Legislação Informatizada - DECRETO LEGISLATIVO Nº 38, DE 1995 - Exposição de Motivos
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DECRETO LEGISLATIVO Nº 38, DE 1995
Aprova o texto da Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas, concluída em Nova York, em 28 de setembro de 1954.
Exposição de Motivos Nº 070/MRE, de 9 de Março de 1993, do Senhor
Ministro de Estado das Relações Exteriores.
Excelentíssimo Senhor Presidente da República,
Elevo à consideração de Vossa Excelência o anexo projeto de mensagem pela qual se submete ao referendo do Poder Legislativo o texto da Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas, celebrada em Nova York, em 28 de setembro de 1954, sob os auspícios da Organização das Nações Unidas.
2. O instrumento em apreço resultou das atividades de uma comissão ad hoc instituída para esse fim, em 1954, pelo Conselho Econômico e Social da ONU (ECOSOC), no bojo das preocupações de juristas e estadístas - pelo menos no mundo ocidental - em relação a um problema que, em virtude de condições conhecidas, assumira vastas proporções nos anos subseqüentes à I Guerra Mundial, e que, os outros aspectos, foi também objeto, àquele tempo, de alguns projetos elaborados pela Comissão de Direito Internacional da Organização: a apátrida.
3. A Convenção de Nova York foi subscrita, logo de início por dezesseis Estados, entre os quais o Brasil, e entrou em vigor internacionalmente em 06.06.60, após haver sido ratificada por seis países, nos termos do artigo 39. Atualmente, elevam-se a mais de trinta as Partes Contratantes.
4. Por motivos que hoje não se percebem claramente, tendo em vista a época em que foi concluída, não foi ela desde logo submetida ao Congresso Nacional, muito embora o então Consultor Jurídico do Itamaraty, o insigne jusinternacionalista Embaixador Hildebrando Accioly, consultado a respeito, se houvesse manifestado, em lúcido parecer emitido em dezembro de 1954 (do qual ainda agora em boa parte me aproveito para a elaboração desta Exposição de Motivos), plenamente favorável á sua ratificação. Tanto mais que, como ele mesmo salientava, seu assunto, em 1951, se concluíra outra Convenção à qual o Brasil igualmente se associará pela assinatura. Conquanto tampouco esta tivesse sido, até então, remetida à consideração do Congresso, acabou por ser aprovada e ratificada, em 1960, pelo Brasil, que também aderiu, ja em 1972, ao Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados, concluído em 31.01.67.
5. Como ponderava Accioly no referido parece, o problema de que se ocupa a Convenção sob exames, além da importância de que se reveste, apresenta certa complexidade, porque abrange não só os apátridas que o são por força das respectivas legislações ou atos de poder das autoridades dos Estados de que eram nacionais, mas ainda aqueles que voluntariamente abandonaram sua nacionalidade, em conseqüência de acontecimentos políticos ocorridos no país de origem: os primeiros são chamados apátridas de jura; os outros apátridas de facto. O instrumento em pauta, por ocasião de alguns países, não cobre o último caso.
6. Quanto às diferentes disposições da Convenção, são elas aceitáveis dentro de espírito da legislação brasileira.
7. A definição dada no artigo 1 não parece suscitar a menor dificuldade: o apátrida é, para os fins da Convenção, "toda pessoa que não seja considerada seu nacional por nenhum Estado, conforme sua legislação". A Convenção não se aplica, contudo, às pessoas que já gozam de alguma proteção ou assistência da parte de algum organismo ou instituição das Nações Unidas, que não seja o Alto Comissariado para os Refugiados; nem tampouco às pessoas a que o nacionais; nem àquelas das quais existam razões para se acreditar: a) que cometeram um crime contra a paz, um crime de guerra ou um crime contra a humanidade, no sentido dos instrumentos internacionais elaborados a respeito de tais crimes; b) que cometeram um crime grave de direito comum fora do país de sia residência, antes de serem ai admitidas; c) que se tornaram culpadas de ações contrárias aos fins e aos principios das Nações Unidas.
8. Os artigos 2 a 6 não parecem suscitar qualquer dificuldade. Dizem respeito, respectivamente: aos deveres do apátrida para com país onde se encontra; à obrigação de o Estado não fazer discriminação, quanto aos apátridas, no tocante à raça, religião ou país de origem; à possibilidade de serem concedidos outros direitos aos apátridas, além dos indicados na Convenção; ao sentido da expressão "nas mesmas circunstâncias", nela usada.
