Notas Taquigraficas de 11-09-01


 

Notas Taquigraficas da Reunião de 11/09/2001

O SR. PRESIDENTE (Roberto Requião) — Está aberta mais uma reunião da Comissão Mista do Mercosul. Hoje, na forma de uma audiência pública, os Embaixadores Botafogo e Samuel Pinheiro Guimarães, farão imposições sobre a Alca e o Mercosul.
Registro a presença do Embaixador do Uruguai, Augustin Espinosa, Gustavo Vanelho, Ministro Conselheiro da Embaixada do Uruguai; Bismarque Creiler, Conselheiro da Embaixada da Bolívia; Hugo Ravier Gobi, Conselheiro da Embaixada da República Argentina e Teresita Gonçales Dias, Ministra da Embaixada da República Argentina.
Iniciamos as intervenções com a palestra do Embaixador Botafogo.
O SR. JOSÉ BOTAFOGO GONÇALVES — Muito obrigado, Senador. Peço permissão para saudar, em primeiro lugar, a Senador Emilia Fernandes, sou da velha geração que gosta de distinguir entre homens e mulheres, além do mais a Senadora tem um papel relevante na vida do Mercosul. Portanto, queria saudá-la de modo particular, como também aos outros Senadores e Deputados aqui presente.
Dentro desses 20 minutos que, generosamente o Senador Requião me concede, gostaria de focar alguns pontos principais em torno deste tema: Alca e Mercosul. Esse tema tem sido debatido com bastante vigor, no últimos tempos, não só no Itamaraty, mas também, na minha função específica, de representante especial do Presidente da República para assuntos do Mercosul, acompanho com muito cuidado, com muito interesse esse assunto. A primeira observação que faria a esse respeito é com relação a esse debate.
A história das negociações internacionais, recente do Brasil, sobretudo na década de 80 e 90, reflete, pelas circunstâncias prevalecentes, seja na vida política, seja na sociedade, uma participação relativamente menor da sociedade civil como chamamos hoje. Decisões, algumas até brilhantes e fundamentais, foram tomadas de maneira, senão unilateral, pelo menos de cima para baixo — não estou fazendo crítica desse período porque a cada período histórico corresponde um processo de decisão diferente, pelo contrário, quero apenas mencionar como uma profunda transformação na cultura, na vida política e na política externa brasileira ocorreu em função de um entendimento muito particular entre o Presidente Sarney o Presidente Afonsin em 1986. Se não tivesse um empenho de cima para baixo, certamente a evolução do Continente, sobretudo do Cone Sul, não teria tido aspecto tão positivo que tem e que está tendo até hoje.
De qualquer maneira, ao longo do anos, tivemos, em 1990, uma abertura unilateral da área comercial brasileira, determinada também por circunstâncias conjunturais muito graves. A negociação do Tratado de Assunção, datado de 1991, teve um envolvimento, uma participação maior de outros segmentos, além do Executivo. Em 1994, negociou-se o Protocolo de Ouro Preto. Essa, talvez, tenha sido a primeira vez em que os aspectos mais imediatos ou mais salientes da estrutura industrial e agrícola brasileira tenham entrado em discussão na negociação do Protocolo de Ouro Preto. Foram listas dentro de um sentido de abertura, no sentido de integração regional e estamos chegando agora, no fim da década de 90 e início do terceiro milênio, por uma nova série de rodadas de negociações internacionais.
Hoje, estamos envolvidos na negociação da Alca, estou falando sempre do Mercosul, estamos envolvidos numa negociação com a Comunidade Européia, estamos desenvolvendo ou implementando os acordos de livre comércio que foram firmados com o Chile e com a Bolívia. O Mercosul está negociando um acordo com a África do Sul. Estamos negociando um acordo de livre comércio com a Comunidade Andina das Nações.
Há uma fila de pedidos de consultas internacionalmente dirigidas à Presidência pro tempore de então, do momento, de consultas de todos os grandes segmentos econômicos internacionais, ou países ou instituições. O Embaixador Agostinho Espinosa, que há alguns anos era o Coordenador Uruguaio pelo Mercosul, na época em que eu era o Subsecretário de Assuntos Econômicos, lembra-se de que, nas nossas reuniões de Mercosul, tínhamos muita dificuldade em estabelecer um calendário de discussões no que chamamos o relacionamento externo do Mercosul, tal a quantidade de solicitações que vínhamos tendo por parte de países ou instituições que queriam ou negociar com o Mercosul algum acordo comercial ou criar um mecanismo permanente de consultas. Além das que já mencionei, há a Rússia, o Japão, a China; Acredito que o Embaixador, inclusive, esteve nessas reuniões na ocasião. O Canadá já propôs formalmente um acordo de livre comércio com o Mercosul.
Isso mostra, de um lado, um enorme interesse mundial que o Mercosul despertou desde que foi criado em 1991 e, certamente, a partir de 1994, com a implementação da tarifa externa comum e as conseqüências comerciais daí decorrentes.
Naturalmente, isso exige uma extraordinária mobilização de recursos humanos e técnicos e estamos cada vez mais nos equipando. Aqui já falo mais do Brasil, no momento, e depois falarei do Mercosul, para responder a essa demanda genérica crescente. Hoje temos uma relacionamento estruturado, profissionalizado, podemos chamar assim, com as Confederações, Agricultura, Indústria, Comércio, por meio do que chamamos a coalizão empresarial brasileira, coordenada pela CNI, mas na verdade é uma representação ampla que, além de ter as confederações principais, tem como que 120 a 130 associações de classe formando essa coalizão empresarial. Essa coalizão debate com o governo e com os negociadores. Da mesma forma, a Comissão Parlamentar Conjunta do Mercosul tem multiplicado seus contatos com os outros parlamentares do Paraguai, Uruguai e Argentina, num processo cada vez mais crescente de envolvimento do Congresso nas discussões de interesse do Mercosul.
Não queria deixar de mencionar, porque me parece extremamente válido e muito pouco conhecido da opinião pública em geral, o papel que vem desempenhando o Conselho Consultivo Econômico e Social do Mercosul, que é uma fórmula inovadora e extremamente inteligente porque não é vinculada aos governos. É um órgão autônomo, consultivo, mas cada vez mais está participando da agenda do Mercosul e é uma organização tripartite que compreende empresários, centrais sindicais e, no caso do Brasil, representantes dos consumidores.
Isso permite uma intensa discussão entre esses segmentos com relação às posições que devem ser tomadas em todas as agendas negociadoras do Mercosul, desde as questões mais centrais de liberação, de tarifa externa comum, de desenvolvimento, de políticas comuns até o relacionamento externo. Particularmente, tenho contatos freqüentes com os representantes dessas três agremiações, tanto na área industrial ou empresarial, em que há uma rotação entre as confederações, como também na área sindical, em que há uma rotatividade entre a CUT, a CGT e a Força Sindical. Todo esse mecanismo põe-se em movimento e gera um debate extremamente oportuno. Que esse debate se ponha sobre todos os temas.
No caso específico da Alca, não vou fazer histórico, porque todos conhecem, mas certamente vale a pena mencionar dois ou três pontos de referência.
Em 1994, o Presidente Bill Clinton decidiu lançar uma grande operação hemisférica, que compreendia não apenas a parte comercial e econômica, mas uma série de outros temas de segurança, educação e saúde, uma série de conferência que teve lugar na chamada Cúpula das Américas, em Miami. Havia um segmento comercial e econômico, quando se lançou a idéia de um acordo de livre comércio, a Alca, reunindo 34 países do Continente, com exceção de Cuba.
Essas reuniões iniciaram-se em 1995 e vem prosseguindo até hoje. Uma questão que é preciso deixar clara é a de que, durante todo esse tempo — também é um aspecto que precisa ser salientado —, o Mercosul, a não ser nas primeiríssimas reuniões, agiu por intermédio de um só porta-voz, seguindo a seqüência das presidências pro tempore semestrais. Há uma pequena história que citarei somente para ilustrar um pouco.
Houve uma reunião na Colômbia, em Cartagena, uma das primeiras, e os organizadores da conferência, que era o Governo Colombiano — naquele tempo não havia, ainda, uma estrutura montada da Alca —, naturalmente armou a mesa por ordem alfabética. Sendo em ordem alfabética, os países do Mercosul não estavam, necessariamente, juntos uns dos outros.
A delegação do Mercosul já estava presente, lembro-me disso. Fizemos um pedido para que as quatro bandeirinhas dos quatro países do Mercosul ficassem juntas, e a proposta foi violentamente rejeitada não só pela Colômbia, mas por muitos países; não só pelos Estados Unidos, que, aliás, não tomou muita parte nesse debate. Havia uma reação de resistência à idéia de que o Mercosul poderia falar. Isso foi na sessão da manhã. Na sessão da tarde, demos um golpe: enquanto todos almoçavam, fomos lá e trocamos as bandeirinhas e pusemos os quatro sentados, e não houve possibilidade de nos removermos à força para tratar.
Não é folclore ou apenas uma história para tornar distraída esta audiência — aqui estamos tratando de coisa séria —, mas para mostrar que, sem a unidade do Mercosul, uma negociação na Alca terá, com muita chance, mais possibilidade de prejuízo do que de vantagem. Isso tem sido reiteradamente reafirmado pelos quatro países do Mercosul, independentemente das dificuldades comerciais que estamos encontrando hoje, desde 1999, com a crise brasileira, a desvalorização do Real, com a profunda crise argentina, com a crise uruguaia, com a falta de crescimento, mas nunca houve nenhum titubeio com relação à apresentação unificada junto à Alca.
A negociação caminha, e com uma série de dificuldades. Primeiro, vamos ver as dificuldades do lado de lá, se pudermos chamar assim. A verdade é que agora está aparecendo, com clareza, que a administração do Presidente Bill Clinton não conseguiu convencer a sociedade americana, por meio do Congresso, da vantagem de um acordo de livre comércio. Tentou três vezes, se não me engano, obter o Fast Track, e não conseguiu.
As reações vieram sobretudo de dois grupos estruturados dentro dos Estados Unidos: primeiro, as centrais sindicais norte-americanas, que temiam uma perda de emprego em função da concorrência, com a presença das indústrias ou da agricultura dos países do Mercosul. Havia outro grupo, menor, mas também muito ativo, o dos ambientalistas, que queriam condicionar a liberação comercial a certos compromissos e práticas no campo do meio ambiente, o que é perfeitamente válido. Só não seria válido, tanto no caso do meio ambiente quanto no caso de algumas solicitações das centrais sindicais americanas, que o não cumprimento dessas obrigações levaria a sanções comerciais a serem aplicadas particularmente pelos Estados Unidos, o País que se sentia mais ameaçado pela concorrência - ou pelo menos era essa a tese que apresentavam.
Isso, evidentemente, encontrou forte resistência de um grande número de países, muito particularmente dos países do Mercosul. Estes, sem se recusar a um debate sério sobre temas da cláusula social, sobre temas trabalhistas e também sobre política ambiental, não podiam aceitar essa vinculação com retaliações comerciais, porque, obviamente, isso levaria a uma manipulação protecionista por parte de setores que pudessem se sentir prejudicados nos Estados Unidos e até mesmo no Canadá.
Então, a verdade é que a administração Clinton fracassou na tentativa de passar à sociedade americana a idéia de um acordo de livre comércio.
A nova Administração Bush está tentando encontrar novo fôlego com relação a esses entendimentos: mudou o nome, não fala mais em fast track, mas em trade promotion notoriety. Enfim, usa uma cosmética diferente, mas as resistências são muito parecidas, mais ou menos na mesma ordem de idéias, tanto na área das centrais sindicais quanto na área ambiental.
A resistência dos países em desenvolvimento e particularmente do Mercosul tem sido determinante para estabelecer o mínimo de equilíbrio nas propostas negociadoras. Com muita dificuldade, chegou-se à documentação aprovada pelas várias declarações ministeriais e reuniões até mesmo presidenciais, como foram as cúpulas sucessivas em Santiago e, recentemente, em Quebec. Em primeiro lugar, aprovou-se o single undertaking, ou seja, nenhuma negociação é feita parcialmente, para não se perder a noção do equilíbrio geral. Só quando estiver tudo fechado e todos estiverem convencidos de que, no total, há um equilíbrio razoável de vantagens, fecha-se a negociação. Foi muito difícil passar essa proposta do single undertaking, mas ela passou e está consagrada.
Conseqüentemente, também não aceitamos algumas propostas norte-americanas, canadenses e de outros países também, mas estou falando dos principais países. Como por exemplo, rejeitamos aquela que, no linguajar deles, seria a colheita antecipada, early harvest: enquanto negociamos as questões mais complicadas, selecionemos aquelas que são do nosso interesse - tais como liberalização de determinados setores, telecomunicações, serviços - e negociemos antes, para que façamos uma colheita antecipada. Essa proposta foi rejeitada porque conflita com o single undertaking.
