Legislação Informatizada - MEDIDA PROVISÓRIA Nº 1.152, DE 28 DE DEZEMBRO DE 2022 - Exposição de Motivos
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MEDIDA PROVISÓRIA Nº 1.152, DE 28 DE DEZEMBRO DE 2022
Altera a legislação do Imposto sobre a Renda das Pessoa Jurídicas - IRPJ e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido - CSLL para dispor sobre as regras de preços de transferência.
EM nº 00448/2022 ME
Brasília, 26 de Dezembro de 2022
Senhor Presidente da República,
1. Submeto a sua apreciação proposta de Medida Provisória que altera a legislação federal para introduzir o novo sistema de preços de transferência.
2. Essa Medida Provisória tem por objetivo alterar a legislação do Imposto sobre a Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) para introduzir um novo marco legal para a matéria de preços de transferência no Brasil. Nesse sentido, altera-se a legislação federal para dispor sobre a determinação da base de cálculo do IRPJ e da CSLL das pessoas jurídicas que realizam transações com partes relacionadas no exterior (transações controladas), revogando, por conseguinte, as disposições atuais sobre preços de transferência constantes dos arts. 18 a 23 da Lei nº 9.430, de 27 de dezembro de 1996, e demais dispositivos correlatos.
3. O sistema brasileiro atual de preços de transferência é reconhecidamente distante da prática internacional. Editado na década de 90, o sistema atual contém diversas particularidades que o afastam do padrão arm's length e comprometem os objetivos principais almejados com as regras de preços de transferência. A proposta de Medida Provisória decorre da constatação de lacunas e fragilidades existentes no atual sistema e de problemas decorrentes do seu desalinhamento e das interações com o padrão estabelecido pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que prejudicam o ambiente de negócios, a inserção do País nas cadeias globais de valor, a segurança jurídica e a arrecadação de receitas tributárias.
4. A adoção das novas regras de preços de transferência, alinhadas às Diretrizes de Preços de Transferência para Empresas Multinacionais e Administrações Tributárias (Diretrizes OCDE), representa o amadurecimento da sociedade brasileira e constitui ferramenta essencial com vistas a promover a modernização do sistema tributário nacional, particularmente da tributação internacional. A reforma do sistema de preços de transferência é passo fundamental para o aprimoramento da legislação brasileira em matéria de tributação internacional que, em vários aspectos, distancia-se das práticas internacionais e cria condições desfavoráveis para os contribuintes, investidores e para os cofres públicos.
5. A implementação desse novo arcabouço facilitará e permitirá uma maior integração da economia brasileira ao mercado internacional, eliminando barreiras que dificultam e prejudicam o comércio, a competitividade entre as empresas, o desenvolvimento de novas tecnologias no País, a atração de investimentos e, consequentemente, a geração de emprego e o desenvolvimento nacional. O novo regramento elimina, ainda, lacunas hoje existentes no sistema que permitem que a base tributária brasileira seja erodida e oferecem espaços para a utilização de abordagens deletérias para a arrecadação das receitas necessárias para suportar os gastos sociais.
6. A alteração legislativa (i) permite, ainda, que o Brasil cumpra de forma efetiva os compromissos assumidos no âmbito internacional, especialmente nos Acordos para Evitar a Dupla Tributação, (ii) viabiliza que novos acordos com parceiros comerciais relevantes sejam firmados, e (iii) possibilita, ainda, que o País participe, sem efeitos indesejados, das discussões e de novos compromissos internacionais a serem firmados para se estabelecer novos padrões de tributação sobre a renda.
7. A proposta decorre também da necessidade de se estabelecer um novo sistema de preços de transferência que seja convergente com os requisitos a serem cumpridos para a acessão do País à OCDE. As diversas divergências existentes na legislação brasileira em relação ao padrão OCDE consistem em obstáculos para a referida acessão, os quais, a menos que sejam objeto de uma reforma ampla na legislação de preços de transferência para o alinhamento total, poderão obstruir o caminho do Brasil à acessão. A acessão à OCDE é reconhecida como um passo importante, que trará competitividade e dinamismo à economia brasileira, podendo traduzir-se na atração de novos investimentos e negócios, gerando mais renda e emprego, e no aprimoramento dos processos de formulação de políticas públicas com impacto positivos nas estatísticas econômicas e sociais do País. Esse alinhamento é visto como uma mudança que promoverá o alcance dos objetivos de desenvolvimento do Brasil.
8. Nesse sentido, cumpre mencionar que, no dia 25 de janeiro de 2022, o Conselho da OCDE (OECD Council) iniciou as discussões com o Brasil a respeito de sua acessão à organização à luz do progresso feito pelo País no cumprimento dos critérios descritos no Framework for Consideration of Prospective Members (Estrutura para Consideração de Membros em Potencial, em tradução livre). Nesse contexto de discussões entre Brasil e OCDE, frise-se que preço de transferência é uma das áreas mais importantes e sensíveis em matéria tributária, cujo alinhamento ao padrão OCDE será avaliado rigorosamente, visto que consiste em um dos Princípios Fundamentais do Comitê de Assuntos Fiscais (CFA) da organização, ao qual qualquer novo membro que deseje fazer parte da organização deve aderir.
9. Cabe, ainda, ressaltar que o desalinhamento das regras de preços de transferência ao princípio arm's length resulta em problemas acentuados para as multinacionais americanas instaladas no Brasil, que dificultarão a realização de novos investimentos ou até mesmo levarão ao desinvestimento mediante a redução das atividades aqui realizadas e o redirecionamento de capitais para outros mercados. Recentemente, os Estados Unidos da América - EUA alteraram as suas regras que dispõem sobre o creditamento do imposto pago no exterior, modificando a posição adotada de longa data sobre a matéria. Em janeiro de 2022, o Tesouro americano emitiu sua regulamentação abordando vários aspectos do regime do "Foreign Tax Credit - FTC" (TD 9959).
10. A nova regulamentação trazida afeta diretamente os investimentos efetuados no Brasil. De acordo com a norma, um dos requisitos para que o imposto de renda pago no exterior (no caso, no Brasil) seja passível de creditamento nos EUA (new attribution requirement) consiste em que a legislação estrangeira determine a base de cálculo do imposto de renda com base no princípio arm's length. Como a legislação brasileira contém diversos elementos que a afastam do referido princípio, o imposto de renda pago no Brasil deixou de ser creditável nos EUA, elevando significativamente os custos de se fazer negócio no País e colocando em ameaça o capital investido. Cabe mencionar que os EUA são um dos maiores parceiros comerciais e investidores no Brasil. O novo regulamento editado pelos EUA tem seus efeitos produzidos já a partir de dezembro de 2021. Assim, as empresas brasileiras já estão sofrendo o problema decorrente do desalinhamento das regras de preços de transferência em face da vedação do crédito do imposto de renda pago no Brasil, o que requer a mudança imediata e urgente do sistema atual para que haja a convergência das regras de preços de transferência ao princípio arm's length.
11. Os dispositivos dessa proposta foram estruturados de forma alinhada às Diretrizes OCDE e às boas práticas internacionais, mas sem perder de vista a tradição jurídica e as particularidades e necessidades do País. O arcabouço proposto contempla medidas flexíveis e mais adequadas para disciplinar o tratamento tributário dos diversos tipos de transações entre as empresas do grupo multinacional, eliminando a rigidez e as limitações do sistema atual. A proposta é fruto do projeto conjunto desenvolvido pela Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil do Ministério da Economia e a OCDE, lançado em fevereiro de 2018 em decorrência da formalização do pedido feito pelo País de candidatura ao processo de acessão à organização em 2017.
12. A fase inicial deste projeto conjunto desenvolvido pelo Brasil e pela OCDE foi executada em um programa de quinze meses, o qual incluiu uma análise técnica aprofundada, rigorosa e transparente do arcabouço legislativo vigente para o controle de preços de transferência no Brasil, com o objetivo de determinar as similaridades e as diferenças em relação ao padrão OCDE, assim como as suas fragilidades e virtudes. Esse processo contou com a contribuição de representantes do setor privado, os quais forneceram subsídios relativos à sua experiência em relação à aplicação prática e aos efeitos do sistema de preços de transferência vigente no País. Tais subsídios foram coletados por meio de um questionário preparado conjuntamente pela Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil do Ministério da Economia e OCDE, respondido por cinquenta e uma empresas multinacionais sediadas em onze jurisdições diferentes.
