Origens do Orçamento
Autor: Vander Gontijo - COFF/CD; Local e Data: Brasília, setembro de 2004.
Apesar de existirem referências mais antigas na história da humanidade sobre a limitação do poder de tributar, como, por exemplo, as encontradas no Código de Manu e no Pentateuco, as raízes do orçamento, como instituto, se situam na Idade Média.
Península Ibérica
A origem dos orçamentos está ligada à origem do poder de tributar e este, segundo Aliomar Baleeiro(1) tem berço na chamada "cúria régia" dos povos europeus. Tratava-se de um conselho de nobres e sacerdotes que assistiam o monarca em certas resoluções importantes de interesse coletivo. A tributação era um dos assuntos relevantes.
Quando os representantes do comércio e dos ofícios do povo das cidades se juntaram aos do clero e da aristocracia, a "cúria régia" transformou-se em "Corte", isto é, uma grande assembléia de classes que examinava a concessão de tributos extraordinários solicitados pela coroa em certas emergências ou para outras decisões políticas.
O primeiro documento relacionado às finanças públicas data de março de 1091. Afonso VI, monarca espanhol, notifica a cobrança de um tributo extraordinário e alude o consentimento dos que vão pagá-lo.
Outros escritores fixam nas Cortes reais do período de unificação da Espanha e Portugal (1188) o início do solene reconhecimento de que os impostos deveriam ser votados pelos delegados de contribuintes. Deu-se ao imposto seu caráter de prestação pública, se bem que, no inicio, apenas para as necessidades extremas do reino - geralmente guerras.
Inglaterra
Outros estudiosos(2) consideram que o embrião do orçamento público surgiu na Inglaterra medieval, em 15 de junho de 1215, quando foi assinada e divulgada a Magna Charta Baronorum (Magna Carta) pelo Rei João Sem Terra (King John Lackland), devido às pressões realizadas pelos barões feudais, principais integrantes do Common Council (Conselho Comum), que buscavam limitar o poder de tributar do rei. O artigo 12 determinava que: "Nenhum tributo ou auxílio será instituído no Reino, senão pelo Conselho Comum, exceto com o fim de resgatar a pessoa do Rei, sagrar seu primogênito cavaleiro e casar sua filha mais velha uma vez, e os auxílios para esse fim deverão ser de valor razoável."
Esse documento é considerado o embrião do orçamento público. Mesmo não envolvendo a despesa pública, este artigo estabeleceu a primeira forma de controle do "Parlamento" sobre a monarquia absolutista, ou seja, o princípio tributário do consentimento. É o ponto de partida para novas reivindicações e direitos.
Como até hoje podemos verificar, esse tipo de controle representativo por parte do parlamento sobre os governos gera conflitos. Naquela época, na qual o absolutismo dominava, a coroa britânica não podia ser diferente. Como resultado, o controle do Parlamento gerou um sério conflito com o rei Carlos I. Reclamando em prol do princípio do consentimento e contra a imposição de um empréstimo compulsório pelo rei, o Parlamento britânico baixou a Petition of Rights (Petição de Direitos), que reafirmou o princípio da Magna Carta; segundo o qual, para ser legítimo, o tributo teria que ser consentido pelo Parlamento.
O item VIII deste documento previa que: "Por todas estas razões, os lordes espirituais e temporais e os comuns humildemente imploram a Vossa Majestade que, a partir de agora, ninguém seja obrigado a contribuir com qualquer dádiva, empréstimo ou benevolência e a pagar qualquer taxa ou imposto, sem o consentimento de todos, manifestado por ato do Parlamento."
Como resultado, instalou-se uma luta interna. O Rei foi derrotado, condenado e decapitado. De acordo com Burkhead(3), durante a guerra da Inglaterra contra os holandeses, o Parlamento autorizou impostos pretendidos por Carlos II, estabelecendo claramente as finalidades a que se destinavam os tributos arrecadados. A partir de então, firmou-se a idéia de que os impostos só seriam justificáveis à vista das despesas que por eles viéssem a ser financiadas. Ao longo do tempo, verificou-se que era necessário controlar a aplicação dos recursos públicos e não apenas autorizar sua cobrança.
Em 1688 surgiu um novo conflito entre o Rei Carlos II e o Parlamento inglês, chamado de "Revolução Gloriosa". Como conseqüência, o Parlamento baixou em 1689 a Bill of Rigths (Declaração de Direitos) que, dispondo sobre os direitos dos senhores feudais, da igreja, da cidade de Londres e da Justiça, determinava que: "A partir desta data nenhum homem será compelido a fazer qualquer doação, empréstimo ou caridade, ou pagar imposto, sem consentimento comum da Lei do Parlamento."
Estabeleceu-se, também, a separação entre as finanças da Coroa e as finanças do Reino (Estado), quando passaram a ser anualmente organizadas na chamada "Lista Civil" e aprovadas pelo Parlamento: "Todo subsídio (tributo) será cobrado anualmente pelo Parlamento e a cobrança de impostos para uso da Coroa, a título de prerrogativa, sem autorização do Parlamento e por um período mais longo ou por modo diferente do que tenha sido autorizado pelo Parlamento, é ilegal."