Mais do que isso, também tivemos uma discussão finalmente definida em Belo Horizonte, numa reunião ministerial em 1997, nos seguintes termos: a negociação da Alca é apenas uma negociação de zona de livre comércio; dentro do continente americano, particularmente sul-americano, há instituições regionais, tais como o Mercosul, a Comunidade Andina, que devem ter sua vida preservada. Obviamente, se um dia tivermos uma zona de livre comércio que inclua 100% dos produtos, no período final de eliminação de tarifas ou de restrições não-tarifárias, haverá uma diluição geral em relação ao Mercosul. Este não será mais uma zona de livre comércio separada, mas integrada ao resto das outras duas Américas - vamos chamar assim. Mas, em Belo Horizonte, ficou definido que todos aqueles aspectos que ultrapassam o livre comércio - como são a união aduaneira, as coordenações de políticas setoriais, macroeconômicas, culturais em toda a sua expressão e políticas políticas, digamos assim, hoje consagradas na cláusula democrática do Mercosul -, tudo isso sobreviveria e sobreviverá a uma negociação de uma zona de livre comércio.
Esses resultados não teriam sido possíveis, se não tivesse havido essa coalizão, essa unidade do Mercosul.
Muito bem, evidentemente, os riscos são grandes. Conhecemos as nossas dificuldades, conhecemos as nossas fragilidades. A economia brasileira não superou algumas importantes dificuldades de competitividade, razão pela qual aceita e busca proteção temporária, num prazo dilatado, dentro do Mercosul, através da tarifa externa comum, e, fora do Mercosul, com cautelas muito grandes em relação a um desmantelamento de barreiras de uma parte e de outra.
Agora vou terminar — e já falei quase vinte minutos - com um comentário que me parece o mais relevante para o debate de hoje. A opção que o Brasil tem — se é que tem — de estar ou não estar participando na negociação da Alca.
A posição não só do Governo brasileiro — e, obviamente, aqui tenho total tranqüilidade de falar da minha posição também - é expressa em simples palavras: o mundo não é o Brasil separado do resto, nem do continente, nem dos seus vizinhos e muito menos de outros continentes.
Uma atitude de retraimento e de saída da Alca, pelos riscos envolvidos, a meu juízo, acrescenta dramaticamente riscos para o Brasil. Sair da Alca significa não estar lá para defender os nossos interesses; não estar lá para cortar possíveis esforços e certos esforços, certeiros esforços, de uma dominação comercial por parte de parceiros que bem conhecemos.
Não estar na briga porque há risco de se machucar, acho que é realmente um convite a que se agravem as nossas preocupações.
Vou entrar em um terreno aqui perigoso, que é o do futebol. Um pouco antes do jogo com a Argentina, o Felipão falou que, se ele tivesse certeza de que seria um a um, ele nem colocaria o time em campo.
Hoje, infelizmente, o nosso futebol não é o primeiro mais importante do mundo. A opção seria: bom, então não vamos à Copa do Mundo, porque se podemos perder, melhor não entrarmos no jogo!
Comparando um pouco com essa situação futebolística, eu diria que estamos diante de uma alternativa que eu vejo que não existe, não é alternativa. Sair da Alca é um mau negócio para o Brasil.
Farei dois comentários adicionais a isso. Com toda a liberdade com que estamos conversando aqui, sobretudo diante dos meus colegas das Embaixadas da Argentina e do Uruguai — estou falando do Mercosul — tenho um comentário a fazer que, depois, se quiserem, podem me desdizer à vontade. Estamos aqui para um debate e não só para defender idéias que não estejam sujeitas a comentários. Se o Brasil se retirar da Alca, esses países não se retiram. Aí sim é o fim do Mercosul.
De maneira que, defender a saída do Brasil da Alca como uma maneira de reforçar o Mercosul, é uma contradição. Ao sairmos da Alca, certamente não seremos seguidos pelos três parceiros que nos acompanham. Se isso é bom ou ruim, é outro problema. Mas não nos iludamos: não existe a possibilidade de que os três países saiam da Alca porque o Brasil saiu.
O último comentário é o seguinte: o Brasil sair da Alca é tudo que o americano quer, exatamente pelas conseqüências que sobre o plano regional. É tudo que o americano quer, porque ele terá nenhuma resistência para fazer prevalecer seus interesses. Não os critico. Todo país tem que defender seus interesses comerciais. Eles têm um poder enorme. Eles estarão comemorando a saída do Brasil do debate da Alca.
É a palavra final nesta minha primeira intervenção.
Muito obrigado, Senador.
O SR. PRESIDENTE (Roberto Requião) — Este debate, esta audiência pública está sendo gravado em videoteipe. O vídeo será oferecido aos Senadores participantes e instituições da sociedade civil dos Estados brasileiros que assim o desejarem: associações comerciais, federações das indústrias etc.
O debate se dará depois da intervenção do Embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, ao qual passo a palavra.
O SR. SAMUEL PINHEIRO GUIMARÃES — Obrigado, Senador Requião, agradeço muito o convite para participar desta audiência pública. E queria agradecer muito a presença das Srªs e dos Srs. Senadores, dos Srs. Embaixadores estrangeiros, dos diplomatas estrangeiros. Eu queria dizer-lhes primeiro que, naturalmente, a minha opinião é estritamente pessoal, por razões óbvias.
Segundo, eu queria comentar alguns aspectos da questão do Mercosul e da Alca, examiná-los um por um, porque são os que vêm sendo objeto do debate sobre esse tema. Vou enumerar e depois vou comentar esses pontos, esses temas.
O primeiro deles é que participar da Alca é essencial para participar da economia mundial, do comércio internacional, nesse mundo novo e global que existe, que se manifesta. Eu queria dizer que os Estados Unidos e o Japão não têm uma área de livre comércio entre si e têm um comércio intensíssimo. A Europa e os Estados Unidos não têm um acordo de livre comércio entre si e têm um comércio intensíssimo, fluxos de investimento muito intensos. E, assim por diante, inúmeros países. O Japão não tem uma área de livre comércio com a Europa e eles têm um comércio muito intenso. A China também não tem uma área de livre comércio com os Estados Unidos e tem um comércio intensíssimo com ele, talvez seja um dos principais parceiros comerciais daquele país. De modo que acho que esse primeiro argumento não resiste ao exame da economia mundial e dos fatos que são conhecidos.
Portanto, o Brasil pode perfeitamente participar da economia mundial com muito proveito, ter relações muito proveitosas com os Estados Unidos, como tem até hoje. Não tem uma área de livre comércio com os Estados Unidos mas tem relações comerciais muito proveitosas. Aliás, os Estados Unidos têm relações muito proveitosas com o Brasil, por que têm um superávit com o Brasil importante, que já chegou a valores muito significativos no passado recente. Essa é uma das premissas e acho que esse comentário é o que posso fazer, podendo até me estender mais.
O segundo comentário é que a Alca é um acordo que tem sido examinado na imprensa, nos debates, como um acordo essencialmente comercial, sobre oportunidades de comércio, de acesso ao mercado americano, de acesso até mesmo, às vezes comentam, a investimentos estrangeiros, que facilitaria. E eu queria dizer que o importante realmente não é isso. O importante é que, caso venha a ser assinado um tratado de livre comércio com os Estados Unidos, com essas características que vêm sendo examinadas nas negociações da Alca — além de se estender para áreas que não são de comércio, são áreas relativas a investimentos, propriedade intelectual, compras governamentais, e assim por diante —, o que ocorre é que, no final do processo, o Brasil não poderá mais ter política comercial em relação aos Estados Unidos, por uma razão óbvia. Não poderá ter nem barreiras tarifárias nem não tarifárias — no final do processo. Não poderá, portanto, ter política industrial digna desse nome, nem política tecnológica.
Depois podemos até examinar os detalhes disso, mas política comercial depende, em grande medida, para um país subdesenvolvido como o Brasil, da possibilidade de usar suas tarifas para defender certos setores, como os Estados Unidos fizeram para que a sua indústria automobilística sobrevivesse à invasão de carros japoneses, como fazem hoje para proteger as suas usinas siderúrgicas no Oregon, e assim por diante. Não poderá ter. Não existe política industrial sem política comercial, porque se o mercado é totalmente aberto, não há como estimular novos investimentos.
O Ministro Sérgio Amaral, recentemente, disse que há um déficit comercial muito grande nos segmentos de química, petroquímica, bens de capital e eletroeletrônicos, e que ele está empenhado em desenvolver uma política industrial articulada em políticas públicas.
O objetivo é trabalhar para substituir importações, atrair investimentos internos e externos. Quem vai fazer investimento em áreas novas, diante da competição das megaempresas americanas? No caso da Alca, quem? Quem vai instalar a fábrica de componentes eletrônicos no Brasil diante das grandes empresas já instaladas no mundo, com economias de escala, com grande dinamismo tecnológico, com grande acesso a crédito — que não é de 19% ao ano ou mais? Quem? Dificilmente alguém o fará.
Também não será necessário que haja política tecnológica, pelo menos na área industrial, porque a política tecnológica pressupõe existência de um setor industrial muito dinâmico e de uma indústria de bens de capital muito dinâmica para poder absorver fluxo de inovações tecnológicas que ingressa na economia por meio do esforço e da pesquisa científica e tecnológica — principalmente tecnológica.
A questão básica não é ter tarifas básicas, não é usar estímulos para o comércio internacional, nada disso. A questão é não poder ter os instrumentos básicos de política comercial, portanto, de política industrial.
A outra premissa de debate refere-se ao fato de a economia brasileira ser altamente competitiva com a economia americana — a maior economia do mundo, de longe. Quando vimos a lista das maiores empresas do mundo, publicada na revista Fortune, encontramos um número muito grande de empresas americanas, japonesas e européias — creio que há uma brasileira: a Petrobras. Ora, abolição das barreiras ao comércio significa que as empresas brasileiras se confrontarão com essas empresas. O grau de dinamismo das empresas brasileiras e estrangeiras instaladas no País — não só brasileiras, mas estrangeiras — pode ser medido pela dificuldade enorme de expandir nossas exportações, de conquistar novos mercados.
Tivemos experiências recentes com a chamada abertura unilateral, na época aliás muito elogiada e que virou radical e intempestiva hoje. Na época, foi muito elogiada. Suas conseqüências foram um processo grande de desnacionalização, com reflexos nos balanços de pagamentos, e um processo de regressão industrial na economia brasileira. Podemos imaginar o que ocorrerá no caso de uma abertura total e definitiva — se tudo desse certo.
A premissa de que a economia brasileira seja competitiva com a economia americana faz com que a economia brasileira seja altamente desenvolvida, o que obviamente não é. Se até os europeus e japoneses têm receio de abrir certos setores para as grandes empresas, para as megaempresas americanas, como vamos ter tanta coragem?
O comércio exterior é extremamente importante para qualquer estratégia de desenvolvimento, seja ela capitalista, socialista ou comunista. Em qualquer estratégia de desenvolvimento, no caso do Brasil, o comércio exterior é essencial, assim como o acesso à poupança estrangeira. Uma coisa é o comércio exterior, outra coisa é o livre comércio, sem nenhuma barreira, permanente.
Não se pode achar que a economia brasileira é competitiva, diante das dificuldades de infra-estrutura, da escassa geração de inovações tecnológicas.
No ano de 1999, as empresas americanas pediram registro, na Organização Mundial da Propriedade Intelectual, de 29 mil patentes. As empresas brasileiras apresentam 120 pedidos de patentes. No ano de 2000, as empresas americanas apresentaram 39 mil pedidos de patentes. As empresas brasileiras, 160. Isso é o cerne da competitividade. É a inovação tecnológica que reduz custos de produção e que gera novos produtos. É algo extraordinário.
Também, a não ser que contrariemos todas as estatísticas internacionais, pensar que a economia brasileira é competitiva com a economia americana contraria todas as estatísticas internacionais, todas: do Banco Mundial, que não classifica o Brasil como potência altamente desenvolvida, da Cepal, do Fundo Monetário, do PNUD, de quem quiser. Qualquer economista, de qualquer país, sabe que o Brasil tem uma economia semi-industrializada, certamente não no mesmo nível daquela dos Estados Unidos.
Queria fazer dois comentários sobre dois outros temas. Que o Mercosul resistiria à Alca. Aliás, como o Embaixador Botafogo já comentou, no momento em que forem eliminar todas as barreiras tarifárias e não-tarifárias no âmbito da Alca, obviamente, para os Estados Unidos e para o Canadá e demais países das Américas, o Mercosul deixou de existir do ponto de vista comercial. Totalmente, por não haver mais barreiras ao comércio, nem barreiras tarifárias e não-tarifárias. Deixou de existir.
