Botti Rubin. "A pessoa certa para participar desse documento é meu irmão: ele é quem mais entende de estádios no Brasil", ponderou. Mas para Eduardo era impossível aceitar a proposta do sindicato: ele teria que viajar praticamente o segundo semestre inteiro, sem honorários. "Fiz um acordo com meu pai: ele cuidaria do escritório enquanto eu viajaria para fazer o relatório", conta Vicente. "Mas coloquei uma condição ao Sinaenco: eu não apontaria só os problemas estruturais e de manutenção, como trincas e rachaduras; meu foco seria questões de arquitetura, como visibilidade, acessos, acabamentos etc."

A peregrinação

Proposta aceita, começou a peregrinação de Vicente de Castro Mello. Um dos primeiros estádios a serem visitados foi o Fonte Nova, em Salvador, onde sete torcedores morreriam três meses depois, em novembro de 2007. "Isso abriu os olhos da mídia para o problema", avalia o arquiteto. Além de se inteirar da real situação de todos os estádios do Brasil, Vicente começou a conectá-los com o tema da sustentabilidade.

No segundo semestre de 2008, ele passou muitos meses estudando o assunto em seminários, congressos e cursos no exterior, entre os Estados Unidos e a Alemanha. Nesse preâmbulo, já estava realizando, com seu pai, uma série de propostas de estádios para a Copa. No final do funil, das 12 sedes escolhidas, uma tinha projeto do escritório Castro Mello - Brasília. Sem contar a consultoria que prestaram para a adequação do Maracanã. "Lá o governo vai fazer uma PPP [parceria público-privada] e o nosso desenho servirá de base para a concorrência", conta Eduardo.

Atualmente, a equipe cuida da adaptação final do Estádio Mané Garrincha, criado em 1972 por Ícaro, tendo Eduardo e Cláudio Cianciarullo como co-autores. Em paralelo, Vicente se dedica à construção de um site que promove a idéia da Copa verde e das ecoarenas. Para essa empreitada, tem como sócio o economista Ian McKee, de 34 anos, que vive nos Estados Unidos e trabalhou em Wall Street, na Goldman Sachs e em empresas de mídia de Los Angeles. Brasileiro, filho de um norte-americano e uma sueca, McKee passou a infância e a adolescência na capital paulista, onde conheceu Vicente.

A entrada do site no ar estava prometida para junho. O endereço? É www.copaverde.com.br .

Ecoarenas?

De acordo com o sistema norte-americano de certificação Leed, ainda não é possível criar um estádio verde, pois não existem recomendações para esse tipo de edifício. "Pelas informações que tenho, os estádios serão contemplados pelo Green Building Council só daqui a dez anos", diz Vicente. Mas há mais de cinco a Fifa já pensa no assunto. As recomendações da entidade mundial do futebol estão em uma cartilha de 125 páginas, com orientações em aspectos como visibilidade, acessos, dimensões. Na página 17, um dos tópicos do primeiro capítulo é a sustentabilidade, que a Fifa chama de "green goal" (meta verde). "As metas principais do programa são a redução do consumo de água potável, a eliminação e/ou redução de resíduos, a criação de sistema de energia mais eficiente e o aumento da utilização de transportes públicos" nos eventos da entidade.

O green goal surgiu durante os preparativos para a Copa da Alemanha e orientou a especialização dos escritórios de arquitetura daquele país. Está aí por que conseguiram muito trabalho no Mundial da África do Sul, em 2010. E no Brasil também: por enquanto, em quatro dos 12 estádios há participação germânica. É uma briga de foice ainda em curso, atrás de honorários avaliados por baixo em 3 milhões a 4 milhões de reais.

Com a sustentabilidade presente no pacote da Fifa, todas as propostas tiveram que incluí-la. "É algo um pouco óbvio, que faz parte de todos os projetos atuais. E possui mais relações com a engenharia do que com a arquitetura", pondera Hector Vigliecca, que está trabalhando nos estádios de Curitiba e Fortaleza. "Quando eu era criança, em Montevidéu, vivíamos uma situação totalmente sustentável: no jardim havia frutas e galinhas e a água da chuva era captada para descarga, limpeza e lavagem de roupa", ele brinca.

Vigliecca explica que no projeto para Curitiba não foi possível adaptar todas as noções básicas de sustentabilidade. "O estádio estava pronto: estamos desenhando somente um quarto do total", lembra. Mas em Fortaleza todos os itens do cardápio da Fifa foram atendidos, com destaque para o uso de painéis fotovoltaicos. "A energia eólica é muito usada no Ceará e estamos tentando conectar a captação de energia solar com o vento", ele diz.

