Legislação Informatizada - DECISÃO DA PRESIDÊNCIA DE 04/04/2016 - Publicação Original

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DECISÃO DA PRESIDÊNCIA DE 04/04/2016

Rejeita denúncia contra o Vice-Presidente MICHEL MIGUEL ELIAS TEMER, atribuindo-lhe a prática de crimes de responsabilidade.

     I. CID FERREIRA GOMES oferece denúncia contra o Vice-Presidente da República, MICHEL MIGUEL ELIAS TEMER, atribuindo-lhe a prática de crimes de responsabilidade previstos no art. 85, V 1 da Constituição da República e no art. 9º, item 72, da Lei 1.079/50. Alega o Denunciante que o Denunciado teria sido formalmente citado no Acordo de Colaboração Premiada do Senador Delcídio do Amaral em ilicitudes praticadas no "escândalo de aquisição de etanol na BR Distribuidora" e na "indicação de Jorge Zelada para a Diretoria Internacional da Petrobrás". Acrescenta que foram feitas nesse Acordo de Colaboração, e em outros, diversas menções acerca de ilicitudes envolvendo o PMDB, sendo que a responsabilidade do Denunciado estaria vinculada a essas questões por exercer a presidência do referido partido.

     Na perspectiva jurídica, o Denunciante defende a tese de que o Vice-Presidente da República pode responder por ato anterior ao exercício do seu mandato, ao contrário do Presidente da República, ao argumento de que há uma linha sucessória ao Vice-Presidente da República que não abala as estruturas institucionais, contrariamente à ruptura que representaria, nesse sistema presidencialista, o afastamento do Presidente da República, por ato anterior ao mandato vigente. Afirma que o seguimento da presente denúncia não pode estar subordinado a uma decisão advinda do Presidente da Câmara dos Deputados, uma vez que, além de ser membro do mesmo partido do denunciado, está diretamente envolvido em uma das acusações de crime de responsabilidade a ele imputadas, conforme já acima narrado.

     Por fim, assevera que os fatos colacionados revelam a adequação típica ao crime de responsabilidade, pois ainda que não haja condenação criminal, há aqui uma clara infração político administrativa, passível de processamento e julgamento na forma prevista pela Constituição e pelas Casas Legislativas, acrescentando que, enquanto o denunciado omite-se dolosamente, como presidente do PMDB em face das fartas acusações de corrupção que assolam o partido, tenta ainda se esquivar das responsabilidades do cargo de Vice-Presidente da República na assunção das ações e definições dos rumos do governo, mesmo quando a ele recai a incumbência de agir como Presidente da República.

     Relatados, passo a decidir.

     II. Inicialmente, registro a competência desta Presidência para tratar da admissibilidade prévia da denúncia, em juízo preliminar, afastando-se a alegação de impedimento/suspeição, uma vez inaplicável ao processo político-jurídico as regras de processo penal que tratam do tema, salvo quanto às hipóteses previstas no art. 363 da Lei n. 1.079/50, não presentes no caso.

     Com efeito, quando do julgamento da ADPF n. 378-DF, pelo Supremo Tribunal Federal, restou decidido, por unanimidade, pela impossibilidade de aplicação subsdidiária das hipóteses de Impedimento e suspeição do CPP relativamente ao Presidente da Câmara dos Deputados. Do voto do Ministro FACHIN, a propósito, colhe-se o seguinte entendimento, acompanhado a unanimidade pelos demais Ministros daquela Corte:

"Com efeito, não se imagina que seja possível alcançar uma ordem jurídica justa percorrendo-se uma travessia demarcada por um ambiente em que o destinatário das provas produzidas já possui juízo de mérito pré-concebido. A parcialidade, nessa ótica, também se materializa pela subversão das fases processuais, antecipando-se a valoração à produção da prova. Não se ignora, destarte, a relevância do instituto, de aplicação vocacionada ao sistema judiciário, visto que essas considerações não podem ser simplesmente transportadas ao plano de processos político-jurídicos. Primeiro, pelo fato de que, por opção constitucional, determinadas infrações sujeitam-se a processamento e a julgamento em território político, em que os atores ocupam seus postos com supedâneo em prévias agendas e escolhas dessa natureza. Sendo assim, soa natural que a maioria dos agentes políticos ou figuram como adversários do Presidente da República ou comungam de suas compreensões ideológico-políticas. Esses entraves de ordem política são da essência de um julgamento de jaez jurídico-político. Escolha que, repita-se, decorre da própria Constituição.

