Legislação Informatizada - DECRETO LEGISLATIVO Nº 112, DE 2002 - Exposição de Motivos

DECRETO LEGISLATIVO Nº 112, DE 2002

Aprova o texto do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, aprovado em 17 de julho de 1998 e assinado pelo Brasil em 7 de fevereiro de 2000.

EM. N° 203 - MRE/MJ

   Brasília, 26 de julho de 2001

     Excelentíssimo Senhor Presidente da República, O Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional (TPI) é uma convenção multilateral celebrada com o propósito de constituir um tribunal penal internacional, permanente e independente, com jurisdição complementar à dos Estados para processar e julgar os responsáveis por crimes de extrema gravidade no âmbito internacional: genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e, em etapa posterior, também o crime de agressão.

     2. A aprovação do Estatuto, na Conferência de Roma, em julho de 1998, representou marco importante na evolução do direito internacional contemporânea e na proteção dos direitos humanos; é a primeira vez que se estabelece uma instância penal internacional de caráter permanente, com capacidade para julgar os indivíduos responsáveis por crimes aberrantes, que atingem os direitos humanos mais elementares e nessa medida afetam a humanidade como um todo.

     3. A criação do TPI, quando se concretizar, constituirá um notável avanço nos esforços da comunidade internacional para combater esses crimes, fornecendo-lhe instrumentos para obrigar seus perpetradores a responderem por seus atos. Prevê-se que, em razão de seu caráter permanente, a nova instituição deverá exercer dissuasório sobre potenciais criminosos, contribuindo dessa forma para prevenir a ocorrência de violações maciças de direitos humanos e de ameaças contra a paz e a segurança dos Estados.

     4. O estabelecimento do TPI tem extraordinária relevância não só no plano jurídico mas também no político; no passado, as iniciativas de julgamento e punição de indivíduos responsáveis por delitos internacionais de extrema gravidade tiveram caráter ad hoc. Foi assim nos casos dos Tribunais de Nuremberg e Tókio (instituídos ao final da II Guerra Mundial) e, mais recentemente, dos Tribunais estabelecidos pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas para julgar crimes bárbaros cometidos no contexto dos conflitos na ex-Iuguslávia e em Ruanda. Por seu caráter multilateral e permanente, o TPI permitirá superar, ao menos em parte, os problemas de seletividade e politização que caracterizam até hoje, no âmbito internacional, o tratamento penal desse tipo de crimes.

     5. O Estatuto, cujo texto encontra-se em anexo à presente informação compõe-se de 13 partes e 128 artigos. São as seguintes suas principais disposições:

a) O TPI sem uma instituição permanente, sediada na Haia, que estará vinculada às Nações Unidas por meio de um tratado. constituindo, contudo, uma entida de autônoma;
b) Sua jurisdição terá caráter excepcional e complementar à dos Estados: somente será exercida em casos de transcendência internacional, em que se verificar manifesta incapacidade ou falta de disposição de um sistema judiciário nacional para exercer sua jurisdição primária sobre os crimes previstos no Estatuto;
c) Sua competência estará limitada aos crimes de genocídio, crimes de guerra e crimes contra a humanidade; futuramente, também incluirá o crime de agressão, quando sua definição houver sido aprovada pelos Estados-Partes em uma Assembléia de revisão do Estatuto;
d) O Tribunal considerara apenas crimes cometidos após a entrada e vigor do Estatuto, salvo nos casos em que um Estado aceite expressamente a jurisdição do Tribunal para delitos cometidos anteriormente;
e) O exercício de sua jurisdição terá como pré-condição que sejam parte do Estatuto (ou não o sendo, hajam voluntariamente aceito essa jurisdição no caso concreto): (i) o Estado em cujo território tenha ocorrido o crime, ou (ii) O Estado de nacionalidade do indivíduo acusado;
f) O Estado que ratifica o Estatuto aceita automaticamente a competência jurisdicional do Tribunal, facultando-se-lhe apenas a possibilidade de declarar que, durante um período de sete anos a partir da ratificação, não aceitará sua jurisdição sobre os crimes de guerra;
g) O Tribunal poderá ser acionado por meio de: (i) comunicação de qualquer Estado-Parte à Promo toria, (ii) comunicação do Conselho de Segurança, ao abrigo do Capítulo VII da Carta da ONU, (iii) investigações iniciadas ex offício pelo Promotor;
h) As questões relativas à admissibilidade das causas perante o TPI serão decididas por uma Câmara de Questões Preliminares;
i) Faculta-se ao Conselho de Segurança das Nações Unidas a possibilidade de solicitar ao TPI a suspensão por até doze meses (renovável por igual prazo) de investigação ou processo já iniciados;
j) Os Estados-Partes ficam obrigados a estender plena cooperação ao Tribunal para o exercício de suas funções, inclusive assegurando que sejam previstos, em seu direito interno, os procedimentos necessários para tanto;
k) O Estatuto define os princípios gerais de direito aplicáveis na atuação do TPI, lista os direitos do acusado e estabelece que o ônus da prova recairá sobre a Promotoria; define procedimentos para a proteção de vitimas e testemunhas; regulamenta o tratamento a ser dado a informações que possam afetar a segurança nacional dos Estados envolvidos e prevê o estabelecimento de princípios a respeito das reparações às vítimas;
l) As penas previstas serão, entre outras, as de reclusão por período que não exceda 30 anos ou, excepcionalmente, quando a extrema gravidade do crime e as circunstâncias pessoais do condenado o justificarem, a de prisão perpétua, sujeita a revisão após o cumprimento de 25 anos;
m) Essas penas serão cumpridas em Estado designado pelo Tribunal, dentre aqueles que manifestarem disposição para tanto, ficando o Tribunal responsável pela supervisão da execução da pena;
n) O Tribunal será composto por 18 juízes e um Promotor, eleitos pelos Estados-Partes para um mandato de 9 anos;
o) As despesas do Tribunal serão financiadas por contribuições dos Estados-Partes (em rateio a ser definido com base na escala de contribuições ao orçamento regular da ONU) e por fundos transferidos pelas Nações Unidas, sujeitos à aprovação da Assembléia-Geral;
p) O Estatuto prevê mecanismos para a solução de controvérsias entre os Estados-Partes;
q)

Não são permitidas reservas ao Estatuto e a apresentação de emendas a seu texto só poderá ocorrer após decorridos sete anos da entrada em vigor.

     6. Com vistas a definir aspectos adicionais necessários ao funcionamento do TPI, a Assembléia-Geral das Nações Unidas estabeleceu uma Comissão Preparatória. Encarregada de elaborar projetos dos textos de instrumentos complementares, a serem submetidos á Assembléia dos Estados-Partes, quando o Estatuto entrar em vigor. Já foram concluídas as negociações das Regras de Procedimento e Prova e dos Elementos dos Crimes, que orientarão o Tribunal na aplicação do Estatuto.

     7. Ao longo do processo negociador que resultou na aprovação do Estatuto do TPI, o Brasil procurou atuar de forma construtiva, que refletisse o nosso comprometimento com a defesa dos direitos humanos e nosso interesse em contribuir para romper o ciclo de impunidade dos responsáveis pelos crimes gravíssimos sob a jurisdição do Tribunal.

     8. Nessa linha, ao final da Conferência de Roma, o Brasil votou a favor da adoção do Estatuto, expressando com isso nosso apoio à proposta de criação do TPI e nossa aceitação do resultado das negociações. Esse apoio foi confirmado com a assinatura do Estatuto pelo Brasil em 7 de fevereiro de 2000. Continuamos, além disso, a participar das negociações para o aperfeiçoamento da instituição no âmbito da Comissão Preparatória das Nações Unidas.

     9. O Brasil deve agora dar o passo seguinte e unir-se ao esforço da comunidade internacional para que se alcancem prontamente as 60 ratificações necessárias para a entrada em vigor do Estatuto, e o Tribunal Penal Internacional possa tomar-se realidade. Até o dia 23 de julho corrente, o Estatuto havia sido ratificado por 37 países, mas o processo de aprovação congressual e ratificação já se encontra em andamento em grande parte dos 139 países que assinaram o instrumento.

     10. A ratificação do Estatuto do TPI estaria em plena sintonia com os princípios da prevalência dos direitos humanos nas relações internacionais e da dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado, inscritos na Constituição brasileira. Cabe recordar que a Constituição determina, no artigo 7° do Ato das Disposições Transitórias, que o Brasil propugnará pela formação de um tribunal internacional dos direitos humanos.

     11. A ratificação do Estatuto estaria, além disso, em conformidade com nossa tradição de apoio à cooperação internacional no campo do direito penal e com nossa intenção, tantas vezes reiterada por Vossa Excelência, de contribuir para fortalecer a proteção e a promoção dos direitos humanos tanto no âmbito interno como no plano internacional. No ano passado, o Brasil deu um passo de grande significação nesse sentido ao aceitar a competência contenciosa da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

     12. Ao ratificar o Estatuto de Roma, estaríamos ainda favorecendo um os objetivos centrais de nossa política externa; a manutenção da paz e da segurança internacionais, à qual o TPI virá oferecer valiosa contribuição.

     13. Nas primeiras sessões da Assembléia dos Estados Partes, que se reunirá quando o Estatuto de Roma entrar em vigor, serão adotadas decisões da maior relevância sobre o funcionamento do Tribunal, tais como a aprovação dos Elementos dos Crimes e as Regras de Procedimento e Prova negociados na Comissão Preparatória em Nova York, a eleição dos primeiros 18 juizes, promotor e eventuais promotores-adjuntos, a aprovação dos regulamentos financeiros e do orçamento da instituição, além do regimento interno da própria Assembléia. Os países que houverem assinado o Estatuto, sem ainda tê-lo ratificado, poderão participar apenas na condição de observadores, sem direito a voto. O Brasil tem todo interesse em estar entre os membros fundadores do Tribunal Penal Internacional.

     14. Desde a Conferência de Roma, foram realizadas consultas e discussões, em diversos níveis, para o exame cuidadoso das questões relativas à compatibilidade das disposições do Estatuto de Roma com o direito interno brasileiro. Essas iniciativas envolveram não apenas o Poder Executivo, mas também entidades da sociedade civil, acadêmicos e membros dos Poderes Legislativo e Judiciário.

     15. O exame efetuado permitiu determinar que não existem obstáculos intransponíveis para a adesão brasileira, conforme parecer do Consultor Jurídico do Itamaraty, anexo à presen te. Ao contrário, o Tribunal Penal Internacional vai precipuamente ao encontro dos propósitos consagrados na Constituição brasileira, posto que sua finalidade é tomar efetiva a proteção dos direitos fundamentais da pessoa humana. Além disso, sendo o Tribunal regido pelo princípio da complementaridade, está nas mãos do Estado brasileiro não tornar necessária sua intervenção em casos sujeitos à jurisdição nacional.

     16. No que se refere à questão da compatibilidade entre o Estatuto de Roma e a Constituição, a perspectiva da segurança jurídica pode tomar recomendável que a eventual ratificação pelo Brasil seja precedida da aprovação de dispositivo constitucional que lhe dê endosso explícito. Nesse sentido, será relevante a decisão que vier a ser adotada pelo Congresso Nacional sobre a iniciativa, já em curso, de proposta de emenda constitucional pela qual seria autorizado o reconhecimento, pelo Brasil, da jurisdição do Tribunal Penal Internacional, nas condições previstas no Estatuto de Roma (PEC n° 203/2000).

     17. Oportuno recordar que, segundo o art. 80 do Estatuto de Roma, nada prejudicará a aplicação pelo TPI da legislação de Estados que não preveja as penas cominadas naquele instrumento internacional.

     18. Nesses termos temos a honra de submeter á elevada consideração de Vossa Excelência a anexa minuta de Mensagem ao Congresso Nacional, encainhando o texto do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional para a necessária aprovação legislativa, prévia à ratificação.

Respeitosamente,

Celso Lafer
Ministro de Estado das Ministro de Estado da Relações 

José Gregori
Ministro de Estado da Justiça.


Este texto não substitui o original publicado no Diário do Senado Federal de 30/04/2002


Publicação:
  • Diário do Senado Federal - 30/4/2002, Página 6604 (Exposição de Motivos)