Em 1787, foi aprovado pela Câmara dos Comuns a Consolidated Fund Act (Lei do Fundo Consolidado). Segundo Arizio de Viana, representou um avanço significativo nas finanças públicas inglesas: "Certo número de impostos existem na Inglaterra para atender certos serviços de caráter permanente; anualmente o Parlamento inglês não discute a legitimidade desses impostos nem dessas despesas; aprova o pedido do Governo em globo; quando há excedente, isto é, quando a receita do fundo excede as despesas, torna-se possível discutir esse excedente, para ver se há impostos desnecessários e que devam ser abandonados; mas essa discussão nunca se verifica, pois os serviços administrativos crescem e o Governo é sempre obrigado a pedir maiores verbas e, daí, a aprovação dos recursos solicitados, ainda que, para obtê-los, seja preciso criar novos impostos ou agravar os existentes."
O Fundo Consolidado estabelecia tributos fixos para a manutenção da máquina administrativa do Governo e a autorização legislativa para criação de novos tributos quando necessária a expansão da atuação estatal. O Parlamento aprovava de forma global o "orçamento", não o discutia. Entretanto, o mesmo possibilitou a contabilização dos fundos públicos e, a partir de 1802, a publicação anual do relatório detalhado das finanças. Alguns autores vêem a Lei do Fundo Consolidado como a primeira lei que tratou de matéria orçamentária como hoje se entende.
A partir de 1822, o Chanceler do Erário (Ministro da Fazenda) passou a apresentar ao Parlamento uma exposição que fixava a receita e a despesa de cada exercício. Burkhead considera que essa data marca o início do orçamento, plenamente desenvolvido, na Inglaterra. Os papéis ficavam numa maleta de couro chamada budget. Essa palavra vem do francês antigo bougette, que significa bolsa pequena, por sua vez, diminutivo de bouge: pasta de couro. A origem dessa palavra é latina: bulga. Tornou-se, então, habitual dizer: O Chanceler foi ao Parlamento e opened his budget. Observe-se que até hoje dizemos: "abrir o orçamento".
A regra geral, mesmo antes da implantação da Câmara dos Comuns, era de o Executivo ter a prerrogativa de responsabilidade pelas finanças do Estado. Com o tempo, o Legislativo passou a ter a competência de autorizar a cobrança de tributos, aprovar, reduzir ou rejeitar a despesa proposta, bem como controlar a execução do orçamento.
Posteriormente, as funções executivas da Coroa foram transferidas para o Gabinete, que era uma espécie de comissão da Câmara dos Comuns. O programa do Executivo era apresentado e defendido perante os Comuns (Parlamento), que podiam aprovar reduções nas despesas ou solicitar fórmulas alternativas sem que isso significasse moção (abalo) de desconfiança em relação ao gabinete. Se, porém, a Câmara dos Comuns propusesse aumento de despesas, isso significaria a queda do Gabinete e a necessidade da formação de um novo governo. A determinação do teto das despesas era considerada a mais grave responsabilidade do Gabinete em relação ao Orçamento.
Durante o século XIX, o orçamento inglês tornou-se um importante instrumento da política econômica e financeira do Estado. Sua trajetória tornou-se importante pelo menos em dois aspectos: primeiro, por delinear a natureza técnica e jurídica desse instrumento e, segundo, por difundir a instituição orçamentária para outros países. A compreensão dessa história demonstra, outrossim, que a origem dos parlamentos está estreitamente ligada às finanças públicas.
França
Assim como no caso inglês, na França a instituição orçamentária surgiu posteriormente à adoção do princípio do consentimento popular do imposto, autografado, de fato, pela Revolução Francesa de 1789.
Há todavia, alguns antecedentes notáveis. Em 1313, nos chamados Estados Provinciais, uma espécie de assembléia formada por representantes da nobreza, do clero e do povo, concedeu a taille (imposto sobre aqueles que não faziam parte da nobreza) para manutenção do exército.
Uma outra Assembléia, em 1377, permitiu a "gabela" (do francês, gabelle: imposto sobre o sal) e outros impostos sobre vendas. Os Estados Gerais de Champagne, em 1382, recusaram os impostos solicitados. Entretanto, estudiosos reconhecem que o consentimento popular do imposto foi, realmente, autografado na Revolução Francesa. Na época, o Rei Luís XVI detinha o poder absoluto. Os nobres, que eram a minoria, se beneficiavam de privilégios consideráveis. A burguesia, que dominava totalmente as atividades comerciais e industriais, queria liberdade de comércio e abolição dos privilégios. Por outro lado, péssimas colheitas e aumentos de preços, juntamente com as dificuldades financeiras vividas pela monarquia francesa, aumentavam o descontentamento geral. Como conseqüência, ocorria um aumento constante do déficit do Estado e decorrente necessidade de imposição de novos tributos.
No período napoleônico, autoritário, o controle representativo sobre a criação de impostos não foi respeitado. Com a restauração, a Assembléia Nacional começou a participar do processo orçamentário, inicialmente, em 1815, decretando a "Lei Financeira Anual", sem controlar o detalhamento das dotações. A partir de 1831, o controle parlamentar sobre o orçamento passou a ser completo.