A propósito, essa compreensão, se levada a extremo, poderia conduzir à inexistência de agentes políticos aptos a proferir julgamento. Por exemplo, as inclinações de agentes governistas e oposicionistas, mormente na hipótese de manifestações públicas, dando conta da predisposição decisória, induziriam ao reconhecimento da parcialidade? Como exigir, num julgamento de conteúdo também político, impessoalidade, por exemplo, das lideranças do governo e da oposição?
(...) Nesse cenário, o Juiz imparcial deve estar sujeito apenas à lei. Essa lógica, entretanto, não se transmite ao processo jurídico-político, na medida em que os julgadores, além de sujeitos à lei, também atendem a interesses externos, inclusive de seus representados. Vale dizer, a carga política da decisão decorre, em última análise da função representativa dos parlamentares, inaplicável aos Juízes (...). (...) Ademais, os Juízes gozam de prerrogativas funcionais direcionadas à garantia de independência, como a inamovabilidade, a vitaliciedade e a irredutibilidade de subsídio (art. 95 CRFB/88). Essa independência existe para, entre outras razões, produzir as condições materiais indispensáveis ao julgamento imparcial. Já os parlamentares são regidos por lógica diversa, pois exercem mandato com termo final estabelecido e cuja renovação desafia a aprovação nas urnas. Outrossim, a independência do parlamentar deve ser exercida com observância da Constituição e de forma correspondente aos anseios dos representados. Sendo assim, ao contrário do que ocorre no âmbito judicial, a imparcialidade não constitui característica marcante do Parlamento. Diante disso, exigir aplicação fria das regras de julgamento significaria, em verdade, converter o julgamento jurídico-político em exclusivamente jurídico, o que não se coaduna com a intenção constitucional. A Constituição pretendeu que o julgador estivesse sujeito à lei e a interesses políticos, de modo que a subtração dessa perspectiva implicaria violação ao Princípio Democrático. (...)".

     Outro não foi o entendimento do Ministro ROBERTO BARROSO, ao assinalar, nesse mesmo julgamento, o seguinte:

"Embora o art. 38 da Lei n. 1.079/1950 reconheça a aplicação subsidiária do Código de Processo Penal ao processo e julgamento do Presidente da República por crime de responsabilidade, somente estarão impedidos de funcionar nesse processo os parlamentares que se encontram em situações previstas no art. 36 da mesma lei, não se aplicando subsidiariamente as hipóteses de impedimento e suspeição previstas no CPP. E isso por três razões. Em primeiro lugar, é incabível a equiparação entre magistrados, dos quais se deve exigir plena imparcialidade, e parlamentares, que devem exercer suas funções com base em suas convicções político-partidárias e pessoais e buscar realizar a vontade dos representados. Em segundo lugar, a aplicação subsidiária pressupõe ausência de previsão normativa na lei, o que não ocorre em relação à Lei n. 1.079/50, que estabelece os casos de impedimento no art. 36. Por fim, embora a Lei de Crimes de Responsabilidade não estabeleça hipóteses de suspeição, não há que se falar em lacuna legal. É compreensível que o legislador tenha fixado, apenas e excepcionalmente, casos de impedimento, dado o fato de que o processo de impeachment ocorre no âmbito do Legislativo, onde divergências, embates e acusações ganham lugar cotidianamente".

     Acrescente-se que em outra decisão, também envolvendo o processo de impeachment da atual Presidente da República (MS 33.921-DF), o Ministro GILMAR MENDES indeferiu a liminar requerida em mandado de segurança impetrado por parlamentares da base aliada, no qual também se sustentava desvio de poder ou de finalidade, sob o argumento de que o Presidente da Câmara dos Deputados se utilizou "da gravíssima competência de admitir a instauração de processo de impeachment como instrumento para impedir a apuração de seus desvios éticos, chantagear adversários ou promover vingança política". Aduziram os impetrantes daquele writ que o Presidente da Câmara dos Deputados teria agido em defesa de seu interesse pessoal, qual seja, evitar sua própria cassação. Da decisão referida, que afastou expressamente tais alegações, colhe-se o seguinte trecho, merecendo atenção os trechos destacados:

"Em breve juízo cautelar, verifica-se a ausência da plausibilidade jurídica (fumus boni juris), uma vez que a atuação do Presidente da Câmara dos Deputados confere apenas contornos de condição de procedibilidade formal, envolvendo o recebimento da denúncia, sem conferir qualquer juízo de mérito sobre a questão.