13. Os resultados preliminares dessa fase inicial foram anunciados em um evento conjunto (Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil do Ministério da Economia -OCDE), realizado em julho de 2019, que foi então seguido por mais um período de análises aprofundadas e de esforços para a elaboração de um relatório robusto, que consolidasse as conclusões obtidas. O resultado dessa análise encontra-se documentado no relatório intitulado Transfer Pricing in Brazil: Towards Convergence with the OECD Standard, o qual é acompanhado de versões resumidas, contendo os principais destaques do relatório, publicadas em dois idiomas (inglês e português). Todos esses documentos foram disponibilizados publicamente no evento de lançamento realizado em dezembro de 2019, em Brasília, que contou com a presença de representantes da administração tributária brasileira, da OCDE, do fisco de outros países e de empresas multinacionais.
14. No relatório conjunto, identificou-se que, apesar de a legislação brasileira de preços de transferência, editada na década de 90 (Lei nº 9.430, de 1996), ter sido manifestamente inspirada pela versão das Diretrizes OCDE existentes em 1996, ela pouco evoluiu desde então, sem acompanhar o desenvolvimento, a dinâmica e a complexidade da economia e dos diferentes modelos de negócio. Nesse contexto, a avaliação conduzida no projeto conjunto observou a existência de lacunas, fragilidades e divergências significativas em relação ao modelo preconizado pela OCDE, que afastam a legislação brasileira do princípio arm's length e que conduzem a resultados prejudiciais tanto sob a perspectiva da realização de negócios e investimentos no País quanto da arrecadação tributária.
15. Nesse sentido, concluiu-se que boa parte das lacunas e divergências identificadas pode levar a situações de dupla tributação e, portanto, dificultar o comércio e o investimento internacionais em razão da criação de distorções e de insegurança jurídica para empresas que efetuam transações transfronteiriças. É relevante observar que algumas empresas multinacionais relatam evitar o Brasil como destino de seus investimentos devido aos riscos inerentes de dupla tributação, que aumentam significativamente os custos de se fazer negócios no País. Além disso, diversas características específicas das regras domésticas vigentes podem levar à perda de receita tributária, permitindo que se percorram caminhos que conduzam à erosão da base tributária brasileira e a transferência de lucros para outras jurisdições. Isso inclui, por exemplo, elementos que são os alicerces do sistema atual, tais como a liberdade na escolha do método de preços de transferência, as margens predeterminadas, as considerações limitadas a respeito de perfis funcionais e de risco, a inadequabilidade das regras atuais para lidar com transações mais complexas, como aquelas envolvendo intangíveis e reestruturações de negócios.
16. Assim, as principais conclusões da análise conduzida ao longo do projeto permitiram avaliar que o arcabouço normativo atual contém lacunas e características específicas prejudiciais ao País de diversas formas. As principais conclusões a respeito do sistema atual podem ser sintetizadas nos seguintes pontos:
16.1. Riscos significativos de erosão da base tributária brasileira e transferência de lucros para outras jurisdições, demonstrando que certos aspectos do sistema atual podem ser explorados em detrimento da arrecadação;
16.2. As regras vigentes propiciam um ambiente desigual entre os contribuintes, que muitas vezes prejudica a competitividade. Enquanto alguns contribuintes arcam com um ônus tributário excessivo em relação aos lucros obtidos no Brasil, outros se beneficiam de um ônus tributário inferior na medida em que as regras de preços de transferência permitem que estes contribuintes reconheçam apenas um montante mínimo de renda no País (notadamente, aqueles que gozam de medidas de safe harbours ou mesmo mediante a utilização das margens fixas sem fundamento econômico), possibilitando, dessa maneira, que lucros sejam transferidos para o exterior, em especial para jurisdições com baixa tributação;
16.3. Diversas empresas com operações no Brasil sofrem com dupla-tributação, o que é referido como "custo irrecuperável" de se fazer negócios no País. Outras empresas evitam o Brasil como destino de seus investimentos devido ao risco inerente de dupla-tributação. Portanto, o Brasil perde oportunidades de negócios e de investimentos como resultado desse risco de dupla-tributação e, consequentemente, a atração de receitas;
16.4. As regras vigentes não são aplicáveis de maneira apropriada a tipos de transações mais sofisticadas e complexas, como aquelas envolvendo intangíveis e reestruturações de negócios, e falham em capturar alguns dos principais fatores de lucratividade dos modelos de negócio modernos. Isso demonstra que as regras não são capazes de lidar com o mundo empresarial atual, eminentemente baseado em tecnologia e negócios altamente integrados; e
16.5. A simplicidade e segurança oferecidas pelo sistema em vigor são percebidas como características relevantes, porém, da maneira como as normas funcionam atualmente, tais características operam, na melhor das hipóteses, apenas em alguns casos, e somente sob a perspectiva doméstica, ao passo que no contexto internacional a insegurança jurídica claramente prevalece.
Fundamentos do Projeto de Preços de Transferência
17. A presente proposta de Medida Provisória foi desenvolvida buscando alinhar o sistema brasileiro de preços de transferência ao padrão OCDE e garantir o alcance do duplo objetivo das regras de preços de transferência, isto é, o de assegurar que uma base tributária apropriada seja alocada no Brasil e de se evitar a dupla tributação.
18. Além disso, sua elaboração foi realizada considerando elementos reconhecidos como relevantes para o País, que visam preservar a simplicidade para a administração tributária e para os contribuintes, em um ambiente que promova a segurança jurídica tanto da perspectiva doméstica quanto internacional. Dessa maneira, as seguintes medidas e abordagens foram também contempladas no projeto com o objetivo de preservar a simplicidade do sistema, promover a segurança jurídica e prevenir litígios: possibilidade de instituição de processo de consulta específico (i.e. Advanced Pricing Arrangments - APAs); autorização para introdução de medidas de simplificação (por exemplo, safe harbours) e outras medidas especiais por meio de ato infralegal; disposições específicas para garantir a efetividade das soluções alcançadas em procedimentos amigáveis previstos no âmbito dos Acordos e Convenções para se Evitar a Dupla-Tributação; disposições introduzindo presunções para lidar com assimetria de informações ensejada por ausência de transparência e falta e cooperação; e abrandamento de penalidades nos casos de contribuintes cooperativos.
Considerações Específicas sobre os dispositivos do Projeto de Medida Provisória
19. A legislação de preços de transferência proposta foi estruturada em três partes principais: Parte Geral (Capítulo II), Parte Especial (Capítulo III) e Documentação e Medidas Especiais e Instrumentos para Segurança Jurídica (Capítulos IV e V). Além disso, há uma parte final (Capítulo VI), que disciplina temas correlatos, os quais também necessitam ser adaptados e endereçados em razão das modificações das regras de preços de transferência.
20. A Parte Geral compreende os arts. 2º a 19 e estabelece os princípios e conceitos fundamentais para a aplicação do novo modelo de controle de preços de transferência. De maneira geral, incorpora-se, na legislação doméstica, o disposto nos capítulos I a III das Diretrizes OCDE. Já a Parte Especial, constante dos arts. 20 a 34, traz orientações a respeito da aplicação das regras para transações específicas - transações envolvendo intangíveis, serviços intragrupo, contratos de compartilhamento de grupo, reestruturações de negócios e operações financeiras. Nessa Parte, são refletidos os principais comandos e conceitos dos capítulos VI a X das Diretrizes OCDE. Por fim, a terceira parte introduz, entre os arts. 35 a 40, medidas com vistas a simplificar a aplicação das regras de preços de transferência, instrumentos para a promoção de segurança jurídica, e dispõe também sobre aspectos da documentação. A seguir, são apresentadas as principais considerações sobre os dispositivos do Projeto de Medida Provisória.
Previsão Expressa do Princípio Arm's length
21. O art. 1º estabelece que a aplicação das regras de preços de transferência são aplicáveis na determinação da base de cálculo do IRPJ e da CSLL das pessoas jurídicas que realizem transações com partes relacionadas no exterior. Com isso, determinam-se os tributos sujeitos à nova disciplina legal e as transações objeto do novo regramento, isto é, transações realizadas com partes relacionadas no exterior.