Isso resiste à coordenação de políticas macroeconômicas. Há uma dificuldade muito grande, pelo menos em alguns países do Mercosul, mas certamente no Brasil, em coordenar internamente as suas políticas macroeconômicas — internamente -, quanto mais coordenar com outros países que têm ciclos econômicos em etapas diferentes. É um objetivo que vem sendo tentado e tem-se revelado extremamente difícil. Por exemplo, coordenar a política cambial. A política cambial dos quatro países do Mercosul é totalmente distinta. É a política cambial essencial, inclusive para a política comercial.
E a política tributária, depois de a reforma tributária ser feita no Brasil? Se temos dificuldade em fazer a própria reforma tributária, fazer uma política tributária comum com mais outros três países que têm estruturas econômicas profundamente distintas da estrutura econômica brasileira?!
A política cultural. Se ligarmos o rádio hoje, quanto tangos ouviremos? Quantos? Acredito que nenhum tango. Entendo ser extremamente ilusório pensar que o Mercosul, que é essencialmente uma área de comércio neo-adunaneira, sobreviverá à Alca. Se naturalmente for feito um acordo com a União Européia, a tarifa externa comum também deixa de existir em relação à União Européia. Portanto, a União Européia passa a fazer parte do Mercosul, que rapidamente se dissolverá se todas essas iniciativas negociadoras chegarem ao fim. É preciso ter muita clareza quanto a isso. É o que vai, na minha opinião, ocorrer.
Desejo fazer outros dois comentários, rapidamente, sobre a questão da inevitabilidade das negociações da Alca. Sinceramente, não acredito que nenhuma negociação seja inevitável, principalmente quando o seu resultado final, ainda que possa ter aparências ligeiramente distintas, pode ser pior ou melhor, mas quando o seu resultado final será negativo. Então, ela é, na minha opinião pessoal, inconveniente.
Temo muito pela estratégia americana. Acho também que apesar dos princípios do single undertaking ser um princípio absolutamente correto, temo muito que nesse processo os Estados Unidos negociem com países isolados, como já ofereceram ao Chile a negociação, já está em curso essa negociação, e poderão negociar com outros.
Como os Estados Unidos já declararam que não pretendem negociar os temas agrícolas, simplesmente. Não pretendem negociar a sua legislação de proteção industrial, que é a legislação antidumping, e a de subsídios. Não pretendem negociar. Então, é muito provável perceber, desde já, que a negociação será desequilibrada. Se eles não negociarão esses temas, como vêm declarando sucessivamente, várias vezes...
O Congresso americano, recentemente, aprovou uma legislação agrícola que, se não me engano, tem vigência até 2011, com volumes gigantescos de recursos que vão, naturalmente, de encontro ao anseio de setores privados que desejam receber essa transferência de recursos.
Temo muito, senhores, o seguinte cenário: participarmos das negociações, chegarmos a certos grupos em que há acordos, os Estados Unidos continuando sem autorização para negociar, pois não precisam, podem ter a partir dos resultados que alcançarem. Vamos supor que o texto a que se chegar na área de investimentos seja conveniente para os Estados Unidos, de liberdade de movimentos dos investimentos tirados. Em propriedade intelectual, idem, que são os setores que têm maior interesse. Eles poderão levar esses textos ao Congresso americano e obter uma autorização para assinar aqueles tratados já negociados, voltar para os demais países e dizer: já conseguimos isso. Podem colocar para aprovação dos países e vir a ser aprovado, aos poucos, por alguns países, simplesmente. Ou, então, negociar isoladamente, tentar alguns países com negociação isolada, como o Chile e outros países. Acho que seria muito difícil segurar qualquer país das Américas diante de uma proposta de acordo específico de uma determinada área.
Queria fazer um comentário sobre a questão de ficar ou não de fora, se vamos ficar de fora do mercado americano ou dos demais países da América do Sul ou da América Central. Os Estados das Américas têm uma estrutura, o Brasil é um dos maiores parques industriais do mundo, dos mais sofisticados, mais avançados, e assim por diante. Situa-se entre os dez maiores. A maior parte dos países das Américas, a América Central, por exemplo, o Caribe, são países com estruturas industriais muito menos sofisticadas, que não competem com o Brasil no mercado americano, ou, quando competem, são com produtos que nós não produzimos. A Venezuela, por exemplo, o maior fornecedor individual, exporta petróleo para os Estados Unidos. O Brasil é um exportador eventual de pequenas quantidades de petróleo, e assim por diante. Certamente, não vamos exportar trigo para os Estados Unidos, acredito que, dificilmente, soja. A produção americana de soja do ano passado foi de 98 milhões toneladas. A produção brasileira de grãos prevista para este ano é de noventa e poucos milhões.
Então, estamos tratando de dimensões muito distintas, muito assimétricas e cujos resultados podem ser extremamente prejudiciais ao processo de desenvolvimento econômico do Brasil. Nada impede que o Brasil, por exemplo, para assegurar o seu acesso aos mercados da América do Sul ou da América Central, supondo que cada um desses negociasse um acordo de livre comércio com os Estados Unidos, que o Brasil também negociasse com esses países acordo de livre comércio, nada impediria... Tenho certeza de que a maior parte dos países da América de Sul, que vêem o mercado brasileiro com grande interesse, porque é um mercado tradicional, certamente assinariam conosco acordos de livre comércio, e nós teríamos defendido a nossa participação nesses mercados dos demais países.
Penso que o Brasil só não deve ficar isolado dos seus interesses de longo prazo porque isso é muito perigoso. E vou dizer por quê. Na minha opinião, o Brasil se caracteriza por dois aspectos: as extraordinárias disparidades sociais — de riqueza, de renda, de cultura, de acesso à tecnologia, de poder político, e assim por diante. De outro lado, a vulnerabilidade externa cada vez mais acentuada. Em ambos os casos, vamos ter necessidade de que a coletividade, por meio do Estado, desenvolva políticas ativas para tentar corrigir as disparidades e reduzir a vulnerabilidade. Na era da vulnerabilidade externa econômica, sem entrar na militar, na política, é indispensável uma política comercial ativa.
Como gerar o superavit que todos consideram necessário senão mediante uma política comercial de promoção ativa das exportações, como se pretende, de administração das importações e do incentivo ao desenvolvimento dos setores industriais ainda não existentes, ou que deveriam existir? No caso das disparidades sociais é a mesma coisa: como prover emprego para 50 milhões de pessoas que ganham hoje em dia menos de 80 reais por mês, sem a intervenção da coletividade através do estado? Essas pessoas alcançarão emprego no setor privado? Elas têm condições de treinamento, qualificação da mão-de-obra? Certamente não.
O problema é que o Estado brasileiro, a sociedade brasileira necessita de instrumentos de política econômica. Isso não quer dizer fechar o País, evitar investimentos, nada disso. A China é o país que mais recebe investimentos no mundo, é um país comunista acusado de infrações graves aos direitos humanos, que administra a entrada dos capitais estrangeiros e os orienta para os setores que interessam.
Na minha opinião, um dos grandes e graves problemas de balanço de pagamentos já estamos enfrentando é o ingresso indiscriminado de capitais estrangeiros em setores que não geram exportações, mas que demandam importações. Um dos caos específicos é a área de telecomunicações, cujo déficit comercial é gigantesco e será ainda maior.
Administração prudente, adequada dos investimentos estrangeiros, é indispensável, num país subdesenvolvido. Mesmo nos Estados Unidos, há uma certa administração do ingresso de capitais estrangeiros em áreas estratégicas. Não é possível entrar em qualquer área, algumas são reservadas. A mesma coisa ocorre em outros estados altamente desenvolvidos e capitalistas.
Essa é uma necessidade indispensável, não podemos abrir mão da capacidade de fazer a política econômica, porque política econômica é o conjunto dessas políticas: é a política comercial, é a política industrial, política tecnológica, e assim por diante.
É uma ilusão muito grande julgar com a ALCA que os investimentos aumentariam em direção ao Brasil. Em qualquer área de livre comércio, há uma tendência à concentração de investimentos nas áreas mais dinâmicas. Na ALCA, os Estados Unidos são de cerca de 80% do PIB, de longe a área mais dinâmica. Não precisamos pensar duas vezes. Não havendo barreiras ao comércio, a probabilidade muito grande é que as empresas de outros países se instalassem nos Estados Unidos para abastecer o maior mercado e exportar para os outros, o que seria muito provável, inclusive o regresso de capitais estrangeiros hoje investidos no Brasil. Muito provavelmente, poderia haver um fenômeno de regresso para o país de origem, no caso, os Estados Unidos, para racionalizar a sua produção e partir para abastecer o mercado brasileiro a partir de lá. Não havendo barreira nenhuma, não é? Não há por que ter fábricas ineficiente. É possível racionalizar a produção. Então, eu acho que isso é de extraordinária importância. Todos os outros problemas brasileiros não têm data fixa para serem resolvidos. São gravíssimos: a fome, a miséria, os problemas de infra-estrutura. Mas eles não têm data fixa. Essa iniciativa tem uma data fixa, e essa data vai se avizinhando. De modo que eu acho que nós estamos num processo muito grave de vir abdicar da possibilidade de fazer políticas econômicas e essenciais para um país subdesenvolvido. Absolutamente essenciais — também são essenciais para os países desenvolvidos —, mas essenciais para o nosso estágio de desenvolvimento.
De modo que é isso que eu tinha a comentar sobre o tema. Não significa de nenhuma forma que o comércio não seja importante, que os investimentos estrangeiros não sejam importantes, que as relações com os Estados Unidos não sejam importantes. Nada disso, em hipótese alguma. E é importante que elas sejam, inclusive estimuladas, expandidas e diversificadas. Acredito que este não é o melhor instrumento.
Muito obrigado a todos pela atenção.
O SR. PRESIDENTE (Roberto Requião) — Iniciamos os debates. Solicito aos Srs. Deputados e Senadores, que ao iniciarem o debate declinem o seu nome porque esta reunião está sendo gravada e assim nós identificaremos com facilidade os debatedores.
O primeiro inscrito é o Deputado Confúcio Moura.
O SR. CONFÚCIO MOURA — Deputado Confúcio Moura, PMDB do Estado de Rondônia.
Embaixador Botafogo, na viagem que fizemos pela Comissão, no mês de março deste ano, aos Estados Unidos, visitando várias instituições de negócios americanos, em vários locais ouvimos a mesma coisa: o Brasil não pode negociar, não pode querer colocar regras na ALCA se ele não entrar. Para mudar regras tem que jogar primeiro. Entrar no jogo. Então, segundo as exposições feitas por lá, depois que o México participou do Nafta, os valores de volume de mercado aumentaram substancialmente para US$59 bilhões, enquanto o Brasil está estacionado numa cifra que varia de 15 a 19, aproximadamente. E a regra é essa: para falar alguma coisa tem que entrar primeiro, porque senão nem falar pode. Segundo, o Mercosul não pode negociar simultaneamente com os países da União Européia e com os Estados Unidos, com os países do Nafta. E não seria uma ótima alternativa para o Brasil negociar mais com a União Européia exclusivamente. Ou, por último, vai o Brasil ficar realmente, como segundo o Embaixador Samuel falou, livre, fechado: negociar com quem bem possa entender.
Para o Embaixador Samuel, eu gostaria de perguntar o seguinte: a continuar a política do Presidente Fernando Henrique Cardoso, tudo vai ficar como está indo: realmente entrar na ALCA. Toda ambiência é nesse sentido. Mas se vier um Presidente diferente, por exemplo, o Lula ou Itamar, é possível que o pensamento de V. Exª seja atendido, pleiteado o que V. Exª defende. E nós não vemos a participação do Congresso Nacional, assim, ter influências num presidencialismo tão forte, como é o presidencialismo brasileiro, que trabalha com instrumentos legais muito fortes para decidir só. O que nos resta é debater, fazer oposição, mas, circunstancialmente, alguns detalhes e algumas vírgulas nós podemos, de fato, acrescentar a esse processo.
Observamos também que o Brasil é bem rico — as suas universidades e os seus institutos de pesquisa — na pesquisa básica. Realmente, há valorosos cientistas brasileiros na pesquisa básica. Mas entre pesquisar, saber o que se deve fazer e dar um passo a frente no processo de desenvolvimento industrial é que está o grande gargalo da política brasileira: não conseguir jogar os instrumentos de pensamento dos nossos institutos de pesquisa na questão da industrialização. Seria preciso, realmente, alargar um pouco essa ponte, porque o mesmo ator — o cientista — não dá conta de ser empresário. Dificilmente dá. Então, o Poder Público teria que, pelos seus instrumentos de crédito e incentivo, facilitar para que houvesse mais progresso nesse campo.