Citem-se os arts. 14 a 19 da Lei nº 1.079/50, a saber: (...)
Ou seja, trata-se de análise acerca do cumprimento dos requisitos formais de prosseguimento da denúncia, inexistindo juízo de certeza quanto aos fatos e as consequências que culminaram com o pedido contido na peça inicial (impedimento da Presidente da República). Ressalte-se que eventuais interesses político-partidários divergentes da autoridade apontada como coatora em face da Presidente da República, que poderiam revelar, inclusive, a existência de inimizade, não significariam a violação das garantias decorrentes da organização e procedimento do processo vindouro, iniciado com o ato ora atacado. Esta Corte, quando da apreciação do mandado de segurança impetrado pelo então Presidente da República, Collor de Melo, assentou que o processo de impeachment Investe o Congresso Nacional de uma função "judicialforme", nos seguintes termos: CONSTITUCIONAL. 'IMPEACHMENT': NA ORDEM JURÍDICA AMERICANA E NA ORDEM JURÍDICA BRASILEIRA. O "IMPEACHMENT" E O "DUE PROCESS OF LAW". IMPEDIMENTO E SUSPEIÇÃO DE SENADORES. ALEGAÇÃO DE CERCEAMENTO DE DEFESA. Constituição Federal. art. 51, I; art. 52, I, paragrafo único; artigo 85, parag. único; art. 86, PAR. 1., II, PAR. 2.; Lei n. 1.079, de 1.950, artigo 36; artigo 58; artigo 63. I. - O "impeachment", no sistema constitucional norte-americano, tem feição politica, com a finalidade de destituir o Presidente, o Vice-Presidente e funcionários civis, inclusive juízes, dos seus cargos, certo que o fato embasador da acusação capaz de desencadeá-lo não necessita estar tipificado na lei. A acusação poderá compreender traição, suborno ou outros crimes e delitos ('treason, bribery, or other high crimes and misdemesnors.'). Constituição americana, Seção IV do artigo II. Se o fato que deu causa ao "impeachment" constitui, também, crime definido na lei penal, o acusado respondera criminalmente perante a jurisdição ordinária. Constituição americana, artigo I, Seção III, item 7. II. - O "impeachment" no Brasil republicano: a adoção do modelo americano na Constituição Federal de 1891, estabelecendo-se, entretanto, que os crimes de responsabilidade, motivadores do "impeachment", seriam definidos em lei, o que também deveria ocorrer relativamente a acusação, o processo e o julgamento. Sua limitação ao Presidente da Republica, aos Ministros de Estado e Ministros do Supremo Tribunal Federal. CF/1891, artigos 53, parág. único, 54, 33 e PARAGRAFOS, 29, 52 e PARAGRAFOS, 57, PAR. 2 .. III. - O "impeachment" na Constituição de 1988, no que concerne ao Presidente da Republica: autorizada pela Câmara dos Deputados, por dois terços de seus membros, a instauração do processo (C.F., art. 51, I), ou admitida a acusação (C.F., art. 86), o Senado Federal processara e julgara o Presidente da República nos crimes de responsabilidade. E dizer: o "impeachment" do Presidente da Republica será processado e julgado pelo Senado Federal. O Senado e não mais a Câmara dos Deputados formulara a acusação (juízo de pronuncia) e proferira o julgamento. C.F./88, artigo 51, I; art. 52; artigo 86, PAR. 1., II, PAR.2., (MS no 21.564-DF). A lei estabelecera as normas DE processo e julgamento. C.F., art. 85, par. único. Essas normas ESTAO na Lei n. 1.079, de 1.950, que foi recepcionada, em grande PARTE, pela CF/88 (MS n. 21.564-DF). IV. - O 'impeachment' e o 'due process of law': a aplicabilidade deste no processo de 'impeachment', observadas as disposições específicas inscritas na Constituição e na lei e a natureza do processo, ou o cunho político do Juízo. C.F., art. 85, parag. único. Lei n. 1.079, de 1950, recepcionada, em grande parte, pela CF/88 (MS n. 21.564-DF). V. - Alegação de cerceamento de defesa em razão de não ter sido inquirida testemunha arrolada. Inocorrência, dado que a testemunha acabou sendo ouvida e o seu depoimento pode ser utilizado por ocasião da contrariedade ao libelo. Lei N. 1079/50, art. 58. Alegação no sentido de que foram postas nos autos milhares de contas telefônicas, as vésperas do prazo final da defesa, o que exigiria grande esforço para a sua analise. Os fatos, no particular, não se apresentam incontroversos, na medida em que não seria possível a verificação do grau de dificuldade para exame de documentos por parte da defesa no tempo que dispôs. VI. - Impedimento e suspeição de Senadores: inocorrência. O Senado, posto investido da função de julgar o Presidente da Republica, não se transforma, as inteiras, num tribunal judiciário submetido as rígidas regras a que estão sujeitos os órgãos do Poder Judiciário, ja que o Senado e um órgão político. Quando a Câmara Legislativa - o Senado Federal se investe de "função judicialiforme", a fim de processar e julgar a acusação, ela se submete, e certo, a regras jurídicas, regras, entretanto, proprias, que o legislador previamente fixou e que compoem o processo político-penal. Regras de impedimento: artigo 36 da Lei n. 1.079, de 1.950. Impossibilidade de aplicação subsidiaria, no ponto, dos motivos de impedimento e suspeição do Cod. de Processo Penal, art. 252. Interpretação do artigo 36 em consonância com o artigo 63, ambos da Lei 1.079/50. Impossibilidade de emprestar-se interpretação extensiva ou compreensiva ao art. 36, para fazer compreendido, nas suas alíneas "a" e "b", o alegado impedimento dos Senadores. VII. - Mandado de Segurança indeferido. (MS 21623, Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, j. 17.12.1992 e p. 28.5.1993)- Grifo nosso. Observando detidamente o ato apontado como coator, configura-se claro que houve apenas análise formal pelo Chefe da Câmara dos Deputados, devidamente fundamentada, no exercício do seu mister constitucional. A garantia do devido processo legal, no processo de impeachment, está na observância das garantias institucionais político-jurídicas que emergem a partir dai, quais sejam: prazo para defesa, análise pela comissão especial, quórum qualificado para autorização de instauração do processo (2/3 dos membros da Câmara dos Deputados), processo e julgamento pelo Senado Federal, sob a presidência do Ministro Presidente do Supremo Tribunal Federal. Considero oportuno relembrar as lições do saudoso Min. Paulo Brossard, que, em obra clássica sobre o tema, assevera: "169. Na sua instauração, na sua condução e na sua conclusão; o impeachment terá inspiração política, motivação política, estímulos políticos. Políticos serão os resultados perseguidos. É natural que seja assim; dificilmente assim não será. Contudo, isto não quer dizer que o impeachment seja inteiramente discricionário e que o seu desenvolvimento se processe ao inteiro sabor de uma e outra casa do Congresso, tanto é certo que, uma vez instaurado, deve desdobrar-se segundo a lei, que minuciosamente o disciplina. Em glosa ao Regimento do Senado norte-americano, Thomas Jefferson, que o presidiu, escreveu que, em matéria de impeachment, a decisão senatória 'must be secundum, non ultra legem'. E não só a sentença, mas o processo todo, no que diz respeito e suas fases e formalidades. 170. A autoridade do Congresso em matéria de impeachment é terminante, não porque o processo seja 'questão exclusivamente política', no sentido jurídico, mas porque a Constituição reservou ao Congresso a competência originária e final para conhecer e julgar, de modo incontrastável e derradeiro, tudo quanto diga à responsabilidade política do Presidente da República". (BROSSARD, Paulo de Souza Pinto. O lmpeachment. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 182-183).Grifo nosso. Ante o exposto, indefiro a homologação da desistência e o pedido liminar, nos termos do art. 7º da Lei n° 12.016/09".