22. O art. 2º reproduz expressamente o conteúdo do princípio arm's length, elemento fundamental do sistema e o padrão adotado internacionalmente para o controle dos preços de transferência em transações entre partes relacionadas.
23. Quando empresas não relacionadas efetuam transações entre si, as condições de suas relações comerciais e financeiras são normalmente determinadas pelas forças do mercado. Já quando empresas relacionadas realizam transações entre si, suas relações comerciais e financeiras podem não ser regidas diretamente pelas forças externas do mercado, tendo em vista a relação especial que possuem, o que pode ter impactos na determinação das bases tributárias.
24. Diante disso, o dispositivo exige que, para fins de determinação da base de cálculo do IRPJ e da CSLL, os termos e condições de uma transação controlada sejam estabelecidos de acordo com aqueles que seriam estabelecidos entre partes não relacionadas em transações comparáveis.
25. Ressalte-se que o referido princípio baliza todo o conteúdo normativo previsto nos demais dispositivos da legislação. Assim, independentemente do tipo de transação realizada pelo contribuinte com sua parte relacionada, os seus termos e condições deverão ser estabelecidos, para efeitos tributários, de acordo com os termos e condições que seriam estabelecidos entre terceiros. Sendo descumprido este direcionamento, as bases de cálculo do IRPJ e da CSLL deverão ser ajustadas para que sejam adicionados os resultados que seriam computados caso a transação fosse realizada entre partes independentes.
Escopo Objetivo
26. O art. 3º define os tipos de transações sujeitas à aplicação das novas regras de preços de transferência. Esse dispositivo estabelece que transação controlada compreende qualquer tipo de transação realizada entre duas ou mais partes relacionadas, seja ela realizada de forma direta ou indireta, incluindo contratos ou arranjos sob qualquer forma e série de transações.
27. Enquanto a legislação atual possui um escopo objetivo limitado, deixando à margem do controle de preços de transferência transações relevantes, o novo modelo segue abordagem claramente distinta, adotando um escopo amplo, que abarca qualquer relação comercial ou financeira estabelecida entre partes relacionadas, incluindo, por exemplo, acordos de compartilhamento de custos, transações financeiras, reestruturações de negócios, transações envolvendo intangíveis, bem como transações que tenham por objeto a alienação ou a transferência de quaisquer ativos, inclusive participações societárias.
Escopo Subjetivo
28. O regime brasileiro diferenciou-se da prática internacional na definição do escopo subjetivo alcançado pelo controle. Nesse particular, o art. 23 da Lei nº 9.430, de 1996, estabeleceu o conceito de "pessoa vinculada", o qual diverge bastante das noções empregadas no âmbito internacional. Definiram-se dez hipóteses de vinculação através de uma lista contida nos incisos do referido dispositivo.
29. A nova legislação adota abordagem diferenciada. O art. 4º apresenta uma definição principiológica, fundamentada no próprio conteúdo do princípio arm's length, para que se determine se duas ou mais partes são relacionadas. Pela definição prevista, serão partes relacionadas quando existirem relações especiais que possam levar ao estabelecimento de termos e condições em suas transações que divirjam daqueles que seriam estabelecidos entre terceiros. O comando principiológico é acompanhado de uma lista suplementar de situações específicas, com vistas a facilitar a aplicação da regra de preços de transferência e proporcionar segurança jurídica, em que as partes serão, necessariamente, consideradas relacionadas (por exemplo, controladores e suas controladas, entidades sob controle comum, dentre outras hipóteses).
Padrão de Comparabilidade
30. O art. 5º define os critérios para que uma transação entre partes não relacionadas seja considerada comparável à controlada. Nesse sentido, para serem consideradas comparáveis, não deve haver diferenças entre as transações - o que deve ser avaliado considerando todas as características economicamente relevantes que possam afetar os indicadores financeiros examinados, incluindo as circunstâncias economicamente relevantes das transações - ou ajustes possam ser efetuados para eliminar os efeitos materiais de tais diferenças, caso existentes.
Delineamento da Transação Controlada e Análise de Comparabilidade
31. Em seguida, o art. 6º prevê os dois aspectos fundamentais previstos nas Diretrizes OCDE para a aplicação do princípio arm's length, atualmente ausentes das regras domésticas de preços de transferência brasileiras: o delineamento da transação controlada e a análise de comparabilidade. Esses aspectos essenciais, detalhados nos arts. 7º e 9º, visam determinar se os termos e condições estabelecidos na transação controlada são comparáveis àqueles que seriam estabelecidos entre partes independentes.
32. O delineamento da transação controlada (art. 7º) é passo preliminar para a comparação das transações e essencial para aplicação do princípio arm's length. Por meio do delineamento, objetiva-se identificar com precisão as relações comerciais e financeiras efetivamente estabelecidas entre as partes relacionadas e suas características economicamente relevantes, a partir da análise dos fatos e circunstâncias da transação e das evidências da efetiva conduta das partes. O dispositivo garante que a busca por comparáveis, e a própria comparação entre os termos e condições da transação controlada e da transação não controlada, seja realizada tomando por base as características efetivas da transação controlada ocorrida, procurando identificar, inclusive por meio dos contratos celebrados, o que as partes relacionadas acordaram e desempenharam na transação examinada.
33. A análise de comparabilidade (art. 9º), por sua vez, consiste em um processo realizado com o objetivo de comparar os termos e condições estabelecidos na transação controlada, precisamente delineada, com os termos e condições que seriam estabelecidos entre partes não relacionadas em transações comparáveis. Esse processo passa pelo exame das informações disponíveis sobre transações potencialmente comparáveis, a seleção do método de preços de transferência mais apropriado ao caso concreto, dos ajustes de comparabilidade necessários, dentre outros elementos, até a realização da comparação entre os termos e condições das transações, para que se verifique o atendimento ao princípio arm's length.
34. Tanto no delineamento da transação controlada quanto na análise de comparabilidade devem ser identificadas e levadas em consideração as características economicamente relevantes das transações examinadas, o que inclui: o exame dos termos contratuais (a partir de contratos e documentos escritos, bem como de evidências das condutas das partes), as funções desempenhadas, os ativos utilizados e os riscos assumidos, as características dos bens, direitos ou serviços transacionados, as circunstâncias econômicas a que estão sujeitas as partes envolvidas na transação, bem como suas estratégias de negócio, e qualquer outro elemento que possa ser relevante para o caso concreto analisado.
35. É importante notar que, no atual sistema de preços de transferência brasileiro, a análise dos fatos e circunstâncias da transação específica, que suportaria o delineamento da transação e a análise de comparabilidade, é extremamente limitada. A maior parte das características economicamente relevantes de uma operação comercial ou financeira não é levada em consideração pelo sistema atual. Entretanto, a identificação precisa destas relações é essencial para que se efetue um controle de preços de transferência consistente com o princípio arm's length, isto é, que aproxime os resultados das transações controladas do comportamento verificado entre partes independentes e, assim, os objetivos das regras de preços de transferência sejam atingidos - prevenção de erosão da base tributável e evitar a dupla tributação.
36. O art. 8º estabelece as circunstâncias em que as transações realizadas entre partes relacionadas, devidamente delineadas, poderão não ser consideradas para fins da legislação de preços de transferência. O dispositivo determina que, quando se verificar que os arranjos celebrados entre as partes relacionadas, vistos em sua totalidade, diferem daqueles que seriam celebrados entre partes não relacionadas agindo de maneira comercialmente racional e em circunstâncias comparáveis, a transação controlada não será reconhecida para fins de preços de transferência e, caso apropriado, poderá ser substituída pela transação que reflita o comportamento que seria adotado por partes não relacionadas. Tal previsão está consubstanciada nas Diretrizes OCDE e nas legislações de seus paísesmembros e decorre diretamente do princípio arm's length, ou seja, da determinação de que, para fins tributários, partes relacionadas devem adotar o comportamento verificado partes independentes em circunstâncias comparáveis.