Vejo que o Mercosul está profundamente nocauteado devido às terríveis desigualdades existentes entre os países próximos. Não sei se, agora, ampliando mais o leque dos países-membros, com a Bolívia e o Chile, e havendo outros pretendentes, como Venezuela, Colômbia e outros mais, não aumentaríamos muito apenas o mercado comum de miséria ou de problemas. Talvez fosse um bom exercício nos limitarmos exclusivamente aos que aí estão para que nós, de fato, pudéssemos aprender, errando e sofrendo, para dar um passo à frente.
O SR. PRESIDENTE (Roberto Requião) — Sr. Senador, ou melhor, Sr. Embaixador Botafogo Gonçalves.
O SR. JOSÉ BOTAFOGO GONÇALVES - Não tenho essa pretensão.
O SR. PRESIDENTE (Roberto Requião) - Não sei se S. Exª foi promovido ou rebaixado. Nas atuais circunstâncias do Congresso, S. Exª foi rebaixado. Então, temos que pedir desculpas, Sr. Embaixador.
O SR. JOSÉ BOTAFOGO GONÇALVES — Pelo contrário, sinto-me muito honrado, embora esse qualificativo não caiba para mim.
Eu queria abordar a pergunta de V. Exª. Quanto à primeira, foi aquilo que expus inicialmente: é melhor estar dentro do jogo para poder controlá-lo, com as limitações que todos nós conhecemos, do que estar fora do jogo. Não vejo alternativa possível. Não vejo como nos confortarmos estando fora do jogo. Isso exigiria uma explicação maior, que mencionarei em seguida.
Mas quero já abordar a segunda observação, que é sobre a negociação com a União Européia. Nós estamos negociando com a União Européia. Com a União Européia há um calendário negociador mais claramente definido do que com a Alca, por uma razão muito simples: a comissão que representa a União Européia — Bruxelas — tem um mandato. Usando a mesma expressão dos Estados Unidos, tem um fast track.
A Europa, então, está com um mandato, jogou esse mandato na mesa e, sobre esse mandato, já fez um papel, que foi apresentado há alguns meses — há talvez uns dois meses — em Montevidéu. E o Mercosul comprometeu-se a apresentar o seu papel até 31 de outubro, em Bruxelas. A proposta da União Européia é modesta, está cercada de ressalvas, de exclusões, de medidas restritivas, particularmente na área agrícola, onde somos mais competitivos, mas também na área industrial. Existem truques em todos os lados. Nós vamos apresentar uma proposta que é equivalente em termos de ressalvas, e, a partir desse jogo, em 31 de outubro, começaremos então a discutir, concretamente, a negociação comercial propriamente dita.
Esse estágio ainda não foi alcançado na Alca. Na Alca ainda estamos no exame dos documentos, dos critérios e dos setores específicos, mas ainda não há uma negociação comercial em curso. Há uma data, sem dúvida alguma, que é 1º de janeiro de 2005, para a assinatura do acordo, e 31 de dezembro para a entrada em vigor do processo de liberalização. Mas o que paira de dúvida sobre a Alca ainda é pendente, exclusivamente, do lado norte-americano, que não está conseguindo obter esse mandato. Então há uma diferença de procedimento e de capacidade negociadora da União Européia. Sem dúvida que uma negociação com a União Européia envolve riscos semelhantes. Penso que este é o único ponto em que concordo com o meu querido amigo Samuel de que realmente há uma semelhança, não do ponto de vista político. Neste ponto a diferença é extraordinária. Penso que politicamente negociar um acordo com a União Européia tem um peso e uma adesão da sociedade brasileira e do Mercosul porque representa um contrapeso a uma excessiva dominância norte-americana. Mas, do ponto de vista comercial, envolve risco, uma vez que envolve redução de tarifas, abertura de mercados, como também, supomos, envolve a contrapartida européia de abertura de mercado. Vamos portanto cumprir essa tarefa.
Que só faça isso exclusivamente com a União Européia não me parece uma medida razoável. O comércio exterior brasileiro e o Mercosul não estão muito diferentes na sua estrutura global, mas vamos falar aqui do Brasil. O comércio exterior brasileiro tem uma razoável distribuição de destinos e de procedência das importações. Não tomemos cifras de um ano ou de outro porque há variações muito importantes no fluxo de importação num período de dois ou três anos. Mas, de modo geral, se tomamos uma série estatística um pouco mais larga, veremos que consistentemente o Governo brasileiro, os operadores, indústrias comerciais brasileiras e empresas conseguiram diversificar o destino e a origem de suas importações numa estrutura que hoje, grosso modo, deixando de lado variações conjunturais, dá 25% na América do Norte, um pouco mais com a União Européia, nosso principal parceiro, e uma porção significativa, 20% talvez, dentro do Mercosul, um fenômeno novo.
Quando assinamos em Ouro Preto a participação do comércio intraMercosul no comércio global era desprezível, num nível de 5 a 20 e poucos bilhões e depois, com a crise de 99, houve uma queda com uma pequena recuperação no ano de 2000 e agora está tudo programado por causa da crise conjuntural argentina.
Mas devemos procurar diversificar e não concentrar. Assim, não vamos nos entregar só ao comércio com a Europa. Temos oportunidades, e muitas, no comércio com os Estados Unidos. Mas temos também com a comunidade andina, com os outros países da América do Sul oportunidades significativas. Não serão da dimensão imaginada de um comércio importador do grande mercado americano ou europeu, mas tem significação. Podemos e devemos diversificar em relação à Ásia. Creio que muito brevemente estaremos vendo negociações se intensificando com a Índia e com a China. Foi mencionado aqui de modo correto, se bem que no caso da China convém questionar, com toda manipulação que se faz da política comercial e industrial chinesa, pois é curioso que a China esteja batalhando para entrar na Organização Mundial de Comércio, uma organização para liberar ou reduzir comércio. Então essa vocação isolacionista ou independente chinesa não parece estar sendo tão cuidada pelos próprios chineses, uma vez que querem fazer acordos. O próprio Japão hoje já começa a fazer acordos bilaterais, um país que, como segunda economia do mundo, poderia prescindir desses entendimentos. No entanto, o Japão está mudando a sua política, está começando a considerar a hipótese de fazer acordos de livre comércio com outros países, tanto que está pensando em fazer um com Cingapura.
Com essas considerações busco responder a sua pergunta. Mas eu queria falar especificamente do Norte do País. Temos recebido indicações não só de executivos estaduais do Norte, empresários que vêem, na abertura de um mercado a norte do Equador, grande interesse para essas economias que ficaram sempre marginalizadas em relação a São Paulo, ao Brasil rico, digamos assim, ou até ao imperialismo paulista de que tanto se fala. Realmente a mudança de logística está ocorrendo na Região Norte, não só em Manaus, mas na rodovia que vai para a Venezuela. São mudanças de logística e programas de infra-estrutura que agora estão começando a ser articulados, por iniciativa, no ano passado, do Presidente, quando convocou a reunião dos Presidentes da América do Sul. O BID, a CAF, o BNDES, o Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão estão envolvidos nessa questão. Isso muda profundamente a estrutura logística da Região Norte, que antes estava isolada. Para isso, poderemos ter a ajuda dos acordos de livre comércio que venhamos a fazer com a comunidade andina. Creio que a expansão desses acordos não se faz em detrimento da economia brasileira — muito pelo contrário, isso se dá no sentido do apoio.
Só para terminar esta minha primeira intervenção, eu queria dizer que o meu amigo Samuel fez uma série de premissas e que todos sabemos — não é preciso ter estudado Lógica — que, se se concorda com a premissa, a conclusão é inevitável. O que se questionam são as premissas. E as premissas que ele pôs sobre a mesa, de modo geral, são de dois grupos. Uma delas é relativa ao próprio poderio norte-americano. Ele faz uma presunção — que é uma premissa — de que os documentos e a negociação final da Alca irão ao encontro da absoluta vitória norte-americana, em todos os campos. Se assim é, evidentemente a solução será catastrófica. E qual é a maneira de evitar que todas as questões que estão sendo postas sobre a mesa — e certamente estarão, porque o americano não brinca em serviço — não sejam solucionadas? É estar presente na negociação.
O segundo grupo de premissas que ele apresentou diz respeito à inabilidade ou à incapacidade de o Brasil ter políticas coordenadas com o Mercosul. Isso é verdade; estamos muito atrasados. Não temos ainda a coordenação macroeconômica e a coordenação tributária, estamos pelejando com perfurações na tarifa externa comum e estamos, certamente, em uma crise no Mercosul. Se partirmos da premissa de que não há a menor possibilidade de fazer nada, de que somos tão desorganizados dentro do Brasil, de que somos tão fracos para poder coordenar 27 países na política tributária, será melhor abandonar o Mercosul. Então, sejamos lógicos com a premissa. Não é possível sustentar que o Mercosul precisa ser reforçado e, ao mesmo tempo, reconhecer que todas as falhas de integração no Mercosul não são superáveis porque nós, no Brasil, estamos inteiramente entregues a uma desordem que não nos permite negociar.
Concordo com o fato de que qualquer país, desenvolvido ou em desenvolvimento, precisa ter uma política comercial e uma política industrial. Dizer que essa política industrial e comercial não vai ocorrer por um acordo de livre comércio é também uma premissa falsa. Onde há políticas de livre comércio, onde há acordo de livre comércio — não é o caso ocorrido entre a Europa, o Japão e os Estados Unidos, em que não há acordo de livre comércio —, há tarifas baixíssimas, praticamente irrelevantes. E creio que ninguém pode dizer que, nos Estados Unidos, na Europa e no Japão, não exista política comercial ou política industrial.
O caso mais típico é o caso do México, que tem um acordo de livre comércio no Nafta — portanto, está ali na "toca do leão" — e é um país que continua tendo uma fortíssima política industrial e uma política comercial, independentemente do fato de as tarifas intra-Nafta terem praticamente desaparecido.
Portanto, a ligação entre um acordo de livre comércio e o desaparecimento de instrumentos de política comercial e de política industrial não está provada. Pelo contrário, os fatos provam que é possível haver política industrial e comercial mesmo dentro de um contexto liberalizante.
Essa é a observação que eu gostaria de fazer.
O SR. PRESIDENTE (Roberto Requião) — Concedo a palavra ao Embaixador Samuel Pinheiro Guimarães.
O SR. SAMUEL PINHEIRO GUIMARÃES — Creio que o Deputado Confúcio Moura havia perguntado se, a continuar o atual Governo, tudo continuaria como está, em direção à Alca, nesse caminho. Indagou-me sobre o que penso que poderia vir a ser atendido se houvesse uma mudança. Espero que venha a ser atendido muito antes, não necessariamente com a mudança de governo. Creio que não se trata disso. Não estou aqui defendendo de nenhuma forma mudança de um governo ou de outro. Estou apenas argumentando com relação aos interesses maiores da sociedade brasileira dentro das suas características.
Foi até mencionado que temos um presidencialismo muito forte e que o Congresso apenas pode dar um palpite ou outro. Isso é uma situação lastimável, porque reforça muito a capacidade negociadora americana, a participação ativa do congresso americano nas negociações, nas condições de negociação que estabelece ou autoriza o Executivo a negociar acordos internacionais.
Por outro lado, como o senhor já mencionou rapidamente as dificuldades da ciência e tecnologia no Brasil, queria dizer que um número grande de empresas com sede no Brasil fazem programas extraordinários na área de tecnologia. A Volkswagen do Brasil tem um programa extraordinário de desenvolvimento tecnológico. A Basf e as grandes empresas multinacionais com sede aqui têm, realizam. Hoje em dia, por exemplo, a Telefónica tem programas extraordinários, só que são feitos alhures.
De modo que a integração da tecnologia com a estrutura industrial depende muito, na minha opinião, do capital da empresa. No caso brasileiro, tivemos um êxito extraordinário, por exemplo, no caso da pesquisa de perfuração de petróleo em águas profundas, no caso da indústria aeronáutica, no caso da mineração ou no caso da agricultura em geral, que tem o exemplo notável da Embrapa. Tivemos êxito em setores onde havia interesses nacionais fortes na realização de pesquisa. O Brasil saiu da produção de cerca de cinco mil barris de petróleo por dia em 1955 e, hoje, produz mais de um milhão e meio, usando tecnologia que é de propriedade brasileira, o que prova a capacidade do sistema, desde que haja interesse em que isso ocorra.
No caso das telecomunicações, o centro de CPqD, que era um centro de grande eficiência nessa área, mostra essa possibilidade.