      Por tudo isso, o só fato de o denunciado ser integrante do PMDB, mesmo partido político da qual faço parte, não é causa suficiente para afastar a minha competência/atribuição para análise desta denúncia.
    
     Cito como exemplo várias decisões proferidas pelos então Presidentes desta Casa Deputados Marco Maia e Arlindo Chinaglia, ambos integrantes do Partido dos Trabalhadores, que, dentro de suas atribuições constitucionais, decidiram normalmente, sem qualquer questionamento, denúncias por crimes de responsabilidade oferecidas contra os Presidentes da República Luís Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, também eleitos pelo mesmo partido politico, conforme abaixo:

Presidente da Câmara

Denúncias apresentadas

Decisões proferidas

Denunciado

Arlindo Chinaglia
(53ª Legislatura)

7

7

Luís Inácio Lula da Silva

Marco Maia
(54ª Legislatura)

3

3

Dilma Rousseff


     A alegação, por sua vez, de que um dos crimes de responsabilidade apontado na denúncia teria supostamente a minha participação (o que não é verdade, diga-se de passagem) também não se constitui como causa suficiente para afastamento da minha competência/atribuição, por se tratar de afirmação genérica, proposital, absolutamente superficial, sem qualquer indicativo concreto.

     III. Também assinalo preliminarmente que o Supremo Tribunal Federal tem orientação firmada, sem ressalvas, desde quando esse tema veio a debate, que a competência do Presidente da Câmara dos Deputados e da Mesa do Senado Federal para recebimento, ou não, de denúncia no processo de impeachment não se restringe a uma admissão meramente burocrática, cabendo-lhes, inclusive, a faculdade de rejeitá-la, de plano, acaso entendam ser patentemente inepta ou despida de justa causa (MS 30672, Min. Ricardo Lewandowski). Em outras palavras, segundo aquela Corte Suprema, o exame liminar da idoneidade da denúncia popular não se reduz a verificação das formalidades extrínsecas e da legitimidade de denunciantes e denunciados, mas se pode estender a rejeição imediata da acusação patentemente inepta ou despida de justa causa, sujeitando-se ao controle do Plenário da causa, mediante recurso (MS 20941, Min. Sepúlveda Pertence).