De acordo com Burkhead, o sistema orçamentário francês ajudou a consolidar algumas regras (princípios) orçamentários, hoje consideradas básicas:
-
anualidade do orçamento;
-
votação do orçamento antes do início do exercício;
-
o orçamento deve ter todas as previsões financeiras para o exercício (universalidade); e
-
não vinculação de itens de receita a despesas específicas (não afetação das receitas).
Estados Unidos
Historicamente, considera-se que a independência americana decorreu também, entre outros fatores (maturidade política e independência econômica), do descontentamento dos colonos em face da cobrança de tributos pela metrópole inglesa. Ou seja, a cobrança de impostos pelo Parlamento inglês à revelia de qualquer legitimação popular foi a gota d’água para o início do processo de independência americano. Caso semelhante aconteceu no Brasil colonial (Inconfidência Mineira).
Nos primeiros anos de República, não havia uma nítida separação das funções legislativas e executivas em matéria financeira. Em 1789, a autorização para orçar gastos, criar tributos e tomar empréstimos foi concedida pela Constituição ao Congresso. Nesse mesmo ano, o Congresso repassou ao recém criado Departamento do Tesouro a responsabilidade de preparar e relatar as estimativas das receitas e despesas públicas.
A partir de 1802, a Câmara dos Representantes designou uma "Comissão de Meios e Recursos" que passou a assumir forte controle sobre as finanças do governo. O Secretário do Tesouro, ao lado da apresentação de seu relatório anual, submetia ao Congresso o levantamento preliminar das necessidades de despesas das diversas unidades que compunham o governo. A Comissão dos Meios e Recursos fazia o papel de órgão de planejamento, consolidava os programas setoriais e possibilitava uma visão de conjunto das finanças do Estado.
Por volta de 1865, a Comissão dos Meios e Recursos perdeu sua função centralizadora e começou a dividir com outras comissões a autoridade sobre os créditos de despesa. Em 1885, havia oito comissões na Câmara dos Representantes e oito no Senado. Iniciou-se um processo de desorganização, desperdícios e corrupção nas finanças americanas.
Em 1910, o presidente Taft designou a "Comissão de Economia e Eficiência" que objetivava realizar estudos e modernizar a administração federal. Em 1912, o presidente encaminhou ao Congresso relatório da comissão e recomendou a adoção de um verdadeiro e novo orçamento nacional: "...um plano em que o Presidente e o Congresso possam cooperar - o primeiro, apresentando ao Congresso e ao País um programa administrativo de trabalho claramente expresso, para ser cumprido; o segundo, dando-lhe uma lei que lhe caberá cumprir." ... "um documento de ação para o Congresso, um instrumento de controle e de administração para o Chefe do Executivo e base para fazer funcionar departamentos e órgãos" ... "A fim de que possa pensar com clareza sobre o problema de sua responsabilidade, o administrador precisa ter diante de si dados que reflitam resultados...medir a qualidade e a quantidade em termos de custo e eficiência."
Os argumentos da comissão - e a falta de respaldo político - não foram suficientes para vencer os congressistas, politicamente interessados em manter ascendência sobre o Executivo na aplicação dos recursos públicos.
A crescente mudança no papel do Estado e sua progressiva complexidade exigiam da máquina administrativa a adoção de métodos e processos cada vez mais sofisticados e ágeis. Esse aspecto passou a ser valorizado dentro da própria Câmara dos Representantes que, em 1919, designou comissão para estudar o assunto. As conclusões foram no sentido da adoção do orçamento elaborado pelo Executivo, proposta aprovada neste mesmo ano pela Câmara e transformada em lei, em 1921, sob a denominação "Lei de Orçamento e Contabilidade" (Budget and Accounting Act).
Definitivamente, a questão das finanças públicas contribuiu, e muito, na afirmação dos parlamentos frente aos poderes absolutistas e, em decorrência, na formação das modernas democracias representativas. As revoltas, revoluções e disputas, ora resolvidas com armas, ora com votos, ajudaram a desenhar as relações entre cidadãos e seus governantes. Interpondo-se entre estes, os senadores, deputados federais, deputados estaduais e vereadores de hoje ficam investidos da responsabilidade histórica de manter as conquistas obtidas.
Brasil
A Revolta de Felipe dos Santos, em 1720; a Inconfidência Mineira, em 1789; a Revolta Farroupilha, em 1820; a Revolta do Quebra-Quilo, em 1896, entre outros, são exemplos que marcaram, no Brasil, o descontentamento dos cidadãos em relação à cobrança de impostos sem o respeito aos princípios da legalidade e do consentimento.
Com a vinda de D. João VI, iniciou-se a organização das finanças públicas. A abertura dos portos, com a conseqüente criação de tributos aduaneiros, gerou a necessidade de se criar o Erário Público (Tesouro) em 1808.
Notas:
1- Balleeiro, Aliomar. Uma Introdução à Ciência das Finanças e à Política Fiscal
2 - Viana, Arizio de. Orçamento Brasileiro
3 - Burkhead, Jesse. Orçamento Público