37. A transação controlada não poderá ser desconsiderada ou substituída, no entanto, em razão de dificuldades de se identificar transações comparáveis realizadas entre partes não relacionadas. O mero fato de uma transação comparável realizada entre partes independentes não poder ser identificada não autoriza que a transação controlada não seja reconhecida ou que possa ser substituída por outra transação. Em razão da dinamicidade dos grupos multinacionais, sabe-se que partes relacionadas têm a possibilidade de celebrar uma maior variedade de arranjos e, assim, concluir transações de naturezas específicas, por razões comerciais legítimas, e que não são ou raramente são vistas entre partes independentes. A questão que a legislação busca investigar e endereçar é se a transação controlada efetuada possui a racionalidade comercial dos arranjos que seriam acordados entre partes não relacionadas, em circunstâncias comparáveis. A importância desse comando reside no fato de que, para que seja possível precificar a transação e determinar se esta foi celebrada em atendimento ao princípio arm's length, é preciso, antes, verificar se a transação controlada segue a racionalidade comercial observada entre agentes independentes, operando no mercado aberto, em circunstâncias comparáveis.
38. Por fim, o art. 10 explica o papel que os efeitos de sinergia de um grupo multinacional podem desempenhar como uma característica economicamente relevantes a ser levada em consideração na análise de comparabilidade.
Métodos de Preços de Transferência
39. O art. 11 introduz ao ordenamento doméstico os cinco métodos de preços de transferência reconhecidos pelas Diretrizes OCDE e adotados por países membros e não membros para estabelecer se as condições impostas nas relações comerciais ou financeiras entre partes relacionadas são consistentes com o princípio arm's length: o método dos Preços Independentes Comparáveis - PIC (equivalente ao Comparable Uncontrolled Price Method), o método do Preço de Revenda menos Lucro - PRL (equivalente ao Resale Price Method), o método do Custo mais Lucro - MCL (equivalente ao Cost Plus Method), o método da Margem Líquida da Transação - MLT (equivalente ao Transactional Net Margin Method) e o método da Divisão do Lucro - MDL (equivalente ao Profit Split Method).
40. Atualmente, a legislação brasileira dispõe de metodologias inspiradas nos três primeiros métodos, mas com critérios de aplicação bastante restritos e discrepantes das Diretrizes OCDE, incluindo a previsão de margens de lucratividade predeterminadas em lei. Quanto aos dois últimos métodos, não há abordagem equivalente na legislação em vigor e entende-se que sua implementação permitirá endereçar determinadas situações de maneira mais apropriada, contribuindo, assim, para evitar a dupla tributação e combater a transferência artificial de lucros para fora do País.
41. Além dos cinco métodos expressos, o dispositivo contempla, ainda, o uso de outros métodos (por exemplo, técnicas de valoração), quando for demonstrado na documentação de preços de transferência que nenhum dos métodos anteriormente descritos é mais apropriado ao caso concreto e contanto que a metodologia alternativa produza resultados consistentes com o princípio estabelecido no art. 2º. Tal demonstração, no entanto, não será necessária quando houver indicação, por parte da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil do Ministério da Economia, que o uso destes métodos seja mais apropriado para transações específicas.
42. Diferentemente da liberdade de escolha do método prevista atualmente na legislação - critério esse que constitui sério desvio em relação às Diretrizes OCDE e que leva à perda de receitas tributárias -, o novo dispositivo introduzido estabelece que o método selecionado deve ser o mais apropriado ao caso concreto, considerando a natureza da transação controlada, a disponibilidade de informações confiáveis, o grau de comparabilidade entre as transações, dentre outros elementos.
43. As Diretrizes OCDE estabelecem que, sendo possível identificar preços de transações não controladas comparáveis (ou seja, preços independentes comparáveis), o método PIC é o método mais direto e confiável para se aplicar o princípio arm's length. Consequentemente, nestes casos, este método será preferível em relação aos demais. Essa mesma abordagem encontra-se refletida no § 2º do art. 11 da minuta do Projeto. Assim, identificando-se informações disponíveis de preços ou valores de contraprestações confiáveis decorrentes de transações comparáveis realizadas entre partes não relacionadas, dá-se preferência ao referido método, mas sem perder de vista a regra do método mais apropriado, de modo a preservar a possibilidade de utilização de outra metodologia caso ela se revele mais apropriada para se atingir o princípio arm's length.
44. Nesse contexto, a nova legislação estabelece a disciplina para determinação dos preços de transferência para transações com commodities (arts. 12 a 14). O mercado de commodities tem grande relevância para a economia brasileira e a determinação da base de cálculo das transações realizadas com os recursos naturais explorados no País merece atenção especial. Diante disso, além de todo o arcabouço aplicável previsto na proposta, a nova legislação destaca dispositivos específicos para disciplinar as transações realizadas com estes produtos de forma a garantir que a alocação geral dos lucros relativos às operações realizadas neste segmento considere e reflita a contribuição econômica efetivamente fornecida por cada entidade da cadeia de valor, em especial o valor inerente da própria commodity. Assim, introduz-se uma nova disciplina para a transações com estes produtos, alinhada com os resultados das discussões realizadas no projeto BEPS (Ações 8-10), assegurando a base tributária brasileira.
45. Nesse sentido, estabelece-se que o método PIC será o método geralmente apropriado para se determinar o valor da commodity em transações controladas, quando informações confiáveis de preços independentes comparáveis para a commodity transacionada estiverem disponíveis, incluindo preços de cotação. No mercado de diversas commodities, os preços de cotação, especialmente as cotações publicadas por bolsas e os índices divulgados por agências de preços, são utilizados como referência por partes independentes para estabelecer os preços de suas transações no comércio, incluindo de operações de compra e venda de produtos intermediários e derivados. Assim, para esses casos, além da possibilidade de aplicação do método PIC valendo-se de preços confiáveis obtidos de transações não controladas, tem-se a possiblidade de aplicação da metodologia tomando por base os preços de cotação, o que for mais apropriado diante dos fatos e circunstâncias de cada caso, com vistas se observar o princípio arm's length e em linha com o disposto no item anterior.
46. Exceto em circunstâncias excepcionais, a utilização de outros métodos para precificação de transações com commodities tipicamente tende a não produzir resultados apropriados. Métodos que se baseiam essencialmente na análise da lucratividade de algumas funções desempenhadas (por exemplo, método do Custo Mais Lucro - MCL) podem não capturar e considerar de forma precisa e apropriada todos os fatores que são relevantes para geração de valor para determinação dos preços de transações com commodities, incluindo o valor de ativos específicos utilizados na produção ou extração da commodity em combinação com outros fatores de comparabilidade como, por exemplo, terras valiosas e férteis empregadas na produção de produtos agrícolas em conjunto com condições climáticas favoráveis, as relações especiais desenvolvidas com produtores, bem como o valor de licenças utilizadas para exploração de recursos naturais. Ademais, o valor da commodity depende não apenas das funções desempenhadas pelas partes na transação, mas principalmente do valor inerente que o produto possui, que está associado às suas características básicas, e que geralmente não é devidamente considerado na aplicação de outros métodos.
47. Dada a volatilidade dos preços das commodities, um fator particularmente crítico para transações cujos preços são determinados por referência ao preço de cotação é a data da precificação, isto é, a data ou o período de datas (por exemplo, um intervalo específico de datas em que um preço médio é determinado) selecionado como base para precificar a operação. Ao estabelecer suas transações com partes relacionadas, o princípio arm's length exige que os contribuintes tenham em conta esta característica economicamente relevante e ajam de forma diligente para documentar e comprovar a data acordada e sua consistência. Caso, no entanto, o contribuinte falhe com tal obrigação e, diante dos fatos e circunstâncias da transação não seja possível determinar a data ou o período de datas que seria estabelecido em uma transação firmada com base no princípio arm's length, a legislação autoriza que a autoridade fiscal se valha da média do preço de cotação da data do embarque ou do registro da declaração de importação para precificar a transação.
48. Destaca-se que a disciplina introduzida para estas transações não exclui a aplicação das demais disposições previstas na legislação.
49. Assim, seguindo a disciplina geral, quando necessário para aumentar a confiabilidade da análise de preços de transferência, ajustes devem ser efetuados para eliminar os efeitos das diferenças das transações comparadas, de forma a preservar a comparabilidade, incluindo ajustes para refletir diferenças quanto ao estágio de produção da commodity.