O arquiteto começou a estudar prédios esportivos em 2000, quando ganhou o concurso para a ampliação do ginásio do Ibirapuera, em São Paulo, desenhado originalmente por Ícaro de Castro Mello. Para ele, um dos aspectos mais importantes da sustentabilidade dos estádios diz respeito à viabilização dos empreendimentos. "Não podemos criar elefantes brancos", ele insiste.

Demolição

Em relação à gestão, muito se tem falado do tíquete mínimo, ou seja, o valor do ingresso que viabilize a gestão de empreendimentos que custarão por volta de 500 milhões de reais. Cidades com grandes clubes saem na frente, pois há fluxo de público nos jogos pós-Copa. Além disso, centros urbanos como São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre e Belo Horizonte vislumbram a receita com megashows e eventos. Nessa perspectiva, seria mais viável uma competição com menos sedes - oito, por exemplo, como queria a Fifa. Contudo, pressões políticas aumentaram esse número para 12. Assim, as cidades mais fragilizadas têm que encontrar formas criativas de se viabilizar, para que a conta, no final, não avance no bolso do contribuinte.

Um dos melhores exemplos é o de Natal. Num estado sem clubes fortes e com magra renda per capita, o projeto na capital do Rio Grande do Norte transforma o estádio em parte de um complexo imobiliário que envolve a iniciativa privada e o poder público. A apresentação do projeto de Natal foi das mais elogiadas pelos arquitetos no encontro do Sinaenco. O desenho resulta de uma parceria entre o escritório norte-americano HOK, os cariocas do estúdio Coutinho Diegues Cordeiro Arquitetos e o potiguar Felipe Bezerra. "Esse é um exemplo interessante, pois, além de procurar viabilizar o empreendimento com o auxílio de capital privado, dará à cidade uma centralidade desejável", disse ao microfone Carlos Arcos, sócio de Vigliecca no projeto de Curitiba.

Quando os projetistas do complexo natalense foram convidados a elaborar o desenho, três meses antes da entrega para a Fifa, a proposta do governo era ocupar uma gleba periférica de difícil acesso. Em um voo de helicóptero, a equipe vislumbrou o potencial do terreno do centro administrativo, onde estava também o estádio Machadão, a maior obra de Moacir Gomes, um dos introdutores da arquitetura moderna no estado. "Apesar de estar no centro geométrico da cidade, era um local que criava uma desconexão, que travava o desenvolvimento. A baixa densidade - são dez prédios em 46 hectares - era um desperdício", conta Aníbal Coutinho, sócio de Coutinho Diegues Cordeiro. "A Fifa falou muito em legado. Apresentamos corajosamente a ideia de demolição do estádio e de todo o conjunto administrativo, justamente pensando em deixar um legado real para Natal, e não um elefante branco a 30 quilômetros do centro", ele diz. "Criamos no meio do espaço uma espécie de piscinão aberto, que vai receber água da chuva. Parte da cobertura da área impermeabilizada da garagem será com tetos verdes, e o local será como um bosque, um micro-Ibirapuera", conclui Coutinho.

Presente em diversos outros projetos, a proposta de demolição causou alvoroço em Natal. Parte do barulho é feita, naturalmente, pelo autor do projeto do antigo estádio. "Estamos estudando alternativas para a reciclagem do entulho", disse Antônio Cordeiro, sócio de Coutinho, na reunião do Renaissance. Mas demolição rima com sustentabilidade? Todos os arquitetos envolvidos nos projetos de estádios, independentemente de se tratar de construções novas, creem que a demolição é justificável. "Não dá para adaptar alguns espaços. No final das contas, a eficiência do prédio novo pode justificar essa escolha", pondera Vigliecca.

Outro exemplo interessante nos pequenos centros é o projeto de Cuiabá, de Sérgio Coelho, do GCP Arquitetos. Retardatário - sua equipe iniciou os trabalhos em fevereiro passado -, Coelho atribui justamente à sustentabilidade o convite que recebeu do governo local. "Nosso trabalho é diferenciado em termos de legado. Na primeira fase, que visa a Copa, a arena terá capacidade para 42 mil pessoas; na segunda, será diminuída para 28 mil lugares", conta. A proposta, desenvolvida com o escritório inglês SKM, é construir arquibancadas removíveis. Outro ponto é o uso de materiais locais, como estruturas pré-moldadas. "Não tenho nada contra tecnologia e materiais importados. Mas, pensando na sustentabilidade real, é mais inteligente e econômico trabalhar com o que está disponível na região", ele avalia.