Havia sido mencionado também a questão de o Mercosul vir a ser nocauteado e se nós estaríamos agregando mais ao mercado comum de problemas e não de soluções. Vou dizer algo aqui: quando trabalhei no início desse projeto, sempre considerei que havia simetrias muito fortes entre os países-membros do Mercosul e que a existência de uma simples área de união aduaneira, como a área de livre comércio entre os países membros, poderia levar a desequilíbrios muito expressivos e que era necessário ter mecanismos de compensação e evitar sistemas de desgravação automática, rápida, linear e, na minha opinião, equivocada. Era necessário ter mecanismos de compensação. E havia no início. Mais tarde, quando houve o Tratado de Assunção - o projeto do Mercosul se adapta às políticas econômicas gerais -, ele passou pela mesma tabela de redução tarifária que tinha na tabela brasileira de redução tarifária em geral. Mudou de espírito. Passou a ser um projeto de integração neoliberal, aberto, sem nenhuma intervenção, porque tudo iria se resolver. Removidas as barreiras, os setores que se prejudicassem se prejudicaram em nome da integração, objetivo maior.
Não é bem assim na realidade, porque os setores em cada país têm a sua representação política, e ninguém, em nenhum país, assiste impassível se um setor qualquer da sua economia de repente começar a ter problemas sérios. É preciso ter mecanismos de compensação e de adequação.
Eu queria fazer um comentário sobre as minhas premissas, já que o Embaixador Botafogo tão gentilmente classificou-as e dividiu-as em dois grupos. O problema é: Como ter uma Alca diferente do Nafta, para os Estados Unidos, para o Canadá e para o México? Como tê-la diferente? Isso é extremamente difícil. Como dar um tratamento em relação ao Canadá e ao México diferente do que daria ao Brasil. Inclusive, de acordo com os negociadores americanos originais, que já declararam diversas vezes, eles querem um Nafta plus, não um NAFTA menos.
Se é verdade que o México aumentou suas exportações de forma muito significativa, é porque já tinha, antes do Nafta, 66% do comércio exterior com os Estados Unidos, assim como o Canadá também. Aquilo veio a consolidar uma situação, que não vamos reproduzir. Quero ser enfático: não temos fronteira com os Estados Unidos; não temos oportunidade de colocar maquiladoras do outro lado da rua. Pensar que alguém, podendo instalar-se no México, vem instalar-se no Brasil, a fim de exportar para o mercado americano, só se for um produto muito específico, que só existe no Brasil, quer dizer, que as condições sejam de tal natureza. Não se trata de um produto de montagem, digamos, industrial. Isso não pode existir.
O México tem vivido situações econômicas muito difíceis na área de fronteira — de degradação ambiental, de desrespeito à legislação trabalhista; isso é muito grave. Se as exportações mexicanas aumentaram, as importações aumentaram mais ainda. É claro que quando se tem um fronteira em que os produtos vão e voltam, vão para lá desmontados e voltam montados — se pego esta caneta, passo para lá e registro como exportação e, depois, registro como importação, o comércio ... O problema é a agregação de valor
A eficiência da economia mexicana não se revela, porque as suas exportações em relação a outros países não aumentou significativamente. Ela está, hoje em dia, a cerca de 90% do comércio exterior mexicano. Esse é um grau de dependência absolutamente perigoso e arriscado, porque fica dependendo das situações da economia americana. Acredito que isso não seja propriamente o caso.
Quanto ao fato de haver tarifas baixas, na minha opinião, o que havia dito era a impossibilidade de ter tarifa definida por tratado. Os Estados Unidos, inclusive, têm tarifas muito altas, em muitos casos, e, só em pensar no setor agrícola europeu, mas há muitos outros setores em que há tarifas altas.
Há muitos setores em que há escalada tarifária, onde, por exemplo, a soja em grão não paga tarifa, a soja em farelo já paga um pouco, o óleo já paga mais, e são produtos que muitas vezes nos interessam.
O problema do comércio é saber se teremos um superávit. A frase correta não é exportar ou morrer, mas ter um superávit ou morrer. Se não houver um superávit, vai morrer. Essa é a diferença enorme. Claro que setores da economia brasileira vão aumentar as suas exportações para os Estados Unidos, pois há empresas competitivas. Quando pegamos a competitividade média de cada setor brasileiro e comparamos com a competitividade média de cada setor americano, a diferença é que eles são duas a três vezes mais competitivos.
Por isso, eles têm empresas megamultinacionais, e nós não temos. Eles foram capazes de se organizarem gerencialmente por vários fatores históricos, e, hoje em dia, operam em todos os países do mundo. Se tivéssemos um grau de competitividade parecido, como os japoneses, cujo PIB é a metade do americano, teríamos grande empresas multinacionais. É muito simples.
É óbvio que empresa estrangeira no Brasil não vai disputar mercado nos Estados Unidos, se não estiver dentro da estratégia da sua sede. Isso não faz sentido, é diferente.
Acredito que essa premissa seja razoável e importante. Não é possível existir política comercial no caso de país subdesenvolvido se não houver a possibilidade de tarifa — em política industrial igualmente se não se dispõe de excesso de capital. Evidentemente, um país com excesso de capital pode fazer a sua política industrial por meio do crédito barato. Ao que me consta, não é o nosso caso. O crédito aqui não é propriamente barato, enquanto o crédito a que as grandes empresas norte-americanas têm acesso oferece taxas de juros muito inferiores.
As condições de competição são de tal natureza que repetiremos a abertura dos anos 90, porém de forma mais ampla e definitiva. Creio que o Brasil deve fortalecer o Mercosul. Há muitos instrumentos para isso. A coordenação macroeconômica é uma ilusão em virtude das condições das economias, mas muito poderia ser feito — como a abertura de fundos para o desenvolvimento científico e tecnológico conjunto e de fundos de reorganização industrial.
Não se deve insistir na tentativa de levar a tarifa zero a setores estratégicos, o que não será possível, já que se esbarra com uma barreira e se cria um antagonismo enorme. Em determinadas regiões, há certos produtos que simplesmente não podem admitir a tarifa porque desaparecem. Isso é muito difícil. Deve haver uma compreensão.
A estratégia de fortalecimento do Mercosul não passa pela coordenação macroeconômica pela simples razão de que, hoje, as políticas macroeconômicas são muito distintas e a grave crise em que estão envolvidos alguns países sócios torna extremamente difícil coordenar as políticas macroeconômicas na minha modesta opinião. Sinceramente, é complicado negociar sabendo que o resultado final provavelmente, ainda que com nuanças, é desfavorável.
Ter uma área de livre comércio do Brasil com a África do Sul é razoável. São países de estrutura industrial semelhante, em que a competitividade das empresas pode até favorecer-nos. Ter uma área de livre comércio com outros países também. Com países muito mais desenvolvidos do que nós em todos os setores, essa área de livre comércio levará provavelmente a um impacto econômico extraordinariamente — serei enfático — negativo. Não há como ter uma área de livre comércio que não seja com tarifa zero. A essência da área de livre comércio é a tarifa zero. Depois, poderemos tratar de outros temas.
O SR. — Os Estados Unidos estão bombardeando o Afeganistão. Está passando na televisão.
O SR. PRESIDENTE (Roberto Requião) — Que tal estabelecer uma área de livre comércio com o Afeganistão? (Risos)
Sr. Embaixador, V. Exª já terminou?
O SR. SAMUEL PINHEIRO GUIMARÂES - Creio que sim.
O SR. PRESIDENTE (Roberto Requião) — Concedo a palavra ao Senador José Fogaça, próximo orador inscrito.
A SRª EMILIA FERNANDES — Sr. Presidente, peço a palavra pela ordem.
O SR. PRESIDENTE (Roberto Requião) — Concedo a palavra a Senadora Emilia Fernandes pela ordem.
A SRª EMILIA FERNANDES — Peço desculpas ao Senador José Fogaça, mas preciso retirar-me, pois tenho um compromisso que já se iniciou às 19 horas. Parece-me que o Embaixador viajaria. Portanto, estamos todos correndo contra o tempo.
Sr. Presidente, ressalto apenas a importância da iniciativa de V. Exª. Estabelece-se, nesta Comissão, um fórum de debates de interesse da sociedade brasileira. Devemos aplaudir e trazer novos temas para constante debate. Duas ilustres pessoas estão aqui dando a sua contribuição com pontos divergentes ou diferentes, mas são assuntos que a sociedade brasileira e até nós mesmos, mais leigos no assunto, às vezes, não temos a profundidade do ponto de vista econômico e da repercussão internacional, inclusive com a própria fragilização do Mercosul.
Cumprimento os dois palestrantes, em especial o nosso novo Presidente e os integrantes da nossa Comissão. Vivemos um momento profundamente delicado, particularmente neste dia de hoje, em relação à questão internacional; a questão do Mercosul, para nós, é fundamental para fortalecimento do nosso País; e a discussão "Ingresso na Alca" ainda tem muitas perguntas que ainda não foram respondidas. Portanto, quero pedir escusas, porque preciso realmente me retirar, vou ler com muita atenção as notas taquigráficas desta nossa reunião, e acredito que este assunto não pode nem deve terminar aqui nesta reunião. Acho que novas reuniões temos que fazer, temos proposições que estão para ser resolvidas no Parlamento, se assim vamos chamar o povo brasileiro para um plebiscito, para dizer se quer ou não ir à Alca; está parado esse projeto; temos a possibilidade de criar uma Comissão Especial para discutir e acompanhar a questão da Alca; e até que ponto nós, Parlamentares, estamos participando, mas participando concretamente, do que está acontecendo entre o Brasil e os Estados Unidos.
Então, parece-me que o ponto que ficou aqui é de profunda reflexão. Quer dizer, se aposta no desmonte do Mercosul, se entra com a fragilidade que o Brasil está apresentando para debater com os Estados Unidos, ou se constrói alguma alternativa e se traz à sociedade, para uma maior compreensão do assunto e das suas conseqüências.
Peço desculpas e me retiro, mas interessada profundamente no assunto, porque acho que é de fundamental importância para o equilíbrio econômico e tecnológico do nosso País. E, desta forma, peço escusas ao Senador José Fogaça, mas até nas próximas reuniões, Sr. Presidente, deixo uma sugestão: que dois ou três Parlamentares façam seus questionamentos e, depois, os palestrantes entrem com as suas argumentações, porque assim há uma maior chance de uma maior participação dos Parlamentares, que têm as suas agendas profundamente complicadas.
Boa-noite e muito obrigada.
O JOSÉ FOGAÇA — Também quero agradecer a presença dos dois Embaixadores, que, de certa forma, representam o que de melhor poderíamos ouvir a respeito das diferentes tendências de pensamento. Não poderíamos ter duas pessoas mais qualificadas para representar as duas linhas de pensamento - diferenciadas, é claro, mas sobretudo preocupadas ambas com o interesse do País.
Mas, desde logo então, quero formular perguntas, fazer questões. Não sei se o Embaixador José Botafogo Gonçalves conseguirá responder. Eu teria uma primeira indagação: S. Exª faz uma afirmação, que considero da maior importância, de que, para o Mercosul, a parte relativa do livre comércio se diluiria no todo da Alca. Na verdade, na medida em que temos também uma zona de livre comércio e uma zona aduaneira, que a isso se acopla, que se sobrepõe a isso, na medida em que haja uma zona de livre comércio que vá da Terra do Fogo até o Alasca, então, evidentemente que o Cone Sul é apenas uma parte dessa zona de livre comércio. O que me preocupa é saber se a zona aduaneira resistirá a essa zona de livre comércio, ou seja, se é possível manter uma tarifa externa comum quando as tarifas médias necessariamente estarão abaixo da nossa tarifa externa comum, que hoje é em torno de 14% ou 15%. As tarifas médias dos Estados Unidos são de 3% ou 4%, e, portanto, não sei como uma tarifa média comum, nesta região especial do mundo, que é o nosso Cone Sul da América Latina, resistiria no tempo contra essa tendência.
Mas essa seria a minha mais central preocupação em relação às suas colocações, que foram, como sempre, brilhantes e sobretudo demonstrando sua grande preocupação e conhecimento do tema, no qual é, obviamente, uma autoridade, sem favor nenhum.
Quanto ao Embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, eu gostaria de fazer algumas observações e também, é claro, com isso dar seqüência a perguntas.
Ele faz a observação de que os Estados Unidos e o Japão não têm acordo de livre comércio, mas me parece que não têm porque não precisam ter. As tarifas médias de comércio externo desses países são tão baixas que são o próprio livre comércio. De modo que se faz acordo de livre comércio com países que tenham políticas de comércio exterior muito restritivas.
Não creio que isso sirva de exemplo ou de parâmetro para mostrar se acordos são necessários ou não. Eles talvez sejam necessários entre países que são extremamente competitivos, como o Japão e os Estados Unidos o são, e aqueles que não são competitivos, como é o caso do Brasil. Por via de acordos é que se pode estabelecer ressalvas, salvaguardas e estender-se no tempo o processo de integração.