Parte Testada
50. A aplicação dos métodos do Preço de Revenda menos Lucro, do Custo mais Lucro e da Margem Líquida da Transação requer que se selecione uma das partes da transação em relação a qual o indicador financeiro será comparado com aquele obtido (ou que seria obtido) de transações comparáveis realizadas por partes independentes. O art. 15 orienta a seleção da parte a ser testada (no Brasil ou no exterior) devendo ser aquela em relação a qual o método possa ser aplicado de forma mais apropriada e para a qual haja a disponibilidade de dados mais confiáveis de transações comparáveis realizadas entre partes não relacionadas.
51. Dada a relevância dessa escolha para a aplicação das regras de preços de transferência, exige-se que os contribuintes forneçam as informações necessárias para a determinação correta das funções, ativos e riscos assumidos pelas partes envolvidas na transação e demonstre a seleção da parte testada. Em caso de descumprimento deste requisito e as informações a respeito da outra parte da transação sejam limitadas, somente as funções, os riscos e os ativos que possam ser determinados de forma confiável serão alocados a esta parte da transação, sendo as demais funções, riscos e ativos identificados na transação controlada alocados à parte relacionada no Brasil para fins de aplicação da Lei.
Intervalo de comparáveis
52. Em determinadas situações, a realização da análise de comparabilidade e a aplicação do método de preços de transferência permite a obtenção de diversas observações de indicadores financeiros provenientes de transações entre partes não relacionadas consideradas comparáveis. Para estes casos, o art. 16 apresenta direcionamentos para determinação do intervalo apropriado e para a seleção do ponto mais adequado dentro do intervalo de comparáveis.
53. Em alguns casos, nem todas as transações comparáveis identificadas terão um grau de comparabilidade relativamente semelhante. Para estas situações, o dispositivo prevê que, quando for possível determinar que determinadas transações não controladas possuem um grau inferior de comparabilidade, elas deverão ser eliminadas do intervalo. Objetiva-se, com isso, que a comparação seja efetuada tomando por base as transações que possuam o mais elevado grau de comparabilidade.
54. Em determinadas situações, no entanto, após a realização de todos os esforços necessários para excluir as transações identificadas que possuam um grau inferior de comparabilidade, o que se obtém é um intervalo composto de observações de transações que preenchem o critério de comparabilidade, mas incertezas remanescem em relação ao grau de comparabilidade, que não podem ser precisamente identificadas ou quantificadas e ajustadas - incluindo, por exemplo, em razão do número de ajustes de comparabilidade que precisam ser realizados ou em função da disponibilidade de informações limitadas dos comparáveis que impossibilitem uma avaliação detalhada de todas as suas características economicamente relevantes. Para estas situações, com o objetivo de aumentar a confiabilidade da análise, a Lei prevê, como regra geral, que o intervalo obtido deverá ser reduzido ao intervalo interquartil e tal intervalo será utilizado como referência para verificar se o indicador financeiro da transação controlada atende o princípio estabelecido no art. 2º. Caso, no entanto, inexistam incertezas e as transações comparáveis identificadas apresentem um grau equivalente de comparabilidade em relação à transação controlada, o intervalo completo poderá ser utilizado para a referida análise.
55. Em qualquer caso, se o indicador financeiro da transação controlada estiver fora do intervalo apropriado de comparáveis, será atribuído a esta transação o valor da mediana para fins de apuração da base de cálculo do IRPJ e da CSLL. Por outro lado, caso a transação controlada se encontre dentro do intervalo apropriado, nenhum ajuste precisará ser efetuado e serão consideradas atendidas as regras de preços de transferência propostas.
56. A utilização do intervalo interquartil e da mediana como padrão geral para as situações acima mencionadas constitui medida que visa simplificar a análise de preços de transferência e reduzir o espaço para litígios. Não obstante, cabe mencionar que a Lei possibilita a utilização de outras medidas estatísticas além das mencionadas acima nos casos de implementação de resultados acordados em procedimento amigável, assim como nas hipóteses que vierem a ser disciplinadas em regulamentação com vistas a assegurar a correta aplicação do princípio arm's length. Com isso, garante-se maior flexibilidade para que possam ser introduzidas ferramentas distintas para casos específicos, com objetivo de melhor satisfazer o princípio arm's length.
Ajustes
57. Quando os termos e condições estabelecidos na transação controlada divergirem daqueles que seriam estabelecidos entre partes não relacionadas, a base de cálculo do IRPJ e da CSLL deverá ser ajustada de forma a se computar os resultados que seriam obtidos pelo contribuinte caso os termos e condições da transação controlada tivessem sido estabelecidos de acordo com o princípio arm's length.
58. Os arts. 17 a 19 tratam dos ajustes realizados, introduzindo a disciplina para os chamados ajustes espontâneos, compensatórios, primários e secundários.
59. O § 1º do art. 18 estabelece a obrigação da pessoa jurídica efetuar a recomposição da base de cálculo do IRPJ e da CSLL, seja através de ajuste espontâneo ou compensatório, sempre que os termos e condições estabelecidos na transação controlada divergirem daqueles que seriam estabelecidos entre partes não relacionadas e tal fato resultar na apuração de uma base de cálculo inferior àquela que seria verificada em condições arm's length.
60. Pelo texto legal, o ajuste espontâneo é o ajuste efetuado pela pessoa jurídica diretamente na apuração da base de cálculo com vistas a adicionar o resultado que seria obtido casos os termos e condições da transação controlada tivessem sido estabelecidos de acordo com o princípio arm's length. Já o ajuste compensatório é realizado pelas partes da transação controlada, até o encerramento do ano-calendário, com vistas a ajustar o valor da transação, para que o seu resultado seja equivalente àquele que seria obtido caso a transação controlada tivesse sido estabelecida de maneira consistente com o princípio arm's length.
61. Caso o contribuinte não efetue nenhum desses ajustes quando necessário, a autoridade fiscal efetuará o ajuste primário, isto é, realizará uma adição à base de cálculo do IRPJ e da CSLL para que sejam refletidos os resultados que teriam sido obtidos pelo contribuinte caso os termos e condições de suas transações controladas tivessem sido estabelecidas em atendimento ao art. 2º.
62. Ressalte-se que, ressalvados os casos de ajustes compensatórios realizados na forma estipulada em regulamento ou de resultados acordados em procedimento amigável, não será admitido ajuste que tenha o efeito de reduzir a base tributável do contribuinte ou aumentar o prejuízo fiscal do IRPJ ou a base de cálculo negativa da CSLL. A previsão alinha-se a boa prática dos países. A ressalva é feita para os casos de ajustes compensatórios, pois, nestas situações, o próprio valor da transação é corrigido pelas partes da transação, com reflexos financeiros e na documentação contábil e comercial das partes, e também para as soluções alcançadas em procedimento amigável, com vistas a dar efetividade ao cumprimento dos compromissos assumidos em sede dos Acordos e Convenções para Evitar a Dupla-Tributação.
63. Como decorrência do ajuste espontâneo e primário, o dispositivo exige a realização do chamado ajuste secundário para lidar com as consequências adversas da transferência indevida de lucros para outras jurisdições, especialmente os seus efeitos financeiros. Isso porque a realização do ajuste primário e do ajuste espontâneo, apesar de corrigir a alocação dos lucros para fins tributários, não muda o fato de que o lucro transferido permanece localizado e registrado em outra jurisdição. Para endereçar este problema, a Lei prevê que o montante do valor ajustado (espontaneamente ou de ofício) será considerado crédito concedido pelo contribuinte brasileiro às partes relacionadas envolvidas na transação controlada e remunerado à taxa de juros de 12%. Tais juros deverão ser adicionados na determinação da base de cálculo do IRPJ e da CSLL. Caso, no entanto, o contribuinte opte por repatriar o valor considerado como crédito concedido no prazo estipulado, a Lei reduz a taxa de juros a zero, afastando, por consequência, a referida tributação.
Intangíveis
64. O art. 20 inaugura as disposições específicas (Capítulo III), que visam fornecer orientações com relação a transações específicas.
65. Os arts. 20 e 23 tratam do controle das transações envolvendo intangíveis. Na economia atual, os intangíveis têm extrema importância e são responsáveis por parte substancial do valor atribuído às empresas. A legislação em vigor não dispõe de instrumentos adequados e eficazes para disciplinar o controle de preços de transferência para essas transações, o que gera resultados adversos em termos tributários. O novo conjunto normativo, além de seu arcabouço geral, introduz também diretrizes especiais para transações com intangíveis, alinhadas às Diretrizes OCDE, que permitirão que o controle dos preços de transferência para estas transações seja efetuado de forma mais adequada, além de reduzir os riscos de erosão da base tributável brasileira.