     Pode-se dizer, assim, que o juízo de admissibilidade da Presidência da Câmara dos Deputados não pode se restringir a análise dos aspectos meramente formais previstos nos artigos 144 e 165 da Lei n. 1.079/50, sob pena de permitir a deflagração de vários processos, até mesmo simultaneamente, dentro de um mesmo mandato, inviabilizando a condução do país e os trabalhos da Câmara dos Deputados, além de permitir, eventualmente, o processamento de acusações abusivas, levianas e ineptas.

     Para se ter uma ideia da relevância da questão, até o momento, em relação a esse segundo mandato da Presidente da República, já foram apresentados mais de 40 denúncias de impeachment e apenas uma delas foi admitida, não obstante outras, a rigor, também preenchessem os aspectos meramente formais da denúncia. Como tenho dito em diversas oportunidades, não se pode permitir a abertura de processo tão relevante sem um mínimo de substrato fático e jurídico. Na recente história democrática, essa é apenas a segunda vez que se admite a instauração de processo dessa natureza.

     A respeito, o Ministro FACHIN em seu voto na referida ADPF n. 378-DF fez referência a parecer da Procuradoria Geral da República (MPF) ofertado no MS 23.885, relator o Ministro CARLOS VELLOSO, com a seguinte redação, que bem resume a questão:

"Dessa forma, tem-se que a denúncia apenas será lida no expediente da sessão seguinte e despachada a uma comissão especial eleita se recebida pelo Presidente da Câmara dos Deputados. Pela simples leitura das normas supramencionadas nota-se que não cabe ao Presidente da Casa submeter, de imediato, a denúncia ao Plenário, como quer fazer entender o impetrante. lrrefutável, portanto, que o processo por crime de responsabilidade contempla um juízo preambular acerca da admissibilidade da denúncia. Faz-se necessário reconhecer ao Presidente da Câmara dos Deputados o poder de rejeitar a denúncia quando, de logo, se evidencie, por exemplo, ser a acusação abusiva, leviana, inepta, formal ou substancialmente. Afinal, cuida-se de abrir um processo de imensa gravidade, um processo cuja simples abertura, por si só, significa uma crise".

     IV. Ainda sobre o tema, não é demais lembrar que a admissão da denúncia é competência exclusiva -- em juízo precário, preliminar, não vinculante -- do Presidente da Câmara dos Deputados, e, ao final, em caráter definitivo, do Plenário da Câmara dos Deputados, não se admitindo a revisão desse ato, mérito, pelo Poder Judiciário, sob pena de gravíssima e indevida intervenção.

     O Ministro PAULO BROSSARD, talvez o doutrinador que mais se debruçou sobre o estudo do instituto do impeachment, chegou, inclusive, a defender a impossibilidade de haver controle judiciário sobre as decisões políticas tomadas no processo de impeachment. Isso se deu no julgamento do MS 20.941 pelo Supremo Tribunal Federal, cuja tese foi acompanhada pelo Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE, relator designado do acórdão.

     Pois bem. Já quando do julgamento do agravo interposto nesse mandado de segurança contra o indeferimento da liminar que tinha como objetivo rever decisão da Presidência da Câmara dos Deputados que, naquela época, determinou o arquivamento de denúncia popular, assinalou S.Exa, já adentrando na questão controvertida:

"O processo de responsabilidade começa e termina no âmbito parlamentar. Uma certa fase é na Câmara, e exclusivamente na Câmara, outra fase no Senado, e exclusivamente no Sentado. As decisões podem ser as mais chocantes e delas não cabe recurso, não cabe recurso para tribunal algum. Talvez eu esteja adiantando um pouco. mas quer me parecer que, da mesma forma que o judiciário não poderia sustar um processo, ele não pode determinar que ele seja instaurado. É um assunto que foge da competência do Poder Judiciário. É um dos casos que configuram exceção ao monopólio jurisdicional do Poder Judiciário".

     Quando do julgamento do mérito, S. Exa. insistiu com a mesma tese, deste vez de forma mais fundamentada, nos seguintes termos:

"Se o Vice-Presidente da Câmara dos Deputados, no exercício da Presidência, e depois o Presidente daquela Casa deixaram de dar curso à petição dos impetrantes e determinaram seu arquivamento, por motivos (inépcia) cuja análise ou apreciação não cabe ao Judiciário. Da decisão em causa caberia recurso ao plenário da Câmara e este, pelo que consta dos autos, não foi usado. Pretender agora que o Judiciário pratique ou mande praticar ato que é da exclusiva competência da autoridade legislativa praticar, parece-me manifestamente injurídico.

