Marco temporal: sangue indígena nas mãos dos ministros do STF

Nesta quarta (25/8), o Supremo Tribunal Federal (STF) retoma o julgamento que vai definir o futuro das demarcações das terras indígenas no país, e que é considerado pelo movimento indígena “o processo mais importante do século sobre a vida dos povos indígenas”.
24/08/2021 19h30

Luísa Campos

Marco temporal: sangue indígena nas mãos dos ministros do STF

O julgamento tem “repercussão geral” e vai servir de diretriz para a gestão federal e todas as instâncias da Justiça sobre demarcação de terras. O chamado “marco temporal” é defendido por ruralistas e setores interessados na exploração dos territórios, além de limitar os direitos dos povos indígenas previstos na Constituição.

Para discutir essa situação e outras ameaças aos povos originários, a Comissão de Legislação Participativa da Câmara dos Deputados (CLP) promoveu, nesta terça (23/8), uma audiência pública. O encontro foi realizado no contexto da programação pelos 20 anos de instalação da CLP.

“O marco temporal é inconstitucional, uma lei que colocaram lá no STF para querer nos apagar, apagar nossa vida e história. Mas a gente está aqui. Resistimos há 521 anos. Agora, o Supremo tem a decisão na mão, esperamos que não decida pelo agronegócio, senão os ministros vão ter sangue indígena nas mãos. Basta de genocídio”, afirma Alessandra Corap Munduruku, da Federação dos Povos Indígena do Estado do Pará.

O julgamento começou em junho, mas foi suspenso por um pedido de “destaque” do ministro Alexandre de Moraes. Depois, foi remarcado para o dia 30 de junho, mas não chegou a iniciar por falta de tempo.

“Um absurdo”

A jurista Deborah Duprat lembra que “a Constituição tem um sentido, que é a busca pela igualdade e justiça social.  Justiça social é um princípio norteador também nas questões agrárias. Seria um absurdo, em termos jurídicos e de interpretação constitucional que, a partir de uma data, teríamos indígenas sem-terra, pensar que em 1988 os indígenas não estariam em nenhum lugar. Estavam onde? Então, vamos ter indígenas com terra e outros sem-terra? O marco temporal traz essas perplexidades e desorganiza as ideias básicas da Constituição”.

Para Juliana de Paula Batista, do Instituto Socioambiental, “esse julgamento é decisivo, porque pode extinguir os direitos dos povos indígenas, a teoria do marco temporal é um subterfúgio jurídico para deslegitimar os direitos destes povos. Esperamos que amanhã o STF cumpra seu papel e garanta os direitos previstos na Constituição”.

O ponto de partida para o julgamento do STF é a ação de reintegração de posse movida pelo governo de Santa Catarina contra o povo Xokleng, referente à TI Ibirama-Laklãnõ, onde também vivem os povos Guarani e Kaingang.

É uma tese injusta porque desconsidera as expulsões, remoções forçadas e toda violência sofrida pelos povos indígenas até a promulgação da Constituição. A aprovação desse marco temporal vai ser um tiro no coração do povo indígena”, denuncia o deputado Waldenor Pereira (PT/BA), presidente da CLP.

Cobra venenosa

Davi Kopenawa Yanomami, presidente da Hutukara Associação Yanomami, faz uma comparação. “Estamos aqui para escutar o homem que gosta de fazer lei, para saber o que o homem branco quer fazer.  O marco temporal é uma ameaça que está voltando, estava engavetado e saindo agora como uma cobra, para morder outra vez. É venenoso, perigoso”.

A falta de representatividade no Congresso é lembrada por Megaron Txucarramãe, da Terra Indígena Kapoto. “Tem pouca gente nos defendendo, temos que eleger ‘parentes’ como deputados federais e para nos representar. Quem cria leis são não-indígenas. A luta não acaba, não começou em 1988, começou quando não-indígenas chegaram aqui. A gente quer viver em paz”.

O projeto de lei 490 de 2007, do ex-deputado Homero Pereira (PR/MT), que está pronto para ir ao Plenário, também traz prejuízos aos povos indígenas porque estabelece que as terras indígenas serão demarcadas por meio de leis.

“O Brasil continua nos matando, desde o tempo da colonização.  Continuam nos negando o direito de existir. Meu povo tem o primeiro registro em 1501 e até hoje não tem todas as terras que são dele. Quem ameaça nossa terra está aqui nessa Casa, a ideia sai daqui. Queremos viver e respeito”, afirma Porã Potiguara, da Articulação dos Povos Indígenas.

Acampamento “Luta pela Vida”

Cerca de 6 mil indígenas, de mais de 170 povos, estão acampados em Brasília para acompanhar o julgamento do STF. Segundo os organizadores, é a maior mobilização indígena pós-constituinte. O acampamento vai até o dia 28 de agosto.

“Estamos aqui para defender a demarcação das nossas terras. Por que tanta agressão e falta de conhecimento? Por que a criação do marco temporal, será que nossa história começou em 1988?  O branco não caminha, quer voar, decretar, mas não quer conhecer”, diz Patrícia Krin Si Atikum, do Movimento Unido dos Povos e Organização Indígenas da Bahia.

Violência crescente

O Relatório “Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil (2019)”, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), mostra o aumento de invasões a terras indígenas, incêndios, assassinatos, suicídios e mortalidade infantil. A publicação aponta que houve crescimento de casos em 16 das 19 categorias de violência sistematizadas pelo Conselho.

Como, por exemplo, aumento de registros na categoria “invasões possessórias, exploração ilegal de recursos e danos ao patrimônio” que, de 109 casos registrados em 2018, saltou para 256 casos em 2019. As ocorrências desse tipo atingiram 151 terras indígenas, 143 povos, em 23 estados.

O documento registra ainda que das 1.298 terras indígenas no Brasil, 829 (63%) têm alguma pendência do Estado para o fim da demarcação definitiva e o registro como território tradicional indígena na Secretaria do Patrimônio da União (SPU). Destas 829, um total de 536 terras (64%) não teve ainda nenhuma providência adotada pelo Estado.

Também participaram da audiência representantes dos povos Wayana, Kayapó-Xingu e Tabajara. Além dos deputados Luiza Erundina (PSOL/SP), Talíria Petrone (PSOL/RJ), Joênia Wapichana (Rede/RR), Leonardo Monteiro (PT/MG), Vivi Reis (PSOL/PA), Alencar Santana (PT/SP) e do senador Paulo Paim (PT/RS).

A íntegra da audiência pública, em áudio e vídeo, está disponível na página da CLP no site da Câmara dos Deputados.

“Nossa água está branca por causa do garimpo. A gente não come soja, ferro ou ouro. Comemos fruta, peixe e bichos da floresta. Nossa casa é vida, nossos filhos são vida”, Alessandra Munduruku.

Txucarramãe: guerreiro sem armas

Pedro Calvi / CLP