A própria Alca prevê que a redução das tarifas não se dará em 2005, mas, a contar daí, teremos, no mínimo, dez anos para que, gradualmente, haja uma queda das barreiras tarifárias. Os acordos são feitos para que os países que não têm competitividade possam a ela se adequar no tempo. Como disse o Embaixador, quando um país vê uma área estratégica ou delicada do seu comércio externo sendo atingida, as suas forças políticas se levantam e manifestam o desejo de criar algum tipo de mecanismo, como tem sido feito no contexto do Mercosul.
O que me parece importante ressaltar é que o Brasil está em um contexto real e não imaginário, e o contexto real é o de que os outros países do Mercosul — não tenho registradas manifestações do Paraguai, mas tenho registradas manifestações claras, inequívocas do Uruguai e da Argentina. Do Uruguai, ouvi, não de um diplomata, mas do Presidente da República, Jorge Battle, que é uma pessoa com quem tenho uma certa convivência, por ter sido ele Senador da República, um homem que conhece muito o Rio Grande do Sul, e o Rio Grande do Sul também o conhece muito bem. Em uma conversa em seu gabinete, ele disse, textual, inequívoca e lapidarmente: "Nós queremos a Alca, o Uruguai deseja a Alca, luta pela Alca e quer a Alca para ontem". Ou seja, a pressa do Uruguai é muito grande por ser uma economia muito simples, pouco sofisticada, pouco complexa, não é uma economia industrializada e, para essa economia, o incremento de comércio é fundamental.
O Uruguai e a Argentina — isso está demonstrado na visão do Ministro Cavallo, da Argentina — desejam a Alca e vão a ela, vá o Brasil ou não. Parece que isso é rigorosamente verdadeiro, não é uma suposição ou invenção. Isso está manifesto nas declarações das pessoas mais responsáveis pelos destinos desses países.
O que me preocupa não é o fato de que o Brasil não possa continuar negociando e tendo a sua vida de comércio exterior ainda subsistindo. Mas, o que ficou provado nos anos oitenta, principalmente na Europa, é que, quando novos países têm acesso, por via de acordos comerciais ou de livre comércio, a grandes mercados, há, em primeiro lugar, uma enorme concentração de investimentos nesses países, porque são a porta para os grandes mercados. Seria extremamente desastroso para o Brasil se o Chile assinasse o acordo bilateral em separado agora e abandonasse o Mercosul. Seria desastroso para o Brasil e para a Argentina, por uma razão: os investimentos afluiriam para a instalação de indústrias, os recursos de investimentos de industriais brasileiros e argentinos, de capitais nacionais, de capitais mistos e de consórcios, enfim, para que lá fossem instaladas as indústrias com acesso ao mercado americano.
Foi o que ocorreu com a Espanha nos anos 80. A Espanha recebeu um fluxo de investimentos gigantesco em razão de seu ingresso na Comunidade Européia, o que fazia da Espanha, e também de Portugal, uma base de acesso ao mercado europeu. Não vieram investimentos para a América do Sul, para o Brasil principalmente, pois eram dirigidos a países que servissem de porta para os novos mercados. Alguns chamam inclusive a década de 80 de "a década perdida", mas foi basicamente uma década de ausência de investimentos externos, de ausência de aporte de poupança externa no Brasil. Foi muita clara essa tendência.
Por outro lado, não há dúvida de que o cerne da competitividade está na inovação tecnológica, investir em tecnologia, apropriação de tecnologia, sem o que, não há competitividade. Mas a experiência brasileira não tem sido de que o fechamento e o protecionismo são garantias de que haja apropriação de tecnologia. Pelo contrário. O fechamento tem sido muitas vezes acompanhado de uma grande defasagem tecnológica e da perda de competitividade, como ocorreu no plano da informática, na Lei dos Dez Anos, que votei favoravelmente no Congresso Nacional.
O que me preocupa, sobretudo, é o fato de que o isolamento do Brasil, ou melhor, sua ausência na Alca, não apenas o fará perder a possibilidade de intervir na direção da Alca, mas que o tornará, digamos, um país desinteressante para investimentos em indústrias que visem o acesso ao mercado americano. E as indústrias que viriam não seriam apenas as maquiadoras, mas também aquelas de média tecnologia que visam a utilização de mão-de-obra barata. De certa forma, enquanto o Brasil fica fora e os demais países da América do Sul entram na Alca, os investimentos afluirão, centralizadamente, para esses países.
Porém, é verdade, e me parece importante registrar, que, neste momento, a sociedade americana e seus representantes políticos têm enorme resistência à Alca. Há talvez mais resistência à Alca dentro dos Estados Unidos do que no Brasil. O temor de que a abertura possa transferir empregos e investimentos para países onde a mão-de-obra é mais barata é muito mais aterrorizante nos Estados Unidos do que no Brasil.
Assim, a questão que coloco é neste sentido: como podemos, de certa forma, não ficar isolados nem enfraquecidos nesse processo em que países como Uruguai e Argentina têm manifestado claramente o desejo de levar avante o processo da Alca. Países não têm amigos; países têm interesses, e, evidentemente, farão isso independentemente do Tratado do Mercosul, independentemente dos belos olhos do Brasil. E, nesse sentido, com esse tipo de preocupação, eu gostaria que V. Exª fizesse uma análise desse aspecto, do problema político do Brasil nesse contexto; como o Brasil conseguirá, sendo uma força resistente à Alca, atrair para a sua visão os demais países da América do Sul ou mesmo os países do Mercosul?
Nós tínhamos uma visão estratégica, que parece não se consolidou, de que, primeiro, formaríamos uma base política sólida na América do Sul, para depois levarmos posições comuns à Alca. De certa forma, isso se desenhou na reunião dos doze países, feita em Brasília pelo Presidente da República. Havia um desenho político muito interessante, que, de certa forma, acabou não prevalecendo, exatamente porque o ritmo dos interesses e a visão não são iguais. Nesses países da América do Sul que não são tão complexamente industrializados como o Brasil prevalece o desejo de incremento de comércio pela via deste acordo chamado Acordo de Livre Comércio das Américas.
São essas as minhas colocações. De qualquer forma, evidentemente, são perguntas e muito mais do que afirmações.
O SR. PRESIDENTE (Roberto Requião) — Com a palavra o Embaixador Botafogo.
O SR. JOSÉ BOTAFOGO GONÇALVES — Muito obrigado. Eu lamento que tenho que me retirar, porque tenho um compromisso no Rio, que é o Congresso Nacional da Indústria Química. Estão me esperando amanhã de manhã, e o último avião sai às 20h20min. Eu me comprometo, com a autorização do Presidente desta Comissão, de não só comparecer aqui para continuar, mas responder especificamente à questão que V. Exª acaba de levantar com relação à diluição do Mercosul dentro de uma zona de livre comércio.
Peço desculpas por não poder continuar este debate, que considero extremamente importante. Concordo com a sugestão feita pela Senadora, transmitida pelo Presidente, de retomarmos o diálogo com mais profundidade. E ofereço-me para discuti-lo em toda a sua profundidade e considero até necessário, porque vimos pelas exposições que nós não chegamos ainda ao fim desse processo de análise, e a participação do Congresso a esse respeito é fundamental.
Agradeço e peço muitas desculpas ao Senador Requião. Eu não queria dar a impressão de que estou abandonando um debate desta natureza, mas, realmente, se eu não sair agora, perco o avião. E espero ter oportunidade de revê-los na primeiríssima oportunidade. Desculpe-me, Senador Requião. Desculpe-me, Deputado Ney Lopes. V. Exª ainda tinha outros comentários para fazer, mas eu vou ter que me retirar, inevitavelmente. Muito obrigado.
O SR. PRESIDENTE (Roberto Requião) — Com a palavra o Embaixador Samuel, para responder ao questionamento do Senador José Fogaça.
O SR. SAMUEL PINHEIRO GUIMARÃES — O Senador Fogaça levantou uma série de pontos muito interessantes e que mereceriam uma tentativa de abordá-los.
S. Exª começou citando que os Estados Unidos e o Japão não tinham uma zona de livre comércio, porque não precisam, pois têm tarifas muito baixas. Eu não estou advogando que o Brasil deva ter tarifas altas; eu estou querendo dizer que é um compromisso ter tarifa zero, que é diferente. Primeiro, há tarifas altas americanas para muitos setores; a tarifa média ilude muitos produtos.
Os Estados Unidos, sendo o País mais poderoso do mundo, como podemos presenciar, podem fazer certas coisas. Nos Estados Unidos, a lei interna é superior à lei internacional, o que é uma tradição americana. Os Estados Unidos, por exemplo, no caso de vários países, impuseram acordos voluntários de restrição de exportação, como foi o caso dos automóveis japoneses. Não precisaram aumentar as tarifas, não. Ameaçaram os japoneses, e os japoneses, imediatamente, restringiram suas exportações, porque senão entraria uma tarifa elevada. De modo que eles não têm muita necessidade de ter uma tarifa alta, porque eles têm muitos outros mecanismos.
O SR. JOSÉ FOGAÇA — Mas os outros acordos também não funcionam assim? Quer dizer, a Argentina não fez mais ou menos isso com o sapato brasileiro? Utiliza mecanismos outros, ou reintegra, ou seja lá o que for. Esses mecanismos funcionam.
O SR. SAMUEL PINHEIRO GUIMARÃES — Uma coisa é a Argentina fazer com o Brasil, outra coisa é o Brasil fazer com os Estados Unidos. Na realidade, quando os Estados Unidos retaliaram contra nós, injustamente impuseram legislação anti dumping no caso do aço, se nós tivéssemos o mesmo poder que eles, poderíamos contra-retaliar nos seus interesses. O problema é que na prática é diferente.
O que digo é que não é conveniente manietar definitivamente o Estado brasileiro e reduzir enormemente. Não quer dizer que não se deva ter comércio muito intenso com os Estados Unidos como temos tido durante anos sem ter o compromisso de não ter tarifa. Então me parece que o prazo de dez anos, que é um prazo verdadeiramente para colocar em vigor a tarifa zero, do jeito que a caravana está andando, não vai tornar a economia brasileira ao nível da economia americana. Seria um progresso, uma transformação quase que milagrosa. Para resolver os problemas de infra-estrutura e de eletricidade são no mínimo sete anos, só para acertar. Transformar a nossa economia semelhante à economia americana no prazo de dez anos...
O SR. JOSÉ FOGAÇA — Nosso presidente tem que se eleger e se reeleger, para poder chegar a um (inaudível - fora do microfone).
O SR. SAMUEL PINHEIRO GUIMARÃES — Não sei, quem quer que seja, por várias razões, por várias questões estruturais da economia brasileira. O fato é chegar ao nível de competitividade americana, que é extraordinariamente elevada. Junta o seu poder político, que, quando necessário, é aplicado para resolver mesmo questões comerciais e econômicas. Eles utilizam seu poder político com grande tranqüilidade.
Acho que é muito perigoso entrar numa sociedade qualquer onde os sócios são tão assimétricos, como no caso dos Estados Unidos, sendo eles a maior potência do mundo. Não é só assimétrico. É a maior potência do mundo, de longe. De modo que acho que é delicado ter o compromisso e acho que haveria interesse dos Estados Unidos de abrir o mercado para nós, desde que a nossa política comercial fosse consistente e correta e desde que nós também negociássemos dessa forma. Agora, como fizemos uma abertura unilateral, radical, sem pedir nada em troca, realmente perdemos ali a grande oportunidade.
O senhor havia comentado a questão da Europa. Realmente o caso Europa é um caso muito interessante, mas não é o esquema da Zona de Livre Comércio das Américas. É um esquema de união econômica, de liberdade de movimentação de mão-de-obra. Vamos supor que a ALCA também incluísse liberdade de movimentação de mão-de-obra, que ela tivesse um parlamento americano onde houvesse deputados brasileiros como há, no Parlamento Europeu, deputados portugueses, espanhóis, de todos os países. Que houvesse um Banco Central das Américas, onde os países todos teriam sua representação. Não é assim, é diferente a estrutura. E lá há repasse de recursos muito grande para as áreas menos desenvolvidas, ou países menos desenvolvidos, como é o caso de Portugal, da Espanha e mesmo zonas da Itália, da Grécia e de outros países. Há repasse de recursos de países ricos para países mais pobres. Isso existe na ALCA? Não, isso não existe na ALCA. Poderia existir. Deveríamos propor isso? Deveríamos propor isso. Seria aceito? Não, porque não é essa a intenção. Não há intenção de promover o desenvolvimento harmônico do conjunto do Continente. Não existe essa intenção. Lamentavelmente não há essa intenção. Se houvesse, como é óbvio a diferença e assimetria, os próprios Estados Unidos sugeririam fundos para promover a recuperação das regiões mais atrasadas, coisa que não lhes ocorre. Na Europa ocorreu: França, Alemanha, Itália. Sabendo do menor desenvolvimento de Portugal, da Espanha e de outras áreas e sabendo da reorganização industrial que causa o livre o livre comércio, criaram fundos de reorganização industrial, agrícola e assim por diante. E isso não existe na Alca e causará deslocamentos gigantescos.
Eu havia mencionado que se o Chile entrasse na Alca seria desastroso para o Brasil, porque capitais até mesmo nacionais iriam para aquele País, beneficiando-se da abertura do mercado americano; não tenho esse dado, e também não sei se muitos capitais brasileiros se dirigiram para o México, que já tem acesso ao mercado americano, para abastecer este mercado, não precisando esperar a Alca, poderiam, desde já, ir para o México e lá se instalarem para exportar, até porque muitas das nossas empresas já estão nos Estados Unidos.
O SR. JOSÉ FOGAÇA — (inaudível)... capitais americanos, ... não.
O SR. SAMUEL PINHEIRO GUIMARÃES — Sim, mas é a mesma coisa, no fundo é semelhante, a proximidade.
O SR. JOSÉ FOGAÇA — (inaudível)... o Chile seria, como já foram para a Argentina
O SR. SAMUEL PINHEIRO GUIMARÃES — O Chile não tem um parque industrial diversificado suficientemente para poder abrigar essa... A mim não me parece, é uma opinião minha, não estou dizendo que seja passado em julgado, de forma alguma, mas digo que poderia ter havido esse movimento em direção ao México para exportar para o mercado americano, claro que lá encontrariam a competição das empresas americanas. Se as nossas empresas forem para o Chile, tencionando exportar para o mercado americano, também encontrarão a competição das empresas americanas, que já estão no mercado americano, aliás, a General Eletric do Brasil, a Ford do Brasil, todas essas e muitas outras empresas já estão lá. Quer dizer, as empresas americanas, instaladas no mercado americano, já estão no mercado americano, elas não precisam ir para lá, já têm acesso ao mercado americano, gerando um comércio dentro da própria empresa. De modo que acredito que as empresas brasileiras saírem do mercado brasileiro para o Chile penso que seria pouco provável.
Sempre é uma tentativa, quando exponho o meu ponto de vista, fazer com que entendam que não estou defendendo o fechamento. Penso que o Brasil em muitos casos deveria adotar a tarifa zero, em muitos setores; outra coisa é assumir o compromisso permanente, essa é a diferença, porque um dia poderá precisar, como agora, no caso da indústria eletrônica, da indústria química. Se não se fizer alguma coisa não haverá superávit comercial em hipótese alguma e aí a frase se realizará, a profecia se realizará. Agora acredito que a alternativa não é Alca nem o isolamento, penso que não. O Paraguai tem um enorme interesse em vender energia elétrica para o Brasil, então não fará retaliações ao Brasil; a Argentina tem um interesse enorme em vender trigo para o Brasil, não vai colocar esse trigo nos Estados Unidos, que já são enormes produtores desse cereal, se tem que vender que seja para cá, pois damos a preferência, se não déssemos não colocariam aqui. Com a Alca eles perdem a preferência no mercado brasileiro, não vão exportar nem uma tonelada para cá, não vão, dificilmente farão isso, exportam pela preferencia que hoje têm por causa do Mercosul.
Então há um interesse muito grande da Argentina, do Uruguai, do Paraguai de manterem relações intensas com o Brasil, como acontece hoje em dia. O Uruguai mantém relações intensas com o Brasil e não é por causa dos Estados Unidos, por causa da Alca, que vai querer deixar essa relação. É óbvio que não. Nem nós. Se eles entrarem para a Alca não teremos nenhuma razão para não termos relações com o Uruguai. Quando a França, por exemplo, deu preferência as suas ex-colônias nos acordos de..., o Brasil não deixou de manter relações com a França, assimilou a situação. De modo que penso que não ficaremos isolados não, em hipótese alguma. O Brasil representa 50% do PIB da América Latina. Não vai ficar isolado. A Venezuela, a Argentina, o Chile, todos têm um grande interesse no mercado brasileiro, não ficaremos isolados; temos estrutura industrial que atrai capitais, temos um mercado interno, um efetivo de 30 milhões de pessoas talvez, maior do que metade da França, muito maior do que a Bélgica, digo efetivo porque os outros estão um pouco fora do mercado. E esse mercado existe, é dinâmico, não vai deixará de atrair investimentos. Uma empresa teria interesse enorme em se situar no Brasil para exportar, por exemplo, para o resto do Mercosul, sem nenhuma restrição. Não acredito que esse tipo de restrição definitiva, por tratado, seja conveniente, principalmente em relação à maior potência do mundo de longe, que tem — numa outra ocasião poderemos discutir — um plano estratégico mundial, em que a Alca é uma pequena parte de um plano muito maior. Há interesses mundiais em que isso entra, na minha opinião, de forma menor.
Não sei se respondi. Tentei contra-argumentar.
O SR. JOSÉ FOGAÇA — Continuo divergindo, mas, de qualquer maneira, V. Sª atendeu a todas as perguntas. Eu agradeço.
O SR. SAMUEL PINHEIRO GUIMARÃES — Procurei seguir mais ou menos o que V. Exª havia mencionado.
O SR. PRESIDENTE (Roberto Requião) — Concedo a palavra ao Deputado Ney Lopes.
O SR. NEY LOPES — Sr. Presidente, nobre Embaixador e colegas Parlamentares, certamente não apresentarei grandes novidades nas argüições que farei. Na maioria delas, a posição do Embaixador Samuel Pinheiro Guimarães* já está esclarecida por sua brilhante palestra e pelas respostas dadas.
Sr. Presidente, algo me preocupa com relação à Alca. O Embaixador Samuel Pinheiro Guimarães apresenta uma posição incisiva sobre algo que não existe ainda. A Alca não existe, é uma pretensão, é uma manifestação de vontade de negociação. Essa negociação se materializou em alguns encontros na fixação de algumas datas, uma delas foi o ano de 2005, o que já foi uma grande vitória diplomática do Brasil e do Mercosul, de um modo geral. É possível que haja outra prorrogação, dependendo da conjuntura e das circunstâncias.
O eminente Embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, inegavelmente, é um dos quadros de maior competência da nossa diplomacia, sua opinião merece respeito, mas afinal o Parlamento não pode viver sem o processo dialético. V. Exª não acha uma temeridade, em termos de política internacional e dos interesses nacionais, negar in limine a possibilidade de uma negociação para ingresso do Brasil na Alca sem que os contornos dessa negociação estejam concluídos?
V. Exª não acha que a Alca deve ser resultado de um entendimento amplo, em que se coloquem na mesa todos esses equívocos e mazelas que hoje caracterizam inegavelmente a dominação dos mais fortes sobre os mais fracos? Negar essa negociação não seria negar uma realidade irreversível do mundo, que, boa ou má, ninguém pode negar, que é a inserção do nosso País no mundo globalizado?
Aqui, não faço nenhum juízo de valor sobre ser boa ou ruim a globalização, mas essa é uma realidade e, como tal, temos que nos posicionar em função dela. Dentro desse contexto, o isolamento do Brasil — e V. Exª diz que não defende fechamento nem isolamento. Se não defende, qual é a abertura na sua proposta, se, antes de iniciada a negociação, V. Exª já se manifesta em contrário? Seria semelhante a um médico que fizesse um bom diagnóstico no doente, mas não acreditasse no tratamento; considerasse um fatalismo a more do paciente. ]
Hoje, o que assistimos nesse choque de idéias entre os Estados Unidos, principalmente, a maior potência do mundo, e os países em processo de desenvolvimento, como o nosso, são teses que surgem lá mesmo, em Washington, dentro do Banco Mundial, dentro do BID, onde já existe a tese da revisão do Pacto de Washington.
Li, recentemente, na Folha de S. Paulo, um estudo de um ex-Diretor do Banco Mundial, identificando na globalização a sua maior mazela, que é a não- preocupação com o social, porém reconhecendo que pior seria se esse processo não tivesse ocorrido. E o que se deve fazer é ajustá-lo, melhorá-lo por meio de negociações em que se leve em conta não apenas o interesse imediato das grandes potências, mas a necessidade de promoção de um desenvolvimento realmente harmônico, quer dizer, quando o próprio Pacto de Washington, que é o que se dizia no início da década de 1990, deu a origem à globalização ou a essa palavra que se procura responsabilizar como os males do mundo do neoliberalismo.
O neoliberalismo não é novo nem velho. A doutrina liberal vem com o homem, com a natureza humana. Se há uma diferença conceitual é que o liberalismo em si, ao longo dos tempos, sempre esteve na vanguarda das grandes conquistas sociais. Foram os liberais ingleses que lutaram pela jornada de trabalho, pelo repouso remunerado durante a Revolução Industrial.
O conservadorismo ou outras formas na economia de ações mais conservadoras são naturalmente situações que surgem dentro de uma doutrina como surgiu também dentro da ideologia marxista, em que havia os trotskistas, os stalinistas, os variantes dentro de uma mesma ideologia. Imagine uma doutrina que pode naturalmente ter certas variações mais ou menos conservadoras?!
Quando o próprio neoliberalismo, que se atribui vinculado ao Pacto de Washington, está sendo revisado, o Brasil, que é, na verdade, a metade da economia da América do Sul e, por isso, tem mais responsabilidades com a América do Sul, não apenas do ponto de vista comercial, mas no sentido de promover uma comunidade latino-americana de nações como está dito e previsto na nossa própria Constituição Federal, o Brasil negar-se a um relacionamento, mesmo que seja restrito ao plano de trocas, ao plano comercial, não será a volta daquela política de isolamento que tivemos em relação à América do Sul há até bem pouco tempo? O que isso traria de benefício para a geração de empregos, para o aporte tecnológico, se toda essa forma de integração do Brasil se fizer por meio de uma negociação que se leva em conta não apenas os seus interesses, mas os interesses globais da América Latina?
Veja-se, por exemplo, Embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, que já se diz que o século XXI é o século da biotecnologia. Está sendo feito um estudo no BNDES que atribui um potencial nacional de cerca de 30 mil espécies, o que equivaleria, num aproveitamento industrial, à cerca de US$4 trilhões, quase quatro vezes o nosso PIB.
No momento em que há no mundo uma tendência das grandes potências, dos Estados Unidos, da Comunidade Européia, de nesse campo se fazer parcerias locais, em que os recursos, o acesso à biodiversidade se faça com o compromisso de que os inventos sejam patenteados no país de origem desses recursos naturais, no momento em que há várias ações na América Latina - aqui, no Brasil, inclusive - nesse campo, deixarmos de colocar em cima da mesa um ponto como esse, uma negociação da Alca, não será atrasar ainda mais o nosso desenvolvimento tecnológico, em nome de uma dominação que existiu no passado?
Se fosse verdadeira a máxima de que as economias dominantes, quando ingressam num pacto ou comunitário ou de acordo comercial, levam sempre vantagem, não teria ocorrido aquilo a que já se reportou o Senador Fogaça. Isso não aconteceu na época da Comunidade Européia, mas a partir da comunidade do carvão e do aço, a origem da Comunidade Européia, que era nada mais que um acordo comercial. A Comunidade Européia nasceu muito tempo depois. Ela está até em implantação. O Banco Central e a moeda estão em implantação. O Parlamento Europeu é relativamente novo, da forma como está estruturado.
Se, por exemplo, os alemães e os italianos, na época, que eram economias muito mais dominantes, tivessem sufocado as economias nascentes, Portugal e Espanha não teriam crescido. A própria Grécia, num nível menor, também não teria se desenvolvido. A Europa mostra, na evolução da Comunidade Européia, que começou com um acordo comercial do carvão e do aço, que é possível essa convivência e essa parceria, desde que, na pauta de negociações, cada um coloque os seus interesses, mas não só os seus interesses e, sim, no caso da América Latina, os interesses de toda a América Latina.
Insisto que a missão do Brasil, na hora em que se ausentar da mesa da Alca, não apenas afeta o nosso interesse nacional, mas pode e vai afetar toda América Latina, com uma posição egoísta e insensível a uma parceria com os demais países da região em relação ao pacto comercial a ser firmado com os Estados Unidos e com o México. Em verdade, notando-se a regionalização do mundo hoje - a Europa é prova disso, a Ásia caminha para isso -, não podemos negar que, em relação ao futuro, pelo menos o sonho da América Latina como aquela pátria grande de Bolívar, não temos direito de fazer como Unamundo: sonhar com o absurdo para conseguir o impossível.
Em relação a isso, o Brasil tem a grande responsabilidade, por ser o país de maior parcela de industrialização e de desenvolvimento, uma obrigação consigo próprio e com os seus parceiros da América Latina também, para não decepcioná-los e não deixá-los sós, pois, aí, sim, dentro do quadro que V. Exª pinta, haveria muito maior vantagem para as potências dominadoras, já que não se teria essa parceria indispensável.
Então, são colocações genéricas. Termino, enfatizando algo que verifiquei por experiência pessoal. Há seis anos, quando se discutiu o Nafta, tive uma missão, juntamente com Parlamentares do Uruguai e da Argentina, de fazer uma viagem ao México e aos Estados Unidos, para sentir qual era a tendência desses dois países, principalmente, em relação ao resultado final que se pretendia que era o Nafta. Passei uma semana no México, em entendimento com centrais sindicais e com todas as áreas. Vi, lá, posições muito semelhantes à que V. Exª citou, de profunda resistência, tremendo agravamento social, desemprego, dominação, escassez de capital, transferência das poucas indústrias que estavam no México, imediata queda do monopólio do petróleo, que era o que interessaria à potência dominante, etc. Vi, nos Estados Unidos, exatamente o contrário. Estive com centrais sindicais, líderes, que diziam: "Isso é uma loucura, vão tirar o nosso emprego. Temos de resistir. Temos de fazer lobby no Congresso para que isso não passe. O Nafta só traz benefícios para os mexicanos. Nós não queremos. O interesse nacional está em jogo." O Congresso terminou aprovando o acordo por uma diferença mínima de um ou dois votos.
Então, são duas óticas completamente diferentes que, com certeza, estão se repetindo agora nessa pré-fase, digamos, de negociação da Alca, porque penso que sequer começou ainda, a não ser um certo calendário e uma certa manifestação, de propósito, de um lado e de outro, o que é normal. Quem vai negociar não começa pedindo pouco, e sim muito, e é a negociação que faz a evolução do acordo final.
Portanto, Sr. Presidente, quero destacar que o que referi, embora em discordância com o Embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, em nenhum minuto, deslustra a competência e a inteligência de S. Exª e tampouco ponho em dúvida a sua sinceridade, honestidade e boa-fé em, partindo de um diagnóstico nefasto de exploração neoliberal, negar qualquer possibilidade de diálogo, porque ao invés de ajudar, seria aprofundar o fosso entre a pobreza e a riqueza.
Respeito a opinião de V. Exª, mas deixo aqui essas considerações, que não são novidades, e sim, em outras palavras, o que já se disse aqui, o que talvez dispense de S. Exª qualquer consideração a mais.
Muito obrigado.
O SR. PRESIDENTE (Roberto Requião) — Com a palavra o Embaixador.
O SR. SAMUEL PINHEIRO GUIMARÃES - Eu gostaria de agradecer ao nobre Deputado Ney Lopes sua manifestação. É importante refletir que realmente seria difícil negar alguma coisa que não tenha os seus contornos definidos.
A questão é que hoje, no Panamá, a cada semana se reúnem os negociadores, e os contornos estão sendo definidos. Eles não estão finalizados. Naturalmente, há opiniões distintas. Mas as negociações, em nove grupos de trabalho, vêm avançando.
Então, o que ocorre, na realidade, é que hoje, na semana próxima e assim por diante está-se em negociação. Não que só será negociado um calendário apenas. Não. Está sendo negociado no momento, e isso é uma informação objetiva. Se o Embaixador José Botafogo Gonçalves estivesse aqui poderia confirmar isso. Essa é uma questão muito importante.
V. Exª havia mencionado se se deveria colocar a questão na mesa de todos os equívocos, etc., da inserção do Brasil no mundo globalizado. Penso que a participação do mundo globalizado não depende da participação na Alca, apenas isso. Não estou negando que se deva participar. O Brasil nasceu no comércio internacional. Quando os portugueses aqui chegaram, vieram à busca de produtos para o mercado internacional. O comércio internacional para o Brasil — eu havia tido oportunidade de mencionar — é essencial para um governo capitalista, capitalista intervencionista, comunista, ou o que quer que seja. O comércio internacional é essencial pela simples razão de que o Brasil não produz tudo o que necessita consumir. Portanto, necessita participar do comércio internacional. De forma alguma não se trata disso. Mas entendo que há uma suposição de que ou se participa da Alca, ou não se participa do mundo globalizado. Não é essa a minha opção pelo menos. Contudo, há várias formas de se participar do mundo globalizado. Existem as formas francesa, americana, japonesa, a argentina, a coreana e outras mais. Não há um modelo único, nem ele implica necessariamente que haverá regime de comércio com todos os países do mundo. Não. As negociações comerciais bilaterais são perfeitamente possíveis. Não têm de acontecer dentro desse sistema porque não é assim. Há negociações multilaterais na Organização Mundial do Comércio. Há, portanto, muitas formas de participação no comércio internacional e eu entendo que isso é, sim, muito importante. Contudo, essa participação deve se dar de forma a permitir o desenvolvimento da economia brasileira. Direi com franqueza algo que as pessoas não dizem: que se consolide a formação da economia capitalista no Brasil, e não o seu retrocesso. Isso que é importante, até a nossa história mostra: enquanto tivemos um comércio exterior extremamente livre, a industrialização não se verificou. Como hoje ela é indispensável porque a sociedade está toda urbanizada, não se pode mais viver do campo nem mandar as pessoas de volta para lá. E aí vem uma discussão longa sobre processo de desenvolvimento, como se verifica.
Creio que não estou contra desde o início, estou contra porque já está no meio. Não está no início, está bem avançado. Acho que é importante que a sociedade participe, que o Congresso Nacional participe, discuta, que todas as organizações da sociedade civil discutam vastamente esse tema porque ele terá conseqüências muito maiores do que um mero acordo comercial. Se fizéssemos uma zona de livre comércio com algum país menor da Ásia... Isso aqui é um assunto bastante distinto.
Foi mencionada antes a questão de Portugal e Espanha. O esquema da União Européia é fundamentalmente diferente do esquema da Alca (Área de Livre Comércio das Américas), ele inclusive beneficia as economias menores, no caso de Portugal...
O SR. NEY LOPES — Por meio de um fundo.
O SR. SAMUEL PINHEIRO GUIMARÃES — De vários fundos, de várias transferências de recursos.
O SR. NEY LOPES — Por que não pedir um fundo também?
O SR. SAMUEL PINHEIRO GUIMARÃES — É o que digo a V. Ex.ª: por que não pedir a liberdade de movimentação da mão-de-obra como existe na Europa?
O SR. NEY LOPES — Se não se negocia, não se pode pedir.
O SR. SAMUEL PINHEIRO GUIMARÃES — Essa parte não é comigo. Mas é claro que se isso não é levado à Mesa... Estamos negociando um tipo de sistema. Agora, há um artigo do Nafta - Região Norte Americana de Comércio Livre - que diz que não se pode levantar as questões de livre movimentação da mão-de-obra. Simplesmente não se pode levantar. E o que temos em excesso é a mão-de-obra. Eles têm bens e capitais e querem ter acesso ao mercado brasileiro; nós temos excesso de mão-de-obra e queremos ter acesso da mão-de-obra ao mercado americano. Seria muito interessante, as remessas de imigrantes seriam extraordinárias. Duzentos mil brasileiros no Japão remetiam US$2 bilhões por ano, imaginem os 10 milhões de brasileiros nos Estados Unidos? Serviria para equilibrar bem o balanço de pagamentos. Só que isso não pode. Eu acho que deveria.
Agora, há algo que a Suécia fez no século passado, a Inglaterra, a Irlanda, a Alemanha, a Itália, enfim, os países europeus fizeram em relação aos Estados Unidos: as pessoas migraram. Acho o seguinte: não estamos negociando o que mais nos interessa. Isso é que me parece grave, quer dizer, nós não estamos saindo das negociações, quem está saindo das negociações são os Estados Unidos quando dizem que não vão negociar produtos agrícolas, não é o Brasil que está saindo.
O SR. NEY LOPES — Mas ninguém aceitou isso.
O SR. SAMUEL PINHEIRO GUIMARÃES — Não aceitou mas continua sentando na mesa nos outros grupos.
O SR. NEY LOPES — A negociação é isso.
O SR. SAMUEL PINHEIRO GUIMARÃES — Sim, o que estou dizendo é que se está negociando o que lhes interessa, e o que nos interessa simplesmente não está sendo negociado porque já foi declarado de público várias vezes que não irão negociar os produtos agrícolas, não irão negociar legislação de defesa comercial, legislação antidumping. Então, o que estamos fazendo se o que nos interessa não está sendo negociado? Quem deixou as negociações na realidade?
O SR. NEY LOPES — Sr. Embaixador, V. Exª não acha que o Brasil está lançando a semente de uma coisa altamente positiva para a América Latina, que é a negociação em bloco?
O SR. SAMUEL PINHEIRO GUIMARÃES — Vou dizer a V. Exª que essa negociação de bloco é muito ilusória porque...
O SR. NEY LOPES — Mesmo se considerarmos o Mercosul?
O SR. SAMUEL PINHEIRO GUIMARÃES — É muito ilusória, na minha opinião, porque, primeiro, vários outros países já declararam que querem ter... Aliás, o Chile já iniciou uma negociação com a Alca, e a unidade latino-americana e o Mercosul ficaram para trás.
O SR. NEY LOPES — Então ele recuou, não?
O SR. SAMUEL PINHEIRO GUIMARÃES — Recuou por falta de interesse. E as dificuldades são enormes. Se é difícil para os Estados Unidos negociar com o Chile, é muito mais difícil negociar com o conjunto dos países da Alca. Esse é um debate que precisamos fazer porque acho que há outros meios de fortalecermos a comunidade latino-americana, que o que está na comunidade americana.
Penso que o Brasil deveria abrir seu mercado aos países vizinhos sem exigir reciprocidade. Não há porque exigir reciprocidade quando há desigualdade tão grande. Isso, sim, fortaleceria nossa posição e auxiliaria na construção da comunidade sul-americana. Os países da América Central já estão integrados na economia americana. Examinamos cada economia caso a caso e constatamos que essa questão diz respeito ao Brasil.
O SR. NEY LOPES — Com a Alca funcionando, o senhor acha que, no plano teórico, uma boa negociação pode ser um instrumento que leve à formação da comunidade latino-americana?
O SR. SAMUEL PINHEIRO GUIMARÃES — Não, porque já existirá a comunidade americana.
O SR. NEY LOPES — Mas o senhor sabe que comunidade não é o mesmo que mercado livre?
O SR. SAMUEL PINHEIRO GUIMARÃES — Devemos nos acautelar, porque, se prosseguirmos nessa direção, haverá impactos muito fortes. No mercado capitalista, de livre competição, o confronto entre as empresas brasileiras — que, na melhor das hipóteses, são consideradas médias se comparadas às americanas — levará, de um lado, à desnacionalização completa, o que tem efeitos enormes sob a balança de pagamentos e obviamente sobre a remessa de lucros. A empresa existe para remeter lucros e não para promover assistência social. Por outro lado, haverá um retrocesso industrial muito grande — não tenham dúvida disso —, o que é grave do ponto de vista da formação da capacidade industrial instalada no País.
Podemos fazer tudo o que a Alca nos pede como, por exemplo, ter tarifa zero, mas não devemos assumir o compromisso de mantê-la sempre nesse patamar. O compromisso definitivo é grave porque, depois, não pode ser revertido.
O SR. PRESIDENTE (Roberto Requião) — Agradeço a presença dos Deputados, dos Senadores e dos convidados que representam as embaixadas de vários países.
Informo a este exíguo Plenário sobre a proposta feita pelo Senador José Fogaça. A posição externada pelo Embaixador Samuel Pinheiro Guimarães* condiz com a minha própria. Por isso, aproveitando o que disse S. Exª, que o Brasil deveria dar início a uma comunidade de cidadania latino-americana abrindo seu mercado para a Argentina, Paraguai e Uruguai, e atendendo à sugestão do Senador José Fogaça, faço a seguinte proposta, que entendo estar praticamente aprovada por unanimidade: convidaremos os Embaixadores desses três países para comparecer a reunião desta Comissão, na próxima terça-feira, às 17h30min, para fazer um exposição sobre que apoio seus países esperam do Brasil, em função da situação que vivem hoje, que futuramente poderá ser também a nossa. Peço à Secretaria que formalize os convites e, se houver a possibilidade de atendê-los, agende para a próxima terça-feira.
Está encerrada a reunião.
(Levanta-se a reunião às 20h09min)