66. Preliminarmente, a proposta introduz uma definição clara de intangíveis para fins de controle de preços de transferência, que possibilita capturar adequadamente transações que envolvam seu uso ou transferência. Trata-se de uma definição específica, que não depende das definições advindas da contabilidade ou de outras normas. Os intangíveis importantes para fins de preços de transferência nem sempre são reconhecidos como ativos intangíveis para fins contábeis. Tais intangíveis, no entanto, podem ser utilizados para gerar valor econômico significativo e precisam ser considerados para fins da análise de preços de transferência.
67. A seção de intangíveis traz também considerações especiais que devem ser observadas no delineamento das transações que envolvam intangíveis, além do regramento geral estabelecido no art. 7º. Nos casos que envolvam o uso ou transferência de intangíveis, é especialmente importante identificar com especificidade e precisão os intangíveis envolvidos e fundamentar a análise funcional no entendimento do negócio global do grupo multinacional e na maneira pela qual os intangíveis são usados pela grupo para agregar ou criar valor em toda a cadeia de suprimentos.
68. O novo modelo incorpora o conceito de funções relevantes desempenhadas em relação ao intangível (as atividades relacionadas ao desenvolvimento, aprimoramento, manutenção, proteção e exploração de intangíveis), as quais assumem papel relevante no novo sistema de preços de transferência para efeitos de se estabelecer a alocação apropriada dos resultados relativos a transações com intangíveis.
69. Por fim, introduz-se também o conceito de intangíveis de difícil valoração, o qual vem acompanhado de dispositivos que visam lidar com as incertezas na precificação destes ativos e seus reflexos na determinação da base de cálculo do IRPJ e da CSLL (art. 23).
Serviços Intragrupo
70. Diferentemente do sistema atual, que não dispõe de normas apropriadas para o tratamento de transações envolvendo serviços, o novo arcabouço oferece ferramentas mais adequadas e flexíveis para se estabelecer os preços de transferência em transações dessa natureza. Nesse sentido, além do arcabouço geral introduzido, o novo sistema traz, nos arts. 24 e 25, considerações específicas para este tipo de transação.
71. No que diz respeito a transações com serviços, um elemento relevante na análise de preços de transferência consiste em estabelecer as condições necessárias que devem ser verificadas e preenchidas para que se reconheça a existência de um serviço intragrupo, sujeito à compensação de acordo com o princípio arm's length. Para isso, os dispositivos preveem e introduzem o chamado "teste do benefício" que considera que um serviço foi prestado quando há o desenvolvimento dequalquer atividade por uma das partes da transação que resulte em benefícios para uma ou mais partes. A norma esclarece que a atividade desenvolvida resultará em benefícios quando proporcionar expectativa razoável de valor econômico ou comercial para a outra parte da transação controlada, de forma a melhorar ou manter a sua posição comercial, de tal modo que partes não relacionadas, em circunstâncias comparáveis estariam dispostas a pagar por tal atividade ou realizá-la por conta própria.
72. Uma vez reconhecida a existência de um serviço intragrupo, é necessário determinar se o valor da remuneração estabelecida entre as partes relacionadas na transação controlada está de acordo com o princípio arm's length. A nova legislação traz considerações específicas a esse respeito, disciplinando as situações e as condições para a utilização dos métodos de cobrança direta ou indireta, inclusive a respeito dos critérios de rateio que devem ser observados quando se utiliza uma base de custos comuns como ponto de partida para determinação da remuneração em linha com o arm's length. Com isso, a legislação fornece a segurança jurídica necessária para que se possa estabelecer a base tributária de transações habitualmente realizadas entre empresas que compõem um grupo multinacional.
Contratos de Compartilhamento de Custos
73. O art. 26 introduz à Lei de preços de transferência regras para o tratamento de contratos de compartilhamento de custos, os quais consistem em acordos celebrados entre duas ou mais partes relacionadas para a repartição das contribuições e dos riscos relativos à aquisição, produção ou desenvolvimento conjunto de serviços, intangíveis ou ativos tangíveis com base na proporção dos benefícios que cada parte espera obter no contrato. Esta também é uma lacuna identificada no arcabouço em vigor, que não oferece regramento claro para o controle desses acordos para fins de preços de transferência.
74. Os dispositivos fornecem a disciplina apta para identificar quando as entidades são consideradas efetivamente participantes do contrato e estabelece normas que servem para determinar o valor das contribuições fornecidas pelas partes do contrato, assim como as compensações que devem ser realizadas pelas demais partes.
Reestruturações de Negócios
75. O art. 27 introduz ao ordenamento o conceito de reestruturações de negócios para fins de controle de preços de transferência e estabelece diretrizes e definições específicas para o controle desse tipo de transação, para que se determine, com base no princípio arm's length, a remuneração apropriada para a reestruturação de negócios empreendida.
76. Nesse sentido, em linha com o que dispõem as Diretrizes OCDE, para a Lei proposta serão consideradas reestruturações de negócios as modificações nas relações comerciais ou financeiras entre partes relacionadas que resultem na transferência de lucro potencial ou em benefícios ou prejuízos para qualquer uma das partes envolvidas e que seriam remuneradas caso fossem efetuadas entre partes não relacionadas de acordo com o princípio previsto no art. 2º. Ou seja, esse conceito não se restringe à ideia de reestruturação de negócios consubstanciada na legislação comercial, mas abrange também situações que envolvam a transferência de funções, riscos, oportunidades de negócios e atividades que carreguem lucro potencial.
77. É relevante notar que o arcabouço doméstico atual de preços de transferência não abarca esse tipo de transação, em razão de falta de disposição expressa ou porque as mudanças no perfil funcional de uma empresa brasileira não afetam a análise de preços de transferência, ou seja, as margens de lucro predeterminadas em lei não são alteradas em razão da modificação do perfil funcional ou do risco do contribuinte brasileiro. A nova legislação permitirá que, na análise de preços de transferência, alterações no perfil funcional e a transferência de ativos valiosos entre empresas do grupo, que consistem em elementos relevantes de geração de valor e de lucro, sejam devidamente identificadas e remuneradas, tal como partes independentes o fariam.
Operações Financeiras
78. Os arts. 28 a 34 estabelecem o tratamento aplicável a operações financeiras, trazendo as diretrizes essenciais para o controle de preços de transferência de diversos tipos de transação, incluindo operações de dívida, garantias intragrupo, acordos de gestão centralizada de tesouraria (cash-pooling) e contratos de seguro. O Projeto de Medida Provisória proposto amplia o escopo do controle de preços de transferência sobre operações financeiras, que atualmente foca-se em operações de mútuo, sem fornecer a disciplina adequada para diversos tipos de transações relevantes, e veicula regras prescritivas que se afastam do princípio arm's length e acarretam resultados indesejáveis.
Documentação
79. O art. 35 prevê a obrigação de o contribuinte fornecer a documentação necessária para demonstrar e comprovar que sua base de cálculo do IRPJ e da CSLL atende ao princípio estabelecido no art. 2º. Esse dispositivo visa alinhar os requisitos de documentação às melhores práticas internacionais, consubstanciadas em uma abordagem que abarca três níveis de documentação, resultante do Projeto BEPS (Ação 13), do qual o Brasil teve participação ativa: o Country-by-Country Report (Declaração País a País), já instituída pela Instrução Normativa RFB nº 1.681/2016), o Master File e o Local File.
80. O dispositivo também contempla medidas para endereçar casos em que o contribuinte falte com transparência e não forneça os documentos necessários para aplicação da Lei. A aplicação correta da abordagem de preços de transferência prevista nas Diretrizes OCDE exige que o contribuinte atue de forma transparente e forneça as informações necessárias para se determinar com precisão as características da transação controlada com vistas a realizar a análise de comparabilidade, fundamento da aplicação do princípio arm's length.
81. Na ausência das informações necessárias, o projeto estabelece que a autoridade fiscal poderá alocar à entidade brasileira as funções, os riscos e os ativos atribuídos a outra parte da transação controlada que não possuam evidências confiáveis de terem sido efetivamente por ela desempenhados, assumidos ou utilizados e autoriza que estimativas e premissas razoáveis sejam adotadas para realizar o delineamento da transação e a análise de comparabilidade.
