Prêmio Darcy Ribeiro de Educação - Conheça a história da Prof. Rosita Edler Carvalho, uma das finalistas em 2016
Faremos uma série de reportagens, relembrando alguns dos finalistas e dos premiados das últimas edições do Prêmio Darcy Ribeiro de Educação, entregue anualmente por nossa Comissão. Uma maneira de, em retrospectiva, tanto reconhecer o mérito como divulgar o trabalho inspirador dessas pessoas e instituições.
Hoje, vocês vão conhecer a história dessa Professora do Ensino Especial, uma senhorinha dinâmica e independente que abrilhantou a lista dos indicados ao Prêmio Darcy Ribeiro em 2016.
"Sou Rosita Edler Carvalho, oriunda da cidade do Rio de Janeiro onde nasci aos 24 de abril de 1937. Minha mãe, Luna Obadia Edler, paraense, formada em Odontologia no início do século XX, serviu-me como exemplo de determinação. Meu pai, Ignácio Edler, polonês naturalizado como brasileiro, veio foragido de Varsóvia na primeira guerra mundial, vítima de perseguições religiosas. Amante do Brasil, de nossa cultura e de nossa gente acolhedora, sempre me recomendava que, enquanto eu tivesse voz, lutasse para ter vez de compartilhar ideias, sentimentos e experiências, em atitude de reverência e gratidão pelo país que o acolheu e lhe permitiu uma vida honrada como artesão.
Procuro seguir o exemplo de ambos e, neles inspirada, eduquei meus dois filhos, Débora e Miguel Nathan, ela pesquisadora em bioquímica médica, professora titular na UFRJ, e ele, doutor em economia, pesquisador no IPEA e também docente na PUC-RJ.
Em criança, eu brincava com as bonecas que tinha e as imaginava como alunas. Um apelo vocacional já se manifestava em tenra idade e concretizou-se em 1956, quando fui diplomada como professora primária pelo Instituto de Educação, no Rio de Janeiro.
Já completei sessenta anos de formada e nenhuma das titulações que fui conquistando ao longo de minha trajetória de vida pessoal e profissional me faz sentir tanto orgulho e profunda gratidão ao Eterno e a todos os que participaram de minha formação inicial.
Comecei a trabalhar no mesmo ano, inicialmente numa escola de zona rural da rede pública estadual de educação, localizada na Ilha do Governador.
Menos de três meses depois fui transferida para a Escola Rotary, também na Ilha, no bairro da Freguesia. Lá, fui entrevistada pela Diretora de saudosa memória – Profa. Maria Carvalhaes Cortez – que me ofereceu um presente: uma turma de alunos excepcionais, como eram denominados nos idos de 1956.
Mal sabia eu do tamanho do presente, tão grande e valioso que continuo a desembrulhar até hoje, sessenta anos depois... e ainda me assombro com tudo o que contém e que serviu como dinamizador de minha trajetória como educadora.
A referida turma, que nenhuma das professoras da escola queria aceitar, era formada por crianças que não “conseguiam” se alfabetizar. Irrequietas, muito falantes, não mostravam interesse por nenhuma das atividades que envolvesse os processos cognitivos. Gostavam de correr no pátio, de pular corda, de brincar de roda, de amarelinha, de pique-esconde e outras brincadeiras que hoje foram literalmente “abolidas”, seja porque os espaços físicos reais diminuíram, seja porque o mundo virtual trouxe outros jogos, em detrimento da alegria e balbúrdia sadias que os de então proporcionavam.
Animada, iniciei minhas atividades profissionais, mas logo no primeiro mês dei-me conta de que estava totalmente desqualificada para trabalhar com aquelas crianças. Meu estágio foi no Instituto de Educação, instituição tradicional na formação de professores primários no Rio de Janeiro. Os alunos com os quais eu estagiava, sob orientação superior, eram filhos dos professores do Instituto, o que significa que nada de material lhes faltava!
Eis-me formada e na Ilha do Governador com aquelas crianças que usavam uniformes surrados, cujas maletas eram latas de biscoito, nas quais guardavam pedaços de lápis e um caderno bem dobrado para caber na lata. Não conseguia motivá-las levando-as a desejar construir conhecimentos!
Sentia-me desqualificada, embora consciente do meu papel e da vontade enorme de levá-las a superar a desesperança aprendida por elas, tantas foram as suas frustrações. Pedi ajuda às colegas mais experientes da escola e que se consideravam igualmente sem condições de me orientar, confessando-se aliviadas porque receberam outras turmas. Aquela ninguém queria...
Por sugestão da própria diretora, procurei a APAE e, no casarão da Rua Hadock Lobo, a primeira pessoa que vi e que carrego comigo até hoje, foi uma senhora baixa e gorducha, cabelos recolhidos num coque, usando sapatos pretos fechados e amarrados com cadarços, similares aos que meu pai usava. Estou emocionada, me referindo à Professora Consuelo Pinheiro, que me levou para sua sala repleta de livros e papéis, e onde me ouviu sem interromper. Quando, chorando, perguntei se ela poderia me ajudar com a turma que eu regia, ouvi uma sábia resposta e que me serve de referência até hoje:
“Mocinha Rosita, você mesma está se ajudando em vir até nós. Suas dificuldades serão vencidas por você mesma, e o que a APAE tem a lhe oferecer servirá como matéria prima para suas reflexões e para as mudanças que você almeja, em benefício do desenvolvimento de seus alunos...”
Matriculei-me em vários cursos oferecidos na APAE e tudo o que aprendi e coloquei em prática foi muito útil à minha primeira turma de alunos especiais e às outras que se seguiram. Consegui que alguns se alfabetizassem, graças ao uso do método fônico e dos jogos para o desenvolvimento cognitivo e da consciência fonológica.
Hoje, com pós-doutorado em Neuropsicologia, identifico nas neurociências cognitivas as bases teóricas do que aprendia nos cursos da APAE e na universidade, embora essa nomenclatura não fosse utilizada.
Certo dia, Dona Consuelo levou-me até seu gabinete e perguntou se eu gostaria de trabalhar na APAE, mas explicou que, apesar dos cinco anos de magistério, deveria ficar um ano como auxiliar.
Num primeiro momento senti-me constrangida, como num retrocesso profissional, mas como havia passado em primeiro lugar no vestibular para o curso de Pedagogia da Universidade do Estado da Guanabara- UEG, hoje UERJ, e que ficava em frente ao casarão... aceitei. Foram feitas as tramitações para que eu fosse cedida pela Secretaria de Educação do Estado e, no ano de 1961, fui transferida para a escola da APAE, como auxiliar de ensino.
Em termos de formação acadêmica, depois da Pedagogia ingressei no curso de Psicologia na Universidade Santa Úrsula. Continuava trabalhando na APAE, já agora como Chefe do Serviço de Avaliação, Triagem e Orientação dos alunos que procuravam atendimentos especializados.
O convívio com uma equipe composta por inúmeros profissionais ensinou-me a transitar – para além da multidisciplinaridade –, na transdisciplinaridade. A especialização em Psicopedagogia (2008) foi mais uma busca enriquecedora.
Sempre irrequieta, fiz Mestrado em Políticas Públicas no Instituto Superior de Estudos Estratégicos da ESG (1984), o que me foi de enorme valia quando, em 1992, no MEC e no honroso cargo de Secretária Nacional de Educação Especial.
No Ministério, dei início à elaboração da primeira Política Nacional de Educação Especial, lançada aos 10 de maio de 1994, pelo Ministro da Educação Murílio de Avellar Hingel. Já havia participado, na CORDE (1991), sob a coordenação de Maria de Lourdes Canziani, da elaboração de documentos sobre a Política de Integração de Pessoas com Deficiência.
Ainda em termos de textos de Políticas de Educação, coordenei a elaboração da Política de Atenção Integral e Integrada para as Pessoas com Deficiência Intelectual e Múltipla, lançada pela Federação Nacional das APAEs, em 2011.
Também fiz Mestrado em Psicologia na FGV (1976) e Doutorado em Educação na UFRJ (1996), sendo que a tese que me doutorou com louvor referiu-se ao Atendimento Educacional Especializado, tema atual, polêmico e recorrente, particularmente quanto aos procedimentos que são adotados e às práticas pedagógicas em curso – mais próximas do reforço pedagógico do que do desenvolvimento das funções mentais superiores, tal como preconizado em Notas Técnicas da SECADI/MEC (2010 e 2013).
As pesquisas que tenho desenvolvido sobre a aprendizagem humana reiteram a importância das neurociências para a educação.
O último livro que escrevi – O cérebro vai para a Escola e o Coração vai junto –, lançado em 2014 pela editora WAK, contém uma releitura de minhas atividades docentes com crianças e como pesquisadora, usando as lentes das neurociências.
A docência no ensino superior em muito contribuiu para que eu aprofundasse estudos e pesquisas sobre a aprendizagem humana e práticas de educação escolar inclusiva. Escrevi seis livros a respeito, sendo que um deles está na 11ª edição – Educação Inclusiva: com os pingos nos “is”. Foi publicado pela Editora Mediação, que lançou outros dois livros já reeditados algumas vezes: Removendo Barreiras para a Aprendizagem (2000) e Educação Inclusiva como Reorganização do Trabalho Pedagógico (2008). Outro está sendo escrito e pretendo intitulá-lo Neurociências e Educação Especial.
Na primeira década de 2000 participei de uma importante pesquisa internacional, patrocinada pela UNESCO, e que envolveu quatro países, um deles o nosso.
Dentre os produtos desse trabalho surgiu o Index da Inclusão, ainda pouco utilizado entre nós, o que lamento.
Financiadas pela FAPERJ realizei, recentemente, duas pesquisas: uma, em 2013, na Escola de Educação Infantil da UFRJ, sobre funções executivas de crianças entre 5 e 6 anos, e a mais recente, em 2015, sobre a utilização da Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde – Crianças e Jovens –(OMS, 2011), como fonte de indicadores de dois protocolos de observação orientada, voltados para as potencialidades dos Sujeitos: um para uso de professores e outro para psicólogos e psicopedagogos clínicos.
Os cargos públicos que ocupei, além da Secretaria de Educação Especial no MEC, merecem citação pelo tanto que contribuíram para fazer girar o disco do meu olhar como educadora.
Refiro-me à Coordenação Setorial de Educação Especial na Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro (1975-1980), sob a direção firme e branda da Prof.ª Myrthes de Lucca Wenzel e à Direção do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, de 1980 a 1984, quando expandimos o Serviço de Psicologia Aplicada para incluir a Psicologia Escolar.
Uma longa trajetória e que me anima a prosseguir. Se vou mais lentamente, pois os quase oitenta anos têm seu peso, por outro lado vou mais atentamente e com mais garra, pois é a mesma idade que me impulsiona a seguir e a perseguir meus ideais, fiel à recomendação que recebi na juventude: enquanto houver voz, lute pela vez de compartilhar.
Eis-me aqui, desejosa de compartilhar, consciente do muito que há por fazer e reconhecida pelo muito que já se fez!"