9. O artigo 7 suscitou muito debate na Conferência que elaborou o instrumento, por ser julgado bastante favorável aos apátridas. O certo, porém, é que o intuito da Convenção era justamente o de remediar, tanto quanto possível, a sorte destes, ao mesmo tempo que resolver certos problemas de ordem interna dos Estados que os acolhem. E não parece que o artigo em causa seja condenável. Dispõe ele o seguinte:
10. A disposição contida nesse último parágrafo poderia talvez parecer excessiva, embora, de fato, nada contenha de extraordinário. Em todo o caso, convém desde logo observar que o artigo 38 permite reservas aos artigos da Convenção, salvo alguns deles entre os quais não figura o artigo 7. Por outro lado, este último reproduz, mutatis mutandis, o artigo 7 da Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados, do qual, como acima indicado, o Brasil é Parte Contratante.
11. De resto, o princípio da reciprocidade, bastante difundido em sua vertente diplomática, abrangendo matérias tais como isenções fiscais, dispensa de vistos, cláusula da nação mais favorecida etc., tem aplicação muito mais restrita na ára legislativa, entendido como aquela decorrente de disposições de direito interno e consistente na concessão, a um estrangeiro, dos direitos que são outorgados aos nacionais por um texto legislativo ou regulamentar no país de origem desse estrangeiro. Entre nós, este último tipo de reciprocidade é praticamente inexistente. Enquanto o Código Civil francês, por exemplo, estatui em seu artigo 11:
12. O artigo 8 da Convenção em exame diz respeito à dispenda de medidas excepcionais contra as pessoas, os bens ou os interesses dos apátridas e, por seus termos, não parece que possa ter aplicação entre nós.
13. Os artigos 9 a 11 referem-se a medidas provisórias, continuidade de residência e marinheiros apátridas, e são de somenos importância.
14. O Capítulo II (artigos 12 a 16) contém disposições perfeitamente aceitáveis, a começar pela do artigo 12, segundo o qual o estatuto do apátrida será governado pela lei dos país de domicílio ou, na falta de domicílio, pela do país de residência.
15. Os artigos 13 a 16 referem-se à aquisição de propriedade móvel e imóvel, à proteção da propriedade intelectual e industrial, ao direito de associação, ao direito de livre acesso aos tribunais. Neste último, estão expressamente compreendidas a assistência judiciária e a isenção da caução judicatum solvi.
16. No Capítulo III, intitulado empregos lucrativos, seus três artigos (17 a 19) concedem aos apátridas um tratamento tão favorável quanto possível e, em todo caso, não menos favorável do que o concedido, nas mesmas circunstâncias, aos estrangeiros em geral, no concernente ao exercício de atividades profissionais.
17. O Capítulo IV (artigos 20 a 24), sobre vantagens sociais, concede várias destas aos apátridas, colocando-os, algumas vezes, no mesmo pé em que se acham os nacionais e lhes dado, noutros casos, o tratamento concedido, nas mesmas circunstâncias, aos estrangeiros em geral.
18. O Capítulo V (artigos 25 a 32) cuida de assistência administrativa ao apátrida que necessite normalmente do concurso de autoridade estrangeira a que não possa recorrer; cuida também do direito de escolha de residência e da liberdade de circulação, sob reserva dos regulamentos aplicáveis aos estrangeiros em geral; trata de documentos da identidade, de documentos para viagens, de encargos fiscais, da transferência de haveres, na conformidade das leis e regulamentos locais, da expulsão e da naturalização.
19. Quanto à expulsão, o artigo 31 estabelece que o Estado que acolhe um apátrida assume o compromisso de não a decretar contra tal apátrida, se o mesmo está regulamente em seu território, a não ser por motivos de origem pública. Em qualquer caso, a expulsão só se fará mediante processo legal e regular. Além disso, ao apátrida será dado tempo suficiente para procurar admissão em outro país.
20. Relativamente à naturalização, o artigo 32 dispõe que os Estados Contratantes facilitarão, na medida do possível, a assimilação e a naturalização dos apátridas.
21. O Capítulo VI (artigos 33 a 42) contém cláusulas da ordem geral, referentes as informações sobre leis e regulamentos nacionais; solução de eventuais litigios entre as partes contratantes acerca da interpretação ou aplicação da Convenção; assinaturas, ratificações e adesões, aplicação da Convenção em territórios dependentes, aplicação a Estados federativos, reservas, entrada em vigor, denúncia, revisão, notificações. A referência a Estados federativos não é aplicável no Brasil, dis respeito apenas a Estados ou cantõem que, em virtude de disposições constitucionais, são competentes para legislar sobre o assunto.
22. Com referência às reservas, o artigo 38 dispõe que todo Estado contratante poderá formulá-las a respeito de qualquer dos artigos, exceto os seguintes: 1, 3, 4, 16 (parágrafo 1) o 33 a 42, inclusive. A denúncia é facultada em qualquer momento e terá efeito um ano a data em que for recebida pelo Secretário-Geral das Nações Unidas.
23. Uma das disposições dignas de atenção, na Convenção em apreço, à que determina a criação de títulos de viagem destinados a permitir que os apátridas viajem fora do território do Estado que os acolhe. O artigo 28, que disto se coupa, ressalva, no entanto, o direito do Estado a não conceder semelhante documento, por motivos imperiosos de segurança nacional ou de ordem político.
24. Permito-me recordar, a este propósito, que desde 1928 foi possível, no Brasil, a concessão de passaporte do modelo comum aos individuos sem nacionalidade (heimatlos). A partir de 1934, passaram eles a receber, apenas no Brasil, o novo "Passaporte para Estrangeiro", mas somente para uma viagem ao exterior, cessando os seus efeitos no lugar de destino. Ou seja, não se tratava de documento hábil para com ele regressar ao Brasil. Em 1940, essa restrição foi abrandada, passando-se a permitir a posição, no mesmo de visto consular de entrada, para viagem de volta, desde que seus titulares possuíssem autorização de permanência definitiva no país. Desde o Estatuto do Estrangeiro de 1969, passou-se a utilizar propriamente o termo "apátrida" para designar uma categoria de pessoas passíveis de obter passaporte para estrangeiro, e a sua situação, no tocante ao retorno, é hoje idêntico à de qualquer estrangeiro registrado como permanentes poderá regressar independentemente de visto, se o fizer dentro de dois anos da data em que se ausentar do país.
25. Em suas, penso que a dita Convenção pode ser aprovado sem inconvenientes, antes com vantagens em alguns pontos, porque tendo e integrar na nacionalidade brasileira individuos que poderão ser úteis ao País. Em seu conjunto, ela procura assegurar aos apátridas - pessoas que têm a desventura de não poder contar sequer com a proteção do país onde nasceram - a situação de que gozam, em cada país, os estrangeiros. Em certos casos, como no que concerne à assistência social, ela lhes assegura o mesmo tratamento concedido aos nacionais. No Brasil, por sinal, o primeiro objetivo da seguridade social, por força do inciso I do parágrafo único do art. 194 da Constituição, é a universidade da cobertura do atendimento.
26. O Brasil já é parte do Protocolo nº 1 anexo à Convenção Universal para a proteção do direito de autor, relativo à proteção dos apátridas e dos refugiados, desde a sua versão original de Genebra (1952), e atualmente da versão de Paris (1971).
27. Nossa Constituição Federal, no caput do artigo 5, coloca os brasileiros e os estrangeiros residentes no País em pé de igualdade com relação à inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. O apátrida à um estrangeiro e, pois, deve gozar de todos esses direitos. Apenas, por sua condição especial e justamente porque não conta com a proteção de um Estado, careço de certas garantias ou facilidade que a Convenção de 1954 tem em vista assegurar-lhe. O fato de estar ele, no momento, sem pátria, não deve ser motivo para que lhe recusemos o concedido a outros seres humanos, que gozam da vantagem de ter Estados que por eles vale, ou devam valer, permanentemente.
28. Como assinalava o Embaixador Ilmar Penna Marinho no seu Tratado sobre a Nacionalidade (vol. IV, 1961, p. 300-301), não chegou o Estatuto de Nova York à atribuição automática da nacionalidade do Estado ao apátrida pelo fato de haver este residido durante certo tempo em seu território. Cingiu-se a preceituar, como acima indicado, que o Estado facilitará, tento quanto possível, a naturalização dos apátridas, evitando-lhes as delongas do processo de naturalização e reduzindo-lhes as custas dos mesmos. Seja como for, graças à entrada em vigor desse "Estatuto" e até que se torne possível a assinatura de convenções mais arrojadas e capazes de proacrevê-la definitivamente, é de esperar-se que a apátridia se veja abluida de alguns dos graves vícios e desastrosos inconvenientes que a inquinam.
Respeitosamente,
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO
Ministro de Estado das Relações Exteriores
- Diário do Congresso Nacional - Seção 1 - 17/12/1993, Página 27041 (Exposição de Motivos)