Penalidades
82. Tendo em vista que a apresentação de informações e documentos fidedignos é fundamental para o correto ajuste do preço de transferência, foram instituídas penalidades específicas para o descumprimento das respectivas obrigações acessórias (art. 36).
83. Com o art. 37, busca-se permitir que durante o procedimento fiscal a autoridade tributária autorize o sujeito passivo cooperativo e de boa-fé a retificar a sua apuração dos tributos envolvendo preço de transferência. Tal possibilidade se daria para hipóteses em que se verifica que o contribuinte buscou aplicar corretamente a presente lei, mas apesar de seus esforços razoáveis, isso não ocorreu. Assim, o seu ganho é evitar penalidades para se adequar ao entendimento da administração tributária, e esta tem o ganho de evitar custos para aprofundamento da investigação e de eventual contencioso. Cria-se, portanto, mecanismo que privilegia o contribuinte cooperativo e introduz-se ferramenta importante para aperfeiçoar a relação entre fisco e contribuinte.
Medidas de Simplificação e Outras Medidas
84. A simplificação e a segurança jurídica são elementos relevantes e desejados no novo sistema. A nova legislação busca privilegiar esses aspectos fornecendo as ferramentas adequadas para proporcionar a simplificação e a segurança jurídica considerando as especificidades de cada tipo de transação.
85. O art. 38 autoriza a instituição de mecanismos específicos para a aplicação do princípio arm's length, expresso no art. 2º, a determinadas situações, em especial para que se possa (i) simplificar as etapas de comparabilidade, dispensar ou simplificar os requisitos de documentação; (ii) fornecer orientações adicionais em relação a certos tipos de operações; e (iii) prever o tratamento aplicável a situações em que as informações disponíveis a respeito da transação controlada, das partes envolvidas ou de comparáveis sejam limitadas.
86. Dessa maneira, busca-se garantir que a RFB seja capaz de instituir diretrizes específicas para o cumprimento da regra para transações de maior complexidade ou especiais, assim como para situações em que as informações disponíveis, incluindo de comparáveis, sejam limitadas. O referido dispositivo também fornece base legal para que a administração tributária possa editar medidas com vistas a simplificar aplicação e o cumprimento das regras de preços de transferência, tais como safe harbours para situações adequadas e em conformidade com o princípio arm's length, com o objetivo de proporcionar uma redução dos custos de conformidade dos contribuintes, maior segurança jurídica, bem como uma administração tributária mais eficiente.
Processo de Consulta Específico (Acordos Antecipados de Preços)
87. No âmbito internacional, uma das ferramentas largamente utilizada pelo países para promover a segurança jurídica são os Advanced Pricing Arrangments (APAs) por meio dos quais os contribuintes têm a possibilidade de discutir de forma transparente com o fisco os critérios que devem ser observados para determinação dos preços de transferência de suas transações de tal modo a obter a segurança antecipada e necessária a respeito dos impactos fiscais de suas operações, evitando, dessa forma, o litígio e riscos de dupla-tributação.
88. A proposta de Medida Provisória incorpora esse instituto ao ordenamento jurídico brasileiro (art. 39) autorizando a instituição de processo de consulta específico para fins de preços de transferência para que sejam fornecidas soluções para casos de preços de transferência mais complexos ou únicos. Esse dispositivo introduz uma abordagem distinta do processo de consulta existente atualmente, fundamentado no Decreto nº 70.235, de 1972, na medida em que vai além de fornecer somente uma interpretação a respeito da legislação tributária pertinente à matéria consultada pelos contribuintes. Nesse processo de consulta específico, a situação concreta é analisada em mais detalhes e estabelece-se a metodologia a ser utilizada pelo contribuinte e outros aspectos para o cumprimento das normas.
89. Tendo em vista que tal processo exige o emprego de recursos e custos adicionais à administração tributária, que precisará alocar equipes especializadas para o atendimento a esse novo mecanismo, prevê-se que o serviço estará sujeito à cobrança a taxa para fazer frente aos custos relacionados a solução da consulta. Vale notar que esta é uma prática comum entre os países que dispõem de procedimento semelhante (APAs), a exemplo dos Estados Unidos da América, México, Croácia, Alemanha, Hungria e Luxemburgo, os quais cobram valores variados oscilando entre EUR 5 mil a EUR 116 mil .
90. Nesse sentido, a proposta de Medida Provisória prevê a cobrança de taxa nos valores de R$ 80.000,00 (oitenta mil reais) ou R$ 20.000 (vinte mil reais), no caso de pedido de extensão do período de validade da resposta à consulta. Nota-se, por conseguinte, que o valor previsto se encontra dentro da faixa praticada internacionalmente.
91. Ademais, ressalte-se que o valor estipulado foi determinado e tem por objetivo ressarcir parte dos custos estimados relacionados ao serviço prestado para a emissão da resposta à consulta. Para definir o custo relacionado ao serviço, considerou-se o gasto de pessoal correspondente à estimativa do esforço fiscal empregado na atividade, sendo o referido esforço medido pelo tempo estimado de dedicação por Auditores-Fiscais da Receita Federal do Brasil considerando um prazo médio de 24 meses para conclusão da consulta .
92. Por meio desse novo processo, pretende-se contribuir para a prevenção de disputas entre contribuintes e administração tributária, suplementando-se os mecanismos tradicionais existentes para a resolução de litígios, e permitir um controle de preços de transferência mais efetivo. Da perspectiva da conformidade, esses processos, que materializam acordos antecipados de preços, contribuem para a redução de custos para os contribuintes e trazem a oportunidade de se estabelecer um ambiente de cooperação e transparência, tendo em vista que tais acordos requerem uma grande abertura de informações e um espaço de amplo diálogo entre contribuintes e administração tributária, e de se obter mais conhecimento sobre o negócio e as práticas do mercado em que os contribuintes operam
Procedimento Amigável
93. A proposta busca conferir maior efetividade às resoluções e às implementações dos procedimentos amigáveis previstos no âmbito dos Acordos e Convenções para se Evitar a DuplaTributação. Assim, além de reafirmar a possibilidade de redução da base de cálculo do IRPJ e da CSLL em casos de soluções acordadas pelas Autoridades Competentes dos Estados Contratantes, o art. 40 esclarece também que os resultados de procedimentos amigáveis ensejam o dever de a autoridade fiscal revisar de ofício eventual lançamento efetuado, a fim de implementar o resultado acordado em procedimentos, inclusive em procedimentos que tratem de matérias não disciplinadas na Lei proposta.
Outras Disposições
94. A proposta revoga as limitações hoje existentes para dedutibilidade dos pagamentos de royalties e serviços para beneficiários no exterior ou no País, que remonta à política fiscal brasileira traçada na década de 1950. As limitações introduzidas foram editadas num contexto de controle de capital da política cambial. Além disso, os limitadores relevantes de dedutibilidade foram estabelecidos pressupondo que as empresas se valiam da estruturação de contratos de transferência de tecnologia como forma de contornar a alta carga tributária incidente sobre a remessa de lucros e dividendos. À época que as limitações foram introduzidas, ainda vigia o regime de bitributação econômica dos lucros (tributação dos lucros/dividendos na PJ e nos sócios), enquanto, no caso dos royalties, a tributação recaía apenas quando do pagamento, mas com a possiblidade de sua dedução da base de cálculo apurada pela pessoa jurídica. Em alguns casos verificados, os royalties se apresentavam exageradamente elevados em função dos lucros declarados. A solução adotada naquele momento foi introduzir os limites de dedução baseados nos percentuais estabelecidos sobre a receita (1%-5%).
95. A utilização de pagamento de royalties e de serviços são mecanismos frequentemente utilizados para erosão da base tributária ainda nos dias de hoje. Entretanto, da forma como a legislação está posta, a efetividade das limitações impostas são questionáveis. Mais do que um controle efetivo que evita o planejamento abusivo, as limitações postas podem servir como um mero safe harbour, em que os contribuintes pagam e deduzem os percentuais previstos na legislação, ainda que seus patamares não sejam condizentes com o que seria esperado em uma relação entre partes independentes. Além disso, se de um lado a sua efetividade enquanto medida antiabuso é questionada, as limitações impostas também têm o inconveniente de gerar dupla-tributação, particularmente nos casos em que os percentuais estabelecidos estão descolados do padrão de mercado.
96. Com a introdução do novo sistema de preços de transferência, a medida arm's length oferece uma baliza mais justa para determinação do valor dedutível e alinhada com a capacidade contributiva, assim como permite, através dos diversos mecanismos previstos na legislação aderente às Diretrizes OCDE, um controle das situações de erosão da base tributária. Assim, entende-se que a inauguração do novo sistema de preços de transferência oferece as condições necessárias para que o regime atual de limitação de dedução dos pagamentos de royalties e serviços seja revisto. Nesse contexto, propõe-se a extinção dos limites existentes a partir do momento em que o novo sistema de preços de transferência passe a ser aplicado e as transações com intangíveis se submetam integralmente ao regime arm's length.
97. Excepcionalmente, como medida antiabuso desenhada especificamente para evitar a erosão da base ou a transferência de lucros e de política pública relevante, o Projeto de Medida Provisória propõe (art. 45) que a vedação à dedutibilidade de pagamentos de royalties se restrinja exclusivamente (i) às hipóteses em que o beneficiário do pagamento seja residente ou domiciliado em País com tributação favorecida ou beneficiário de regime privilegiado dado que, em tais casos, a probabilidade de utilização de estruturas sem substância ou de regimes danosos utilizados com o objetivo de erodir a base tributária são elevadas; e (ii) às situações que gerem assimetrias de tal forma que a dedução gerada no Brasil não corresponda a um rendimento tributável em outras jurisdições, o que enseja dupla não-tributação e favorece a erosão da base tributária brasileira.
98. Cabe, ainda, mencionar que, tratando de países ou dependências com tributação favorecida e regimes fiscais privilegiados, o Projeto de Medida Provisória atualiza a definição legal vigente que serve para caracterização de tais países, dependências ou regimes. Para tal caracterização, os arts. 24 e 24-A da Lei nº 9.430, de 1996, se utilizam, em linhas gerais, de dois critérios: nível mínimo de tributação e acesso à informação.
99. Pela letra da lei, exige-se atualmente uma alíquota mínima de tributação sobre a renda de 20%. A alíquota estabelecida encontra-se desatualizada. Entre 2000 e 2020, houve uma redução das alíquotas nominais dos tributos sobre a renda das pessoas jurídicas em diversos países do mundo. Entre os países membros da OCDE, por exemplo, houve uma redução média de 9% e a média atual das alíquotas nominais dos tributos sobre a renda dos países da OCDE se encontra em patamar próximo a 20% (23,9%).
100. Diante disso, a proposta dispõe que seja revista a definição legal vigente que serve para caracterização dos países com tributação favorecida e dos regimes fiscais privilegiados, de forma a exigir que a alíquota mínima de tributação sobre a renda de 17% (50% do somatório das alíquotas nominais de tributação sobre a renda praticadas no Brasil). Ressalte-se que, tal como se dá atualmente, as transações realizadas com tais jurisdições ou regimes permanecem sob o controle dos preços de transferência, tendo em vista o volume de transações realizadas com tais jurisdições e o elevado risco de erosão da base tributária. Entretanto, com a nova legislação, este controle se dará mediante a exigência de que as transações realizadas com tais jurisdições sejam efetuadas com base no arm's length, ou seja, tal como terceiros independentes.
Relevância e Urgência
101. Uma das principais justificativas para a urgência do ato decorre da recente alteração na política tributária dos EUA, que deixou de permitir o crédito tributário referente aos impostos pagos no Brasil devido aos desvios existentes no sistema de preços de transferência brasileiro em relação ao princípio arm's length, conforme mencionado nos itens 07 e 08 desta Exposição de Motivos. A impossibilidade da tomada de crédito do imposto brasileiro cria adversidades para os investimentos atuais e futuros por parte de investidores americanos. Assim, a menos que uma ação legislativa imediata seja tomada, o País poderá experimentar uma redução significativa do investimento atual e perderá a competitividade para atração de novos capitais, com impacto nos níveis de emprego, na economia, na transferência de conhecimento e tecnologia e, em última análise, também levar a perdas de receita tributária.
102. Outros fatores importantes que justificam a urgência e relevância da medida incluem viabilizar a acessão do Brasil à OCDE e, especialmente, sanar as deficiências que a legislação atual gera em termos de dupla-tributação e dupla não-tributação.
103. A esse respeito, conforme mencionado nos itens 09 e 10, o processo de acessão do Brasil foi lançado em 25 de janeiro de 2022, com a decisão do Conselho da OCDE de se iniciar as discussões com o Brasil a esse respeito. Este processo envolve a avaliação da conformidade do Brasil com os instrumentos da OCDE e seu princípios. Um dos elementos mais relevantes na avaliação é a aderência da legislação ao arm's length. Diante disso, a menos que o Brasil adote prontamente a nova legislação de preços de transferência, a avaliação será realizada com base na legislação em vigor. A legislação vigente contém divergências significativas em relação às Diretrizes da OCDE, inclusive conforme evidenciado pelo relatório conjunto elaborado pela Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil do Ministério da Economia e a OCDE. Com isso, caso a avaliação seja efetuada com base no arcabouço atual, inevitavelmente o resultado seria a falha do Brasil em aderir ao padrão OCDE, o que representaria um obstáculo para a acessão. Por outro lado, a adoção imediata do novo marco legislativo, que, aliás, foi desenhado em estreita cooperação com os especialistas da OCDE, assegurará a conformidade do novo sistema permitindo que o Brasil seja avaliado no processo de acessão já com base em um arcabouço de preços de transferência aderente às Diretrizes da OCDE.
104. A atuação legislativa imediata também se justifica em função das perdas de arrecadação tributária que o Brasil experimenta ano após ano devido às diversas deficiências existentes na legislação brasileira, que permitem a erosão da base tributável e transferência de lucros (BEPS). Estima-se que estas deficiências acarretam anualmente o deslocamento da base tributária na faixa bilhões de dólares do Brasil para outras jurisdições, reduzindo significativamente as receitas tributárias, conforme estudos internos realizados pela Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil do Ministério da Economia com base nos dados da Declaração País-a-País fornecida pelas multinacionais brasileiras e também evidenciado pelas notificações recebidas pela RFB de outras jurisdições. Portanto, urge que uma ação legislativa imediata seja tomada para mitigar esse problema e garantir que as receitas tributárias sejam devidamente arrecadadas no Brasil e utilizadas para suportar as prioridades do País.
105. Ademais, as divergências que o sistema atual possui em relação às Diretrizes da OCDE resultam também em casos de dupla-tributação. Esta dupla-tributação decorre da rigidez das regras atuais que, em alguns casos, fazem com que lucros sejam alocados e tributados no Brasil, enquanto pelas Diretrizes da OCDE, aplicáveis pelas resto do mundo, o mesmo rendimento seja alocado simultaneamente nas contrapartes estrangeiras. Esta dupla-tributação, em alguns casos, é suportada e aceita pelos contribuintes como um custo necessário de se fazer negócio no Brasil; contudo, em diversas situações, verifica-se que os grupos multinacionais deixam de realizar investimento no País para evitar este custo desnecessário. Logo, a dupla-tributação gera perda de oportunidades e reduz a competitividade do Brasil em relação a outras jurisdições. Até que as novas regras sejam implementadas, o País continuará a sofrer prejuízos relevantes decorrentes deste problema, o que também justifica a edição da Medida Provisória para mitigar estas perdas.
106. Em observância ao princípio da anterioridade, o art. 48 estabelece que as novas regras entrarão em vigor a partir de 1º de janeiro de 2024; contudo, dada a relevância e urgência da medida, o art. 46 traz em caráter opcional a adoção dos efeitos para o ano de 2023. Neste caso, a opção implica na obediência a todas as regras estabelecidas nos arts 1º a 45 e será em caráter irretratável.
109. Em cumprimento ao disposto no art. 14 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000 - Lei de Responsabilidade Fiscal, cabe informar que a medida em tela não ocasiona renúncia de receitas tributárias.
110. Essas, Senhor Presidente, são as razões que justificam a elaboração da proposta de Medida Provisória que ora submeto a sua apreciação.
Respeitosamente,
MARCELO PACHECO DOS GUARANY
- Portal da Presidência da República - 29/12/2022 (Exposição de Motivos)