Quem paga a conta?

Vigliecca se impressionou especialmente com a tecnologia aplicada na proposta dos alemães do estúdio GMP para Manaus - que tem o orçamento mais caro do todos. Esse escritório está participando ainda do projeto de Belo Horizonte e criando o anel de acesso em Brasília, juntamente com Castro Mello. "Estamos utilizando a técnica que desenvolvemos nos estádios da Alemanha e da África do Sul", conta Ralf Amman, arquiteto do GMP. "Mas a viabilização depende de um desejo político."

Em muitos casos, como o de Porto Alegre, não havia de antemão uma determinação dos contratantes em relação a edifícios verdes. "A sustentabilidade, além das recomendações da Fifa, também partiu da nossa equipe", conta o jovem Gabriel Garcia, do Hype Studio, responsável pelo projeto na capital gaúcha. Nos documentos enviados à federação, os arquitetos anotaram que o Beira-Rio terá coleta e reutilização da água da chuva, ciclovia, ancoradouros de barcos e pisos permeáveis. O Internacional, dono do estádio, já faz reciclagem de lixo e estuda-se ainda "a utilização de compostagem das aparas do corte do gramado, produzindo fertilizantes a partir dos resíduos da manutenção do campo".

Na Bahia, o poder público logo en-campou a ideia. "O projeto possui todos os quesitos básicos, como captação de água para reúso, sistema de tratamento de esgoto etc. Só não tem ainda células fotovoltaicas porque o governo baiano, em parceria com o Instituto Ideal, de Santa Catarina, vai fazer uma experiência com o estádio Pituaçu, onde o Brasil joga em 9 de setembro", conta Marc Duwe, do escritório Setepla, que, com os alemães do Schulitz Architektur, é responsável pelo projeto em Salvador.

Um projeto sustentável tem orçamento de implantação entre 5% e 30% maior. Mas, quase como um jogral, todos os projetistas declaram que o investimento compensa, pois os gastos com manutenção são menores e o retorno do capital ocorre em alguns anos. Para Daniel Fernandes, que desenhou o estádio do Recife, alguns itens de baixo custo são muito compensadores, como o reúso da água. "Os primeiros estudos chegam à marca de 60% de economia no consumo através da reutilização. E com o tratamento de parte do esgoto, diminui até em 40% a quantidade de esgoto jogado na rede", diz Fernandes.

Ele acredita, no entanto, que itens como as células fotovoltaicas são de uso mais difícil. "Como não é possível a armazenagem - a captação ocorre de dia e o uso do estádio à noite -, a energia solar poderia ser vendida e o estádio usaria energia convencional, comprando de volta. Assim, o custo seria zero. Mas tudo isso depende do preço a que ela seria vendida", teoriza. Vicente é mais otimista em relação aos painéis. "Há até a possibilidade de criar receitas dessa forma. Os estádios podem ser um grande laboratório de sustentabilidade", diz o jovem, cujo relógio esportivo denuncia: ele também é esportista. No Colégio Porto Seguro, destacou-se no salto em distância. "Meu porte ajudava: eu era alto e bem levinho", lembra. Praticou ainda atletismo na mesma modalidade do avô.

O esporte pode ajudar a encarar um ritmo de trabalho que tem sido frenético. Todas as equipes possuem um prazo curtíssimo para a entrega dos projetos. O atraso na escolha das cidades foi muito prejudicial, é uma avaliação unânime. Somente Castro Mello tinha o projeto executivo de Brasíla pronto. Os demais haviam realizado somente estudos e imagens. O novo prazo da Fifa é 31 de agosto, data em que todas as propostas devem estar aprovadas nos órgãos competentes. Para que a conta não fique no vermelho, arquitetos, investidores e políticos são cautelosos e trabalham em silêncio.

Cautela e quietude não combinam com o ânimo dos aficionados por futebol. Questionado sobre a bagunça que torcedores podem fazer na avenida Cidade Jardim se o jogo de abertura da Copa do Mundo de 2014 for no Morumbi, o frentista José parece pensativo e descrente. Alguns segundos depois, conclui: "Vixe: 2014! Demora ainda, não? Até lá, muita coisa vai mudar... Deu R$ 46,23: é no crédito ou no débito?".

Fonte: PROJETODESIGN