O processo de responsabilidade, em suas distintas fases, foi confiado a Câmara e ao Senado, sucessivamente. As matérias a ele relativas são da competência privativa ora da Câmara ora do Senado. O Judiciário, por isso, não tem interferência no processo, nem cabe recurso a ele das decisões, seja da Câmara, seja do Senado, em qualquer de suas fases, inclusive das derradeiras, condenatórias ou absolutórias.
Não porque o assunto seja 'exclusivamente político', no qual impera a discrição, mas porque a Constituição, na repartição de competência, conferiu ao Congresso e só a ele, Câmara e Senado, iniciar, conduzir e encerrar o processo. Privativamente. Esta a razão. Segundo o magistério de SEABRA FAGUNDES, é uma exceção 'ao monopólio jurisdicional do Poder Judiciário', o Controle dos Atos Administrativos pelo Poder Judiciário, 1957, n. 66, p. 156, 1967, n. 66, p. 139. Também me parece claro que assim prescreveu a Constituição tendo em vista a natureza jurídica do impeachment. (...) Esses dados sobre natureza do impeachment explicam porque a Constituição situou-se em território estranho ao Poder Judiciário. E mesmo ao tempo do Império, quando o Senado aplicava sanções de caráter criminal, não se admitia recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça das decisões do Senado (...). CARLOS MAXIMILIANO foi dos nossos constitucionalistas o que versou com mais abundância os problemas relacionados com o impeachment. E acentuou insistentemente o seu caráter de processo político que excluía toda intervenção judiciária. Quando Ministro deste Supremo Tribunal teve ensejo de registrar essa doutrina, não tomando conhecimento de mandado de segurança, impetrado pelo Governador Achiles Lisboa, do Maranhão, (...) . (...) Dai porque entendo que o Judiciário deve ser cauteloso ao aproximar-se de um terreno, que não é o seu. A despeito da lição de autoridades eminentes, entendo imprudente afirmar que, em caso algum, o Judiciário tomará conhecimento de situações criadas em função de impeachment, tanto mais quando, para o julgamento do caso em exame, não há necessidade de enfrentar a delicada questão. Não questiono se o Vice-Presidente da Câmara procedeu bem ou mal ao arquivar o relatório da CPI do Senado que lhe foi apresentado, como não indago se o Presidente da Câmara, que o manteve, agiu com acerto. O que sei, é que o Judiciário não pode condenar o absolvido, nem pode absolver o condenado, ou seja, não pode rever essas decisões parlamentares, como não pode determinar que o processo seja instaurado, ou que seja arquivado. São questões que fogem de sua competência. Em matéria de impeachment, tudo se passa, do início ao fim, no âmbito legislativo, convertido em juízo de acusação, ou de autorização, na linguagem da atual Constituição, e em tribunal de julgamento, exclusivo e irrecorrível. (...) Dir-se-á que esse entendimento conflita com o princípio segundo o qual nenhuma lesão de direito pode ser excluída da apreciação judicial. Esse conflito, porém, não ocorre no caso concreto, pois, a mesma Constituição que enuncia essa regra de ouro, reserva privativamente a uma e outra Casa do Congresso o conhecimento de determinados assuntos, excluindo-os da competência de qualquer outra autoridade. Assim, no que tange ao processo de responsabilidade do primeiro ao último ato, ele se desenvolve no âmbito do Poder Legislativo, Câmara e Senado, e em nenhum momento percorre as Instâncias judiciárias. Como foi acentuado, é uma exceção, mas exceção constitucionalmente aberta, ao monopólio jurisdicional do Poder Judiciário. A lei não pode dispor assim. A Constituição poderia. Foi o que fez".

     Embora essa tese não tenha prevalecido, a ponto de considerar insuscetível de apreciação do Poder Judiciário toda e qualquer decisão proferida em processos dessa natureza, certo é que o pedido formulado naquele mandado de segurança foi denegado, por prevalecer o entendimento de que a revisão da decisão do Presidente da Câmara dos Deputados, pelo Poder Judiciário, só pode ocorrer em situações excepcionais, quando presente induvidosa ilegalidade e abuso do poder, aferível a partir de fatos absolutamente certos e inequívocos. O Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE, relator designado para o acórdão desse julgado, assentou, de forma bem didática:

"Cuida-se de abrir um processo, de imensa gravidade, é um processo cuja abertura, por si só, significa uma crise. Então nega-se ao Presidente da Câmara saber se o fato, em tese, é crime de responsabilidade? Se a denúncia, na linguagem do meu saudoso conterrâneo Orozimbo Nonato, é ou não uma criação mental de acusação? Se a documentação, que, segundo a lei, deve comprovar a denúncia, pelo contrário, não prova a inexistência do crime de responsabilidade? E lembro, sem querer entrar na análise de mérito, que, no caso, uma das imputações ao Presidente é ter baixado um decreto-lei, que, no entanto, foi aprovado pelo Congresso Nacional, e consequentemente, tornou-se uma lei. Em casos que tais, nada teria a fazer o Presidente da Câmara dos Deputados para, de logo, por um fim à leviandade?" O que entendo é que não se pode reduzir o seu papel à verificação burocrática, que se pretende. É a alta autoridade do Presidente da Câmara dos Deputados que se confiou a decisão liminar num processo que, já na fase seguinte, irá à Plenário para a eleição de uma comissão (...). Por isso, admitindo que não é hora de agrimensura jurídica para demarcar, centímetro por centímetro até onde pode e até onde não pode ir o Presidente da Câmara, o que me parece ser necessário é reconhecer-lhe o poder de rejeitar a denúncia, quando, de logo, se evidencie que a acusação é abusiva, é leviana, é inepta, formal ou substancialmente. Certo, sempre admiti, desde o meu voto escrito, que o abuso desse poder pode levar o Presidente da Câmara, arbitrariamente, a matar no início um processo da maior seriedade. Mas, isso é irreparável na Câmara dos Deputados? Obviamente que não é. Tanto que, no caso, houve recurso de uma Deputada, que chegou a ser admitido. É verdade, admitiu a maioria contra o meu voto, que o ato questionado pode ser também objeto de controle do Judiciário, que decidirá também da sua legitimidade em atenção ao direito, em tese, do denunciante. Não obstante, parece-me claro, para que dai se chegue à concessão do mandado de segurança, seria necessário que a verificação da ilegalidade, do abuso do poder do Presidente da Câmara se pudesse fazer a partir de fatos absolutamente certos, de modo a reconhecer um direito líquido e certo à abertura do procedimento. Aos condenados em processos administrativos, quantas vezes temos denegado o mandado de segurança se demonstrou limpidamente, com documentos inequívocos, o absurdo da condenação que lhe foi imposta. Mas o desfazimento do ato da alta magistratura do Presidente da Câmara poder-se-ia fazer, cotejando, em mandado de segurança, o despacho com o parecer, com os documentos a que faz alusão o parecer, muitas vezes para dizer que o invés de ser prova ou início de prova da acusação, são provas contundentes da inexistência do crime? Não vejo como fazer isso em mandado de segurança. (...) Entendo, por conseguinte, que cabe ao Presidente da Câmara dos Deputados, inclusive verificar a inépcia e a patente falta de justa causa - e foi o que S.Exa. afirmou. Se procede ou não esse juízo liminar da Presidência da Câmara - por mais profundo e amplo que seja o poder de controle judicial, que, a respeito, contra o meu voto o Tribunal afirmou - e, politicamente, até me congratulo com essa afirmação do Tribunal - acho que, por mais amplo que seja este poder de controle, ele não irá ao ponto de, em mandado de segurança, nos levar a reformar a decisão, quando sequer nos foram trazidos os documentos que se fundou".

     V. Há outra relevante preliminar: a Lei n. 1.079/50 não faz referência ao Vice-Presidente da República ao disciplinar os crimes de responsabilidade, mas apenas ao Presidente da República, Ministros de Estado, Ministros do Supremo Tribunal Federal e ao Procurador Geral da República. Apenas os arts. 51 e 52 da Constituição Federal fazem referência ao Vice-Presidente da República quando tratam dos crimes de responsabilidade. O art. 86 da Constituição Federal, por sua vez, ao tratar do processo do impedimento em si do Presidente da República, também não faz referência ao Vice-Presidente da República.

     O Supremo Tribunal Federal já firmou orientação no sentido de que os Ministros de Estado só respondem por crime de responsabilidade perante a Câmara dos Deputados quando o suposto crime cometido é conexo com o do Presidente da República (v.g., QC n. 427). Se não for conexo, a competência para julgamento é do Supremo Tribunal Federal (art. 102, I, c).

     Assim, ao menos em tese, conjugando todas essas questões, pode-se concluir que o Vice-Presidente da República só responde por crime de responsabilidade mediante autorização da Câmara dos Deputados, em processo de impeachment propriamente dito, ou quando estiver no exercício da Presidência de forma efetiva, não eventual, ou quando o suposto crime cometido for conexo com o do Presidente da República.

