Os 200 anos das primeiras eleições de deputados
A todo aquele que tiver a curiosidade de se entreter lendo com atenção os anais da primeira constituinte brasileira – Constituinte de 1823, a primeira assembleia legislativa nacional, certamente se espantará com a facilidade com que aquela assembleia soube se organizar. As minúcias de um parlamento pareciam ser do conhecimento de todos, ou de pelo menos de todos aqueles que tomaram a peito organizar o órgão legislativo.
Ainda analisando aqueles anais vê-se que ao longo de sua existência a assembleia organizou seus trabalhos sem nenhuma dificuldade. Vê-se logo primazia do plenário; a subdivisão da assembleia em comissões temáticas; a necessidade de estudo das proposições por deputados relatores, que submeteriam seus relatórios e votos ao colegiado nas comissões e depois, caso seus pontos de vista saíssem vitoriosos, submeteriam seus relatórios e votos ao plenário da assembleia.
Sendo aquela a assembleia inaugural da nossa vida parlamentar, surge a questão: onde aqueles nossos primeiros deputados teriam aprendido toda a arte do Legislativo?
A resposta está na biografia de boa parte dos membros daquela assembleia. Vários deles, os mais notáveis, fizeram parte da primeira leva de deputados eleitos pelo Brasil. Faziam parte dos deputados eleitos para representar o Brasil nas Cortes Gerais e Extraordinárias da Nação Portuguesa. Foi lá, na participação cotidiana dos trabalhos daquela assembleia parlamentar, que os brasileiros pela primeira vez tiveram acesso ao funcionamento da instituição. Foi no debate parlamentar, no tirocínio das derrotas e vitórias das votações, que aprendemos como melhor deve funcionar um parlamento moderno.
A adesão do Brasil aos ideais liberais, criados pelo Iluminismo e espalhados por todo Ocidente pela Revolução Francesa, contagiando todas as mentes de então, se materializou com a sua entusiástica anuência à Revolução Constitucionalista do Porto de 1820. Assentimento que se concretizou na aclamação de juntas governativas, nas mais diversas capitanias, e a conseguinte eleição de deputados às Cortes como representantes da porção americana da monarquia portuguesa.
Os números variam acerca da quantidade de titulares e suplentes que foram eleitos. Eles oscilam entre 70 e poucos e mais de 90 deputados, oriundos de todas as capitanias. No entanto, dados os acontecimentos políticos, muitos sequer viajaram para Lisboa. Efetivamente tomaram assento nas Cortes Portuguesas uns 40 parlamentares. Note-se que, quando os primeiros brasileiros adentraram no recinto das Cortes, essas já funcionavam havia cerca de um ano, tendo votados vários dispositivos constitucionais. Tal fato, inclusive, gerou várias manifestações de diversos parlamentares brasileiros que pleiteavam a rediscussão das matérias vencidas por não terem sido dadas oportunidades de debate aos deputados brasileiros.
No início, como era de se esperar, não havia um maior entrosamento dentro da bancada brasílica. Os deputados votavam de forma desencontrada, inclusive nos assuntos que diziam diretamente referência ao Reino do Brasil. No entanto, com o andar dos trabalhos, tendo ficado cada vez mais clara a tendência antibrasileira dos deputados portugueses, que somavam mais de 100, os brasileiros vão se desalentando e se unindo na denúncia da irracionalidade com que as cortes malbaratavam os interesses do Brasil, afastando-o do Reino Unido.
Na participação dos deputados brasileiros nas cortes de Lisboa é possível vermos não apenas o aprendizado do funcionamento parlamentar, mas também o início do sentimento de solidariedade entre as diversas capitanias brasileiras e a evolução do sentimento de irreversibilidade da desagregação da monarquia lusitana. Note-se que todos os parlamentares propugnaram, enquanto foi possível, pela manutenção dos vínculos políticos com Portugal e a custo foram se convencendo da impossibilidade se serem mantidos. Epítome de tal evolução política pode ser encontrada na célebre frase, pronunciada em plenário pelo deputado Nicolau Pereira de Campos Vergueiro, que nascido em Portugal, representava São Paulo: “O Brasil está pronto a seguir com Portugal, mas não nos termos destas Cortes.”