     Diz efetiva, não eventual, porque, nessas situações de substituição eventual, o Vice-Presidente assume a Presidência apenas para dar seguimento à orientação pré-estabelecida pelo Presidente em relação a todas as matérias e políticas governamentais, não lhe assistindo a possibilidade de inovar ou alterar o curso e/ou o conteúdo do projeto já estabelecido. Não pode, por isto, ser responsabilizado por dar-lhes continuidade, no papel de substituto eventual, não partícipe das decisões que lhes deram origem.

     No caso dos autos, nenhum dos supostos crimes cometidos pelo Vice-Presidente da República -- indicados na denúncia -- se enquadram nessas duas situações. Assim, em linha de princípio, a Câmara dos Deputados sequer seria competente para a análise da admissibilidade desta denúncia.

     VI. Caso assim não se entenda, e se equipare o Vice-Presidente da República ao Presidente da República para fins de impeachment, parece induvidoso que deverá ser aplicado ao substituo a mesma garantia dada ao titular do cargo em relação ao disposto no § 4° do artigo 86 da Constituição Federal, o qual estabelece não ser possível a responsabilização do Presidente da República por atos anteriores ao mandato vigente.

     No caso, a denúncia relata fatos anteriores ao mandato ora vigente. Assim, em tese, não seria caso de admitir a denúncia, da mesma forma que procedi quanto à denúncia oferecida contra a Presidente da República, ora em curso na Câmara dos Deputados.

     VIl. Ainda que superadas todas essas questões preliminares, mesmo assim não seria caso de admissão da denúncia. Trata-se de denúncia abusiva, leviana, inepta, fundada única e exclusivamente em divergência política, uma vez ausente dado concreto que pudesse, eventualmente, implicar em crime de responsabilidade, o que configura ausência de justa causa.

     O Denunciante não cuidou de pormenorizar cada uma das condutas do Denunciado que importam no cometimento de crime de responsabilidade nem demonstrou minimamente a participação direta ou indireta de Sua Excelência nesses atos, o que implica no reconhecimento da inépcia da denúncia.

     Como registrei na decisão que recebeu a denúncia contra a Presidente da República, a despeito da crise moral, política e econômica que assola o Brasil. a gravidade institucional que representa o início de um processo de impeachment por crime de responsabilidade demanda o apontamento de um ou mais fatos concretos, uma ou mais condutas especificas do acusado que, ao menos em tese, configure um ou mais tipos penais previstos na Lei n° 1.079/50.

     Não se pode permitir a instauração de processo em dados genéricos, fundados em matérias de jornal e documentos isolados. Vale dizer, não se instaura um processo de impeachment apenas em ilações e suposições.

     Na espécie, a leviandade da acusação é ainda mais evidente. Não se responde por crime de responsabilidade apenas porque o acusado é Presidente de um determinado partido político que supostamente foi mencionado como participante de esquema de corrupção ou porque também supostamente teria indicado para ocupar cargo público na Petrobrás determinada pessoa acusada de corrupção ou porque é integrante de um governo acusado de corrupção sistêmica. Trata-se, portanto, de responsabilização criminal indireta, o que não se pode admitir em processo de tamanha envergadura.

     Assim, rejeito a denúncia.
     Publique-se. Oficie-se. Arquive-se.
     Em 04/04/2016.

EDUARDO CUNHA
Presidente

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1 Art. 85. São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra: (...) V- a probidade na administração.
2 Art. 9º São crimes de responsabilidade contra a probidade na administração: (...) 7 - proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decôro do cargo.
3 Art. 36. Não pode interferir, em nenhuma fase do processo de responsabilidade do Presidente da República ou dos Ministros de Estado, o deputado ou senador; a) que tiver parentesco consangüineo ou afim, com o acusado, em linha reta; em linha colateral, os irmãos cunhados, enquanto durar o cunhado, e os primos co-irmãos: b) que, como testemunha do processo tiver deposto de ciência própria.
4 Art. 14. É permitido a qualquer cidadão denunciar o Presidente da República ou Ministro do Estado, por crime de responsabilidade, perante a Câmara dos Deputados.
5 Art. 16. A denúncia assinada pelo denunciante e com a firma reconhecida, deve ser acompanhada dos documentos que a comprovem, ou da declaração de impossibilidade de apresentá-los, com a indicação do local onde possam ser encontrados, nos crimes de que haja prova testemunhal, a denúncia deverá conter o rol das testemunhas, em número de cinco no mínimo. 


Este texto não substitui o original publicado no Diário da Câmara dos Deputados - Suplemento de 05/04/2016


Publicação:
  • Diário da Câmara dos Deputados - Suplemento - 5/4/2016, Página 195